quarta-feira, 1 de junho de 2022

Forrest Gump | 2


O banquete do All State Football ia ser numa pequena cidade chamada Flomaton, que o técnico Fellers descrevia como uma “agulha de ferrovia”. Botaram a gente num ônibus — tinha uns cinco ou seis da região que tinha ganhado o prêmio — e fomos levados pra lá. Faltavam uma ou duas horas pra chegar e o ônibus não tinha banheiro. Eu tinha bebido duas sodas antes de partir; por isso, quando chegamos a Flomaton, eu tava realmente apertado.
A coisa ia acontecer no auditório da Flomaton Highschool, e quando entramos, eu e alguns outros achamos o banheiro. Mas quando fui abrir a calça o zíper ficou preso na barra da camisa e não descia de jeito nenhum. Depois de tentar algum tempo, um cara legal da escola adversária saiu pra ir atrás do técnico Fellers que veio com seus dois gorilas e tentaram abrir minha calça. Um deles disse que a única maneira de baixar o fecho era rasgando ele ao meio. O técnico Fellers, quando ouviu isso, pôs as mãos na cintura e disse: — Vocês esperam que eu leve este garoto pra lá com a braguilha aberta e tudo de fora? O que acham que os outros vão pensar? — Daí ele virou pra mim e disse:
Forrest, vai ter de botar uma rolha nisso até terminar tudo e, então, a gente abre sua calça, está bem? — Fiz que sim com a cabeça, porque não sabia que outra coisa fazer, mas pensei na longa noite que ia ter pela frente.
Quando chegamos no auditório, tinha uma porção de gente sentada em várias mesas, rindo e batendo palmas quando a gente apareceu. Fomos colocados numa mesa comprida, no palco, na frente de todo mundo e o que eu mais temia, uma longa noite, se confirmou.
Foi como se toda aquela gente tivesse se levantado pra fazer um discurso — até mesmo os garçons e o porteiro. Queria que minha mãe estivesse lá comigo, porque ela teria me ajudado, mas ela tava em casa, na cama e com gripe. Finalmente, chegou a hora de receber os prêmios, que eram pequenas bolas de futebol douradas, e quando chamassem nossos nomes a gente tinha de ir até o microfone e dizer “obrigado”. Também disseram que se alguém fosse falar mais alguma coisa, que fosse breve se quisesse sair de lá antes da virada do século.
A maioria pegou o prêmio e disse “obrigado”, e então chegou minha vez. Alguém no microfone chamou Forrest Gump, o que, se ainda não disse, é meu nome, e me levantei, avancei e me entregaram o prêmio. Me inclinei no microfone e disse — obrigado —, e todos ficaram de pé aplaudindo e dando vivas. Acho que alguém tinha contado pra eles que eu era uma espécie de idiota e eles queriam ser simpáticos. Mas fiquei tão surpreso com tudo que não sabia o que fazer, por isso fiquei parado ali, de pé. Então, todo mundo se calou e o homem no microfone perguntou se eu não queria dizer alguma coisa. Aí, eu disse: preciso mijar.
Ninguém na plateia disse nada por alguns momentos, só olhavam um pro outro de um modo estranho e, então, deu pra ouvir uma espécie de cochicho baixinho e o técnico Fellers apareceu e me pegou pelo braço e me arrastou de volta ao meu lugar. Ele passou o resto da noite me lançando olhares ferozes, mas quando o banquete acabou, o técnico e seus gorilas me levaram ao banheiro e arrebentaram o fecho, abrindo minha calça, e fiz tanto xixi que dava pra encher um balde!
Gump — o técnico disse depois que eu terminei —, sem dúvida, você leva jeito pra falar.

Bem, no ano seguinte não aconteceu tanta coisa, a não ser que alguém publicou que um idiota fazia sucesso no time All State Football e começou a chegar um monte de cartas de todas as partes do país. Mamãe juntava elas todas e fez um álbum com recortes de jornais e revistas. Um dia chegou um pacote de Nova York com a bola oficial de beisebol assinada pelo time todo dos Yankees. Foi a melhor coisa que já tinha me acontecido! Eu cuidava da bola como se fosse de ouro, até que um dia, no quintal, quando tava jogando, um cachorro grande veio e abocanhou no ar e mastigou ela toda. Essas coisas sempre acontecem comigo.

Um dia, o técnico Fellers me chamou e me levou à sala do diretor. Lá tinha um cara da Universidade que apertou minha mão e perguntou se eu já tinha pensado em jogar futebol no time de lá. Ele disse que tinha estado me “observando”. Balancei a cabeça, porque não tinha pensado.

Todos pareciam ter grande respeito por ele, cheios de dedos e chamando ele de “doutor Bryant”. Mas ele me disse pra chamar ele de “Urso”, nome que achei engraçado, se bem que, em alguns aspectos, ele se parecesse mesmo com um urso. O técnico Fellers avisou que eu não era das pessoas mais brilhantes, mas o Urso disse que quase todos seus jogadores eram assim e que queria me ajudar nos estudos. Uma semana depois me deram um teste com um monte de perguntas esquisitas com que não estou acostumado. Depois de algum tempo fiquei cheio e parei de fazer o teste.

Dois dias depois, o Urso voltou e fui levado à sala do diretor pelo técnico Fellers. O Urso parecia aflito, mas continuava um cara legal; me perguntou se eu tinha dado o máximo de mim no teste. Fiz que sim com a cabeça, mas o diretor revirou os olhos, e o Urso disse: — Bem, então é uma pena, porque o resultado parece indicar que este menino é um idiota.
O diretor, agora, concordava com a cabeça, e o técnico Fellers ali de pé, com as mãos nos bolsos, parecia de mau humor. Pelo visto, era o fim dos meus planos de futebol universitário.

O fato de eu ser muito bobo para jogar futebol na Universidade não pareceu impressionar o Exército dos Estados Unidos. Era meu último ano na escola secundária e, na primavera, todos os outros se formaram. Me deixaram ficar no palco e até me deram uma roupa preta para vestir, e quando chegou a hora, o diretor anunciou que iam me dar um diploma “especial”. Me levantei para ir ao microfone e os dois gorilas também se levantaram e foram comigo — acho que era pra não deixar que eu falasse coisas como no dia do All State Football. Minha mãe tava na primeira fila, chorando e torcendo as mãos, e eu me senti realmente bem, como se tivesse realizado algo de verdade.
Mas quando voltei pra casa, finalmente percebi por que ela tava tão sentida e chorava — tinha recebido uma carta do Exército mandando que eu me apresentasse à junta de retardamento local, ou coisa parecida. Não sabia o que era aquilo, mas minha mãe sabia. Era 1968 e tinha todo tipo de merda pronta pra acontecer.

Mamãe me deu uma carta do diretor da escola pra levar pro pessoal da junta de retardamento, mas, não sei como, perdi ela no caminho. Foi uma cena maluca. Havia um cara preto e grande num uniforme do exército berrando com as pessoas e dividindo elas em grupos. Todos ficávamos ali, em pé, e ele vinha e gritava: — Muito bem, quero que a metade de vocês vá pra lá, e a outra metade fique no mesmo lugar! — Todo mundo andava de um lado pro outro, desnorteado, e até eu pude perceber que o cara era um retardado.
Me levaram pruma sala, puseram a gente em fila e disseram pra tirar a roupa. Eu não tava muito a fim, mas todos tiraram e, então, eu também. Eles examinaram a gente em todo lugar — olhos, nariz, boca, ouvido — e até nossas partes íntimas. A certa altura, me disseram: — Curve-se. — E quando fiz isso, alguém meteu o dedo no meu cu.
Essa não!

Me virei, agarrei o sacana, e dei um soco no topo da cabeça dele. De repente, foi a maior confusão, um bando de gente se juntou e se jogou em cima de mim. Mas tô acostumado com isso. Me livrei de todos e atravessei a porta em disparada. Quando cheguei em casa e contei o que tinha acontecido à mamãe, ela ficou triste, mas disse: — Não se preocupe, Forrest, vai ficar tudo bem.
Não ficou. Na semana seguinte, uma caminhonete parou em frente à nossa casa e vários homens com uniforme do Exército, e capacetes pretos brilhantes, bateram à porta perguntando por mim. Eu tava escondido lá em cima, no meu quarto, mas mamãe apareceu e disse que eles só queriam me dar uma carona de volta ao posto de retardamento. Durante o caminho todo, eles ficaram me vigiando bem de perto, como se eu fosse uma espécie de maníaco.
Havia uma porta que dava pruma sala grande onde tava um homem mais velho usando um uniforme pomposo e que também me olhou com muita atenção. Me acomodaram e largaram outro teste na minha frente, e apesar de ser muito mais fácil que o teste de futebol para a universidade, não era nenhuma moleza.
Quando terminei, me levaram a uma outra sala, onde quatro ou cinco caras sentados atrás de uma mesa comprida começaram a me fazer perguntas e a passar, um pro outro, o que parecia ser o teste que eu tinha acabado de fazer. Aí, começaram a confabular e quando terminaram um deles assinou um papel e me entregou. Quando levei ele pra casa, mamãe leu e se pôs a puxar o cabelo chorando e agradecendo a Deus, porque tava escrito que eu tinha sido “Dispensado Provisoriamente” porque era abobado.

Aconteceu mais uma coisa durante essa semana que foi o evento mais importante de minha vida. Tinha uma pensionista morando com a gente que trabalhava na companhia telefônica como telefonista. Seu nome era srta. French. Era uma mulher realmente simpática, geralmente quieta e sozinha, mas, certa noite em que fazia um calor tremendo, e que desabou um temporal com trovoadas e raios, ela esticou a cabeça pra fora de seu quarto quando eu tava passando e disse: — Forrest, ganhei uma caixa de brigadeiros hoje de tarde. Quer comer um?
Eu disse — sim —, e ela me pôs pra dentro do quarto, e ali, sobre a cômoda, tava a caixa com os brigadeiros. Ela me deu um e, depois, me perguntou se não queria mais, e apontou a cama pra que eu me acomodasse. Devo ter comido uns dez ou onze brigadeiros e os raios faiscavam lá fora, e o trovão, e as cortinas voavam, e a srta. French como que me empurrou e me fez deitar na cama. Começou a me tocar de uma maneira muito pessoal. — Apenas feche os olhos — ela disse —, e ficará tudo bem. — A próxima coisa que percebi é que tinha alguma coisa acontecendo que nunca tinha acontecido antes. Não posso dizer o que era, porque meus olhos tavam fechados, e também porque mamãe me mataria, mas vou dizer uma coisa, a partir daí comecei a ver as coisas de maneira totalmente diferente.
O problema era que apesar, da srta. French ser uma mulher muito gentil e legal, o que ela me fez naquela noite era o tipo de coisa que eu teria preferido que tivesse sido feito por Jenny Curran. E ainda tem mais: eu não conseguia nem mesmo imaginar como devia fazer isso acontecer. Sendo como sou, não é tão fácil pedir a alguém pra me namorar. Pra não dizer coisa pior.
Mas por causa de minha nova experiência, juntei coragem pra perguntar à mamãe o que devia fazer em relação a Jenny, embora não tenha contado nada sobre mim e a srta. French. Mamãe disse que cuidaria disso por mim, e ligou pra mãe de Jenny Curran e explicou a situação e na noite seguinte, adivinhem só quem apareceu na nossa porta? Jenny Curran em pessoa!
Ela tava vestida de branco com um cravo no cabelo e parecia um verdadeiro sonho. Ela entrou e mamãe levou ela pra sala de visitas, deu um sorvete e me chamou, dizendo que eu descesse do quarto, pra onde tinha fugido assim que tinha visto Jenny Curran se aproximar da alameda. Eu preferia ter cinco mil pessoas correndo atrás de mim do que sair de meu quarto naquela hora, porém a mamãe veio, me deu a mão, me levou pra baixo e também me deu um sorvete. Isso facilitou as coisas.
Mamãe disse que podíamos ir ao cinema e deu três dólares a Jenny quando a gente tava saindo. Jenny nunca tinha sido tão legal, conversando e rindo, e eu balançando a cabeça e sorrindo feito um idiota. O cinema ficava a apenas umas três ou quatro quadras lá de casa. Jenny comprou as entradas, entramos e nos sentamos. Ela me perguntou se eu queria pipoca e quando ela voltou com a pipoca, o filme começou.
O filme era sobre duas pessoas, um homem e uma mulher, que se chamavam Bonnie e Clyde e que roubavam bancos, e também tinha outras pessoas interessantes. Tinha muitas mortes, tiros e outras merdas assim. Achei gozado os caras atirarem e matarem uns aos outros daquela maneira, e caía na gargalhada quando isso acontecia, e sempre que eu ria, Jenny Curran parecia escorregar da cadeira. Na metade do filme, ela tava quase no chão. Quando vi, achei que tinha caído da cadeira, por isso peguei ela pelos ombros pra ajudar ela a se levantar de novo.
Mas aí ouvi alguma coisa rasgar, olhei pra baixo e o vestido de Jenny tava completamente aberto e tudo de fora. Com a outra mão tentei cobrir ela, mas ela começou a fazer uns barulhos e a agitar os braços com força. Eu tentava segurar, não deixar ela cair de novo e ficar desarrumada. As pessoas em volta olhavam, procurando ver que confusão era aquela. De repente, um cara passou entre as cadeiras e acendeu uma luz forte na nossa cara, e ao ficar exposta, ela começou a dar risadas estridentes e a gemer e, então, ela deu um pulo e foi embora.
Aí eu me lembro que dois homens chegaram e mandaram eu levantar e acompanhar eles a uma sala. Alguns minutos depois, quatro policiais chegaram e me pediram pra ir com eles. Me levaram pro carro de polícia e dois se sentaram na frente e outros dois atrás comigo, igualzinho como os gorilas do técnico Fellers, só que agora realmente tavam me levando pra “central”. Eles me acompanharam até uma sala, apertaram meus dedos num bloco, tiraram meu retrato e me meteram na cadeia. Foi uma experiência horrível. Fiquei o tempo todo preocupado com Jenny, mas pouco depois minha mãe apareceu e entrou enxugando os olhos com um lenço e torcendo os dedos e eu percebi que novamente tinha feito alguma coisa errada.
Alguns dias depois, teve uma espécie de cerimônia no tribunal. Mamãe me vestiu o terno e me levou, e conhecemos um homem simpático de bigode, que carregava uma pasta grande e que disse ao juiz um monte de coisas. Daí, outras pessoas, inclusive minha mãe, disseram mais outras besteiras e, finalmente, chegou minha vez.
O homem de bigode pegou no meu braço pra me levantar e o juiz perguntou como tudo tinha acontecido. Eu não sabia o que dizer, por isso só balancei os ombros e depois ele perguntou se eu queria acrescentar alguma coisa, e aí eu disse — quero mijar —, porque a gente tinha passado quase a metade do dia ali sentada e eu tava a ponto de explodir! O juiz se inclinou pra frente de sua grande mesa e me examinou como se eu fosse um marciano ou coisa assim. Aí o homem de bigode fez a defesa e o juiz mandou ele me levar ao banheiro, o que ele fez. Olhei pra trás quando saía da sala e vi a coitada da mamãe segurando a cabeça e esfregando os olhos com o lenço.
De qualquer jeito, quando voltei, o juiz coçou o queixo e disse que o caso era “muito peculiar”, mas que achava que eu devia entrar pro Exército ou coisa parecida, que ajudasse a me endireitar. Mamãe contou que o Exército dos Estados Unidos não queria me aceitar porque eu era idiota, mas que nessa manhã mesmo tinha chegado uma carta da Universidade dizendo que se eu jogasse futebol pra eles, eu teria direito a estudar sem pagar.
O juiz disse que isso também parecia peculiar, mas que concordava contanto que eu ficasse longe da cidade.
Na manhã seguinte, minhas malas já tavam prontas e mamãe me levou até o ponto do ônibus e me pôs dentro dele. Olhei pela janela e lá tava ela, mamãe, chorando e enxugando os olhos com seu lenço. Era uma cena que eu conhecia muito bem. Tá gravada na minha memória pra sempre. De qualquer modo, o ônibus deu a partida e fui embora.

Winston Groom, in Forrest Gump

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