Não
me lembro bem se é em Les donnés immediates de la conscience
que Bergson fala do grande artista que seria aquele que tivesse, não
só um, mas todos os sentidos libertos do utilitarismo. O pintor tem
mais ou menos liberto o sentido da visão, o músico o sentido da
audição.
Mas
aquele que estivesse completamente livre de soluções convencionais
e utilitárias veria o mundo, ou melhor, teria o mundo de um modo
como jamais artista nenhum o teve. Quer dizer, totalmente e na sua
verdadeira realidade.
Isso
poderia levantar uma hipótese. Suponhamos que se pudesse educar, ou
não educar, uma criança, tomando como base a determinação de
conservar-lhe os sentidos alertas e puros. Que se não lhe dessem
dados, mas que os seus dados fossem apenas os imediatos. Que ela não
se habituasse. Suponhamos ainda que, com o fim de mantê-la em
campo sensato que lhe servisse de denominador comum com os outros
homens lhe permitisse certa estabilidade indispensável para viver,
dessem-lhe umas poucas noções utilitárias: mas utilitárias para
serem utilitárias, comida para ser comida, bebida para ser bebida. E
no resto a conservasse livre. Suponhamos então que essa criança se
tornasse artista e fosse artista.
O
primeiro problema surge: seria ela artista pelo simples fato dessa
educação? É de crer que não, arte não é pureza, é purificação,
arte não é liberdade, é libertação.
Essa
criança seria artista do momento em que descobrisse que há um
símbolo utilitário na coisa pura que nos é dada. Ela faria, no
entanto, arte se seguisse o caminho inverso ao dos artistas que não
passam por essa impossível educação: ela unificaria as coisas do
mundo não pelo seu lado de maravilhosa gratuidade mas pelo seu lado
de utilidade maravilhosa. Ela se libertaria. Se pintasse, é provável
que chegasse à seguinte fórmula explicativa da natureza:
pintaria um homem comendo o céu. Nós, os utilitários, ainda
conseguimos manter o céu fora de nosso alcance. Apesar de Chagall. É
uma das poucas coisas das quais ainda não servimos. Essa
criança, tornada homem-artista, teria pois os mesmos problemas
fundamentais de alquimia.
Mas
se homem, esse único, não fosse artista – não sentisse a
necessidade de transformar as coisas para lhes dar uma realidade
maior – não sentisse enfim necessidade de arte, então
quando ele falasse nos espantaria. Ele diria as coisas com a pureza
de quem viu que o rei está nu. Nós o consultaríamos como cegos e
surdos que querem ver e ouvir. Teríamos um profeta, não do futuro,
mas do presente. Não teríamos um artista. Teríamos um inocente. E
arte, imagino, não é inocência, é tornar-se inocente.
Talvez
seja por isso que as exposições de desenhos de crianças, por mais
belas, não são propriamente exposições de arte. E é por isso que
se as crianças pintam como Picasso, talvez seja mais justo louvar
Picasso que as crianças. A criança é inocente, Picasso tornou-se
inocente.
Clarice Lispector, in Todas as crônicas
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