terça-feira, 10 de maio de 2022

Dou fé

Vinte e seis horas. Era o que durava a viagem de ônibus para o Rio. Sem diploma de nada, sem muita ideia do que pretendia da vida, eu resolvera deixar Porto Alegre e ir ser indeciso num lugar maior: o mundo. Começando pelo Leme, onde uma tia querida me deu cama e comida. Objetivo imediato: ganhar dinheiro. Objetivo secundário: ir para Londres, como todo mundo. Vago objetivo final: fazer alguma coisa em cinema, se dirigir filmes ou vender pipocas, o destino é que diria.
Um companheiro de vagabundagem e ambições difusas em Porto Alegre, o Machado, tinha feito a mudança antes, e encontrei-o cheio de planos para vencer no Rio, começando por uma indústria de máscaras para dormir, fáceis de fazer porque dispensavam os furos. Nem esta ideia nem as várias outras que tivemos bebendo “gin fizz” na varanda do Hotel Miramar, onde se reuniam gaúchos na mesma situação que nós, e onde a frase mais repetida, para nos convencermos de que a disponibilidade sexual do Rio compensava tudo, era
Haja pau”, deram certo. Também nos faltava capital. Quem não tinha tia comia na “Espaguetilândia” ou no Beco da Fome da Prado Júnior. O “gin fizz” no fim da tarde era a nossa única extravagância, nosso único desfrute da mágica de estar em Copacabana. O Machado era um virador. Com boa aparência e boa conversa, metia-se onde quisesse e às vezes me levava junto, e um dia nos vimos convivendo com um grupo internacional que fazia um filme chamado, se não me falha a memória, o que eu duvido, Copacabana Palace. E o Machado namorou a Mylene Demongeot. E fez grande sucesso na varanda do Hotel Miramar contando que tinham chegado às vias. Como eu não tinha visto, não podia confirmar o feito, e só dei fé por amizade. Comeu, comeu. Anos mais tarde, reencontrei o Machado e ele me contou que era escultor, com uma grande reputação mundial. Certo, certo, disse eu, lembrando-me afetuosamente do seu passado de contador de vantagens improváveis. Pouco depois entrei numa exposição de fotografias de
Artistas do século”, e lá estava, entre fotos gigantescas do Matisse e do Picasso, uma foto gigantesca do Machado!
Ninguém entendeu o comentário que fiz diante da foto, depois de me recuperar da surpresa.
Ele comeu mesmo!

Luís Fernando Veríssimo, in Sexo na cabeça

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