“Kamila
Jan, eu tenho a honra de lhe entregar seu diploma”.
O
homenzinho de cabelos brancos e rugas profundamente marcadas disse
com orgulho ao entregar à jovem mulher aquele documento de caráter
oficial. Kamila pegou o documento e leu:
Este
documento é um certificado de que Kamila Sidiqi concluiu com êxito
seus estudos no Instituto de Formação de Professores Sayed
Jamaluddin.
Cabul,
Afeganistão
Setembro
de 1996
“Muito
obrigada, Agha”, Kamila disse. Um sorriso de orelha a orelha
irradiou em sua face. Ela era a segunda mulher de sua família a
concluir o curso de dois anos no Instituto Sayed Jamaluddin; sua irmã
mais velha, Malika, havia se formado alguns anos antes e já estava
trabalhando como professora de uma escola secundária de Cabul.
Malika, no entanto, não havia tido que enfrentar os constantes
bombardeios e fogos disparados por foguetes da guerra civil quando ia
e voltava da escola.
Kamila
apertou em suas mãos o documento precioso. O lenço pendia de forma
casual de sua cabeça e ocasionalmente desviava-se para trás,
revelando alguns fios de seu cabelo castanho ondulado, que resvalavam
nos ombros. Calças pretas de pernas largas e sapatos escuros de bico
fino e salto baixo transpareciam por baixo da barra de seu casaco
comprido até os pés. As mulheres de Cabul eram conhecidas por
estender os limites rígidos da tradição de seu país e Kamila não
era exceção. Até a derrubada do poder do governo do Dr.
Najibullah, que era apoiado por Moscou, em 1992, pelos Mujahideen
(“santos guerreiros”) que opunham resistência à presença
soviética, muitas mulheres de Cabul andavam pelas ruas vestidas à
maneira ocidental e com as cabeças descobertas. Mas naquele momento,
apenas quatro anos depois, os Mujahideen definiam o espaço público
e a vestimenta das mulheres com muito mais rigor, ordenando que
trabalhassem em espaços separados dos homens, que andassem com a
cabeça encoberta e usassem roupas largas e recatadas. As mulheres de
Cabul, jovens e velhas, se vestiam de acordo com tais regras, embora
muitas – como Kamila – acrescentassem um pouco de vida a elas,
usando um belo par de sapatos sob aqueles casacos pretos disformes.
Estava
muito longe de ser como nas décadas de 1950 e 1960, quando as
mulheres elegantes de Cabul deslizavam pela capital do país em
trajes de estilo europeu combinando com finos lenços de cabeça.
Durante a década de 1970, as estudantes da Universidade de Cabul
chocavam seus compatriotas mais conservadores das áreas rurais,
usando minissaias que mostravam os joelhos e sandálias sofisticadas.
Aqueles anos de mudanças foram marcados por protestos e tumultos
políticos no campus da Universidade. Mas tudo isso aconteceu bem
antes da juventude de Kamila: ela havia nascido apenas dois anos
antes da invasão do Afeganistão pelos soviéticos em 1979, ocupação
essa que deu origem a uma guerra de resistência afegã que durou uma
década e, sob o comando dos Mujahideen, acabaram dessangrando os
russos. Quase duas décadas depois de o primeiro tanque soviético
ter entrado no Afeganistão, Kamila e seus amigos ainda não sabiam o
que era viver em paz. Após os soviéticos derrotados terem retirado
sua última ajuda ao país, em 1992, os comandantes Mujahideen
vitoriosos começaram a lutar entre si pelo controle de Cabul. A
brutalidade da guerra civil chocou os habitantes daquela cidade. De
um dia para o outro, as ruas dos bairros foram transformadas pelas
facções adversárias em linhas de frente, atirando uma na outra à
queima-roupa.
Apesar
da guerra, a família de Kamila, como dezenas de milhares de outras
famílias de Cabul, continuou indo à escola e ao trabalho sempre que
possível, enquanto a maioria das famílias de seus amigos fugiu em
busca de segurança nos vizinhos Paquistão e Irã. Com seu recente
diploma de professora, Kamila logo iniciaria seus estudos no
Instituto Pedagógico de Cabul, uma universidade aberta a ambos os
gêneros, fundada no início da década de 1980 durante os anos de
ocupação soviética, que promoveram uma ampla reforma educacional
com a expansão das instituições estatais. Dentro de dois anos, ela
receberia seu bacharelado e poderia iniciar sua carreira de
professora em Cabul. Ela pretendia se tornar professora de dari e,
quem sabe, algum dia ensinar literatura.
Mas
apesar dos anos de trabalho árduo e de seus planos otimistas para o
futuro, não haveria nenhum começo alegre para celebrar a grande
conquista de Kamila. A guerra civil havia destruído a imponente
arquitetura da capital e os bairros de classe média, transformando
as ruas da cidade num monte de ruínas, encanamentos e prédios
destruídos. Foguetes lançados por comandos bélicos atravessavam
regularmente o horizonte de Cabul, caindo sobre as ruas da capital e
matando indiscriminadamente seus habitantes. Eventos corriqueiros
como uma formatura haviam se tornado arriscados demais até mesmo
para serem levados em consideração e muito menos para se
comparecer.
Kamila
guardou seu diploma impresso com esmero numa robusta pasta marrom e
deixou o escritório administrativo, deixando para trás uma série
de jovens à espera de receber seus diplomas. Ao percorrer um
estreito corredor com janelas até o teto que ia dar na entrada
principal do Instituto Sayed Jamaluddin, ela passou por duas mulheres
que teciam uma conversa em meio a uma grande aglomeração.
“Ouvi
dizer que eles estão chegando hoje”, uma mulher disse para a
outra.
“Meu
primo me disse que eles estão na entrada de Cabul”, a outra
respondeu sussurrando.
Kamila
soube imediatamente quem eram “eles”: eram os talibãs, cuja
chegada era considerada, naquele momento, como inevitável. As
notícias percorriam a capital numa velocidade estrondosa por meio de
uma rede abrangente de famílias que incluía toda a parentela e que
ligava todas as províncias do Afeganistão. As notícias sobre o
iminente regime eram devastadoras e diziam que as mulheres estariam
enrascadas. As regiões rurais mais afastadas e mais difíceis de
serem controladas podiam, às vezes, estabelecer exceções para suas
mulheres jovens, mas o Talibã andava a passos largos no sentido de
consolidar seu poder nas áreas urbanas. Até ali, eles haviam
vencido todas as batalhas.
Kamila
ficou parada, em silêncio, no corredor da escola em que ela havia
lutado tanto para estudar, apesar de todos os riscos e ficou ouvindo
o que suas colegas estavam conversando com uma crescente sensação
de inquietude. Ela aproximou-se para ouvir melhor a conversa das
garotas.
“Você
sabe que eles fecharam as escolas para mulheres de Herat”, disse a
morena de nariz agudo. Sua voz soava carregada de preocupação. O
Talibã havia tomado aquela cidade do oeste um ano antes. “Minha
irmã ouviu dizer que as mulheres não podem nem mesmo sair de casa
quando eles tomam o poder. E nós aqui que pensávamos já ter
passado pelo pior”.
“Convenhamos”,
disse a outra, segurando a mão da amiga, “pode não ser tão ruim
assim”. “Talvez eles até tragam consigo um pouco de paz, se Deus
quiser.”
Apertando
sua pasta entre as mãos, Kamila desceu correndo as escadas para
tomar o ônibus que a levaria por uma longa viagem até a casa de sua
família no distrito de Khair Khana, ao norte de Cabul. Apenas alguns
meses antes, ela havia percorrido a pé os onze quilômetros depois
de um foguete ter caído na estrada de Karteh Char, o bairro em que
ficava sua escola, danificando o telhado de um hospital das forças
de segurança do governo e interrompendo o serviço de transporte
pelo resto daquele dia.
Todo
mundo em Cabul já havia se acostumado a buscar abrigo nas ombreiras
das portas ou nos porões das casas assim que ouviam o já familiar
zumbido dos foguetes se aproximando. Um ano antes, o instituto de
formação de professores havia transferido as aulas de Karteh Char,
por ser um bairro castigado regularmente pelos ataques aéreos e pelo
fogo de morteiros, para o local no centro que um dia fora uma escola
francesa e que o diretor acreditava ser mais seguro. Pouco tempo
depois, outro foguete, cujo alvo era o Ministério do Interior, que
ficava nas proximidades, foi parar diretamente em frente à nova sede
da escola.
Todas
essas lembranças se atropelavam, rapidamente, na mente de Kamila
quando ela embarcou no ônibus “Millie” azul-claro enferrujado,
que um dia fizera parte do serviço de transporte público, e tomou
seu assento. Ela se debruçou sobre a janela com grandes manchas de
barro e ficou ouvindo o que diziam as mulheres à sua volta enquanto
o ônibus chacoalhava pelas ruas esburacadas de Karteh Char. Cada uma
tinha sua própria versão de como seria o novo regime para os
habitantes de Cabul.
“Talvez
eles tragam segurança”, disse uma garota sentada algumas fileiras
atrás de Kamila.
“Eu
não acho isso”, respondeu sua amiga. “Eu ouvi pelo rádio que,
uma vez no poder, eles não permitem a existência de escolas.
Tampouco de trabalho. Nós não podemos nem sair de casa sem a
permissão deles. Talvez, eles só fiquem aqui por alguns meses...”
Kamila
olhava pela janela e tentava ignorar as conversas ao seu redor. Ela
sabia que provavelmente aquela garota estava certa, mas não queria
nem pensar no que seria dela e de suas irmãs menores que ainda
viviam em casa. Ela ficou olhando para os donos de lojas naquelas
ruas empoeiradas da cidade, envolvidos em seus afazeres diários de
fechar suas mercearias, estúdios fotográficos e padarias. Nos
últimos quatro anos, as entradas das lojas de Cabul haviam se
tornado um barômetro da violência do dia: quando suas portas
estavam totalmente abertas era porque a vida estava seguindo em
frente, mesmo que fosse ocasionalmente marcada pelo zumbido de um
foguete disparado ao longe. Mas quando elas estavam fechadas em plena
luz do dia, os moradores dali sabiam que o perigo estava por perto e
que também eles fariam melhor se ficassem em casa.
O
velho ônibus seguia em frente sacolejando entre um e outro ronco da
descarga de seu escapamento e finalmente chegou ao ponto em que
Kamila desceu. Khair Khana, um bairro de periferia ao norte de Cabul,
era onde morava uma grande comunidade de tajiques, o segundo maior
grupo étnico do Afeganistão. Como a maioria das famílias tajiques,
os pais de Kamila vinham do norte do país. O sul era,
tradicionalmente, terreno dos pashtuns. O pai de Kamila havia
transferido sua família para Khair Khana durante sua última viagem
em serviço militar como oficial do exército afegão, ao qual havia
servido por mais de três décadas. Cabul, ele pensava na época,
ofereceria às suas nove filhas melhores chances de uma boa educação.
E educação, ele acreditava, era de suma importância para suas
filhas, sua família e o futuro de seu país.
Kamila
desceu correndo sua rua empoeirada, segurando o lenço por cima da
boca para não inalar a grossa fuligem da cidade. Ela passou pelas
calçadas estreitas diante da mercearia onde caixotes de madeira com
verduras, cenouras e batatas eram vendidas. Trocou olhares com noivos
e noivas sorridentes, carregados de flores, em uma série de
fotografias de casamento penduradas na parede de um estúdio
fotográfico. Da padaria vinha o cheiro delicioso do pão naan saindo
do forno, seguido do açougue onde apareciam pendurados nos ganchos
de aço grandes pedaços de carne vermelha. Enquanto andava, Kamila
ouviu dois comerciantes trocando suas experiências do dia. Como
todos os habitantes de Cabul que haviam permanecido na cidade,
aqueles dois homens estavam acostumados a assistir a ascensões e
quedas de novos regimes e eram capazes de perceber rapidamente o
colapso iminente. O primeiro, um homem baixinho careca e enrugado,
estava dizendo que seu primo havia lhe dito que as tropas de Massoud
estavam carregando seus caminhões e fugindo da capital. O outro
balançava a cabeça em sinal de descrença.
“Vamos
ver o que vai acontecer”, ele disse. “Quem sabe as coisas não
acabem melhorando. Inshallah [se Deus quiser]. Mas eu duvido.”
O
comandante Ahmad Shah Massoud era o ministro da defesa do país e um
herói militar tajique do Vale de Panjshir, perto de Parwan, de onde
vinha a família de Kamila. Durante os anos de resistência contra os
russos, as forças do Dr. Najibullah haviam aprisionado o pai de
Kamila por suspeita de apoiar Massoud, que era conhecido como o “Leão
do Vale de Panjshir” e era um dos mais famosos combatentes
Mujahideen. Após a retirada dos russos em 1992, o Sr. Sidiqi foi
libertado pelas forças leais a Massoud, que trabalhavam então para
o novo governo do presidente Burhanuddin Rabbani. O Sr. Sidiqi passou
a colaborar por um tempo com os soldados de Massoud, mas acabou
decidindo se aposentar e viver em Parwan, lugar onde havia passado
sua infância e amava acima de qualquer outro no mundo.
Durante
todo o verão do ano anterior a 1996, Massoud havia jurado acabar com
a ofensiva dos talibãs, mesmo com a continuidade do bombardeio
incessante da capital e com a tomada pelas forças talibãs de uma
cidade após outra. Se as tropas do governo estavam realmente
desistindo de lutar e se retirando de Cabul, Kamila pensou, os
talibãs não podiam estar longe. Ela apressou o passo com os olhos
fixos no chão. Não havia porque se preocupar. Ao se aproximar do
portão verde de metal de sua casa, na esquina da movimentada rua
principal de Khair Khana, ela soltou um suspiro de alívio. Ela nunca
havia sido tão agradecida por morar tão perto da parada de ônibus.
O
grande portão verde se fechou com uma batida atrás de Kamila e sua
mãe, Ruhasva, correu até o pátio para abraçar sua filha. Ela era
uma mulher muito pequena, com tufos de cabelos brancos que
emolduravam seu rosto redondo, e de expressão respeitosa. Ela deu um
beijo em ambas as faces de Kamila e abraçou-a com força. A Sra.
Sidiqi havia ouvido as notícias da chegada dos talibãs durante toda
a manhã e havia ficando andando por duas horas, de um lado para
outro de sua sala, preocupada com a segurança de sua filha.
Finalmente
em casa, junto de sua família e com a noite caindo, Kamila se
acomodou sobre uma almofada de veludo na sala de sua casa. Ela pegou
um de seus livros preferidos – uma coletânea de poemas cujas
páginas estavam gastas pelo uso –, e acendeu um lampião de vidro
com um palito de fósforo que tirou de uma das caixas pequenas, em
vermelho e branco, que a família mantinha espalhadas pela casa
justamente para tais ocasiões. A eletricidade era um luxo; ela
chegava de maneira imprevisível e funcionava apenas por uma ou duas
horas por dia, isso quando funcionava, e todos haviam se acostumado a
viver no escuro. Tinham uma longa noite pela frente e esperavam
ansiosamente para ver o que aconteceria a seguir. O Sr. Sidiqi não
falou muito ao se juntar à filha no chão, ao lado do rádio, para
ouvir as notícias da BBC de Londres.
A
apenas seis quilômetros dali, Malika, a irmã mais velha de Kamila,
estava finalmente terminando um dia ainda muito mais atribulado.
Gayle Tzemach Lemmon, in A costureira de Khair Khana
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