Havia
duas coisas importantes — uma, que ela era velha demais; outra, que
o sr. Thirkell a estava levando para Deus. E ele não tinha dado um
tapinha na mão dela e dito: “Senhora Bellowes, vamos partir para o
espaço em meu foguete e encontrá-Lo juntos”?
E
era assim que ia ser. Ah, este era diferente de qualquer outro grupo
de que a sra. Bellowes já havia participado. Em seu fervor de
iluminar um caminho para seus pés delicados e hesitantes, ela havia
acendido fósforos ao descer becos escuros e encontrado seu caminho
para os místicos hindus cujos bruxuleantes cílios, estrelados,
pairavam sobre bolas de cristal. Ela havia trilhado os caminhos
relvados com filósofos indianos ascéticos importados por filhas em
espírito de Madame Blavatsky. Ela havia feito peregrinações às
florestas de gesso da Califórnia para caçar o vidente astrológico
em seu hábitat. Havia até mesmo consentido em abrir mão do direito
a uma de suas casas a fim de ingressar em uma ordem de incríveis
pregadores gritalhões que lhe haviam prometido fumaça dourada, fogo
de cristal e a grande mão macia de Deus vindo carregá-la para casa.
Nenhuma
dessas pessoas jamais abalara a fé da sra. Bellowes, mesmo quando
ela as viu serem levadas na noite, ao som de sirenes, em um camburão
preto, ou viu suas fotos, deprimentes e sem romantismo, nos tablóides
matutinos. O mundo as havia oprimido e mantido em isolamento porque
sabiam demais, era tudo.
E
então, duas semanas antes, ela havia visto o anúncio do sr.
Thirkell na cidade de Nova York:
Venham
Para Marte!
hospedem-se
no thirkell repousorium por uma semana. e depois, vá para o espaço
na maior aventura que a vida pode oferecer! pegue o panfleto gratuito
“mais perto de ti, meu deus”. preços de excursão. viagem de ida
e volta com desconto.
“Viagem
de ida e volta”, pensava a sra. Bellowes. “Mas quem ia
querer voltar depois de vê-lo?” E, então, ela
havia comprado uma passagem e voado para Marte e passado sete dias
agradáveis no Repousorium do sr. Thirkell, o prédio com a placa que
piscava: foguete de thirkell para o paraíso! Ela havia passado a
semana se banhando em águas límpidas e apagando a dor de seus
pequenos ossos, e agora estava inquieta, pronta para ser carregada no
foguete espacial particular do próprio sr. Thirkell, como uma bala,
a ser disparada lá fora no espaço, para além de Júpiter e Saturno
e Plutão. E assim — quem poderia negar? — ficar cada vez mais
perto do Senhor. Que maravilhoso! Não é que se conseguia senti-lo
se aproximando? Não é que se conseguia sentir Seu hálito, Seu
olhar, Sua Presença?
“Aqui
estou”, disse a sra. Bellowes, “um elevador antigo em frangalhos
pronto para subir pelo poço. Deus só precisa apertar o botão.”
Agora,
no sétimo dia, enquanto galgava com elegância os degraus do
Repousorium, um monte de pequenas dúvidas a assaltava.
“Particularmente”,
ela disse em voz alta para ninguém, “aqui em Marte, não é bem a
terra de leite e mel que eles disseram que seria. Meu quarto parece
uma cela, a piscina é na verdade bastante inadequada e, além disso,
quantas viúvas que parecem cogumelos ou esqueletos querem nadar? E,
finalmente, o Repousorium inteiro cheira a repolho cozido e tênis!”
Ela
abriu a porta da frente e deixou-a bater, com certa irritação.
Estava
espantada com as outras mulheres no auditório. Era como perambular
pelo labirinto de espelhos de um parque de diversões, sempre se
deparando consigo mesma, o mesmo rosto empoado, as mesmas mãos de
galinha e as pulseiras tilintantes. Uma após outra, as imagens de si
mesma flutuavam diante dela. Estendeu a mão, mas não era um
espelho; era uma outra senhora sacudindo seus dedos e dizendo:
“Estamos
esperando pelo senhor Thirkell. Shh!”
“Ah”,
cochicharam todas.
A
cortina de veludo se abriu.
O
sr. Thirkell apareceu, fantasticamente sereno, os olhos egípcios
sobre todos. Mas havia algo, entretanto, em sua aparência que fazia
com que se esperasse que ele dissesse “Olá!”, enquanto cães
peludos pulavam por sobre suas pernas, através de seus braços
fechados em arco e por sobre suas costas. Então, com cães e tudo,
ele deveria dançar com um sorriso ofuscante de teclado de piano e
sair para os bastidores.
A
sra. Bellowes, em um canto secreto de sua mente que constantemente
tinha de conter, esperava ouvir o som de um gongo chinês barato,
quando o sr. Thirkell entrou. Seus grandes olhos escuros e líquidos
eram tão improváveis que uma das velhas senhoras havia alegado
brincalhonamente que vira uma nuvem de mosquitos pairando sobre eles
como nos barris cheios de chuva de verão. E a sra. Bellowes algumas
vezes captava o odor da naftalina do teatro e o cheiro de vapor em
seu terno muito bem passado.
Mas
com a mesma racionalização selvagem com que havia recebido todas as
outras decepções em sua vida em ruínas, ela rechaçava a suspeita
e sussurrava: “Desta vez é de verdade. Desta vez vai
funcionar. Não temos um foguete?”.
O
sr. Thirkell fez uma mesura. Deu um repentino sorriso de máscara de
comédia. As velhinhas viram sua epiglote e perceberam ali o caos.
Antes
mesmo de ele começar a falar, a sra. Bellowes o viu escolher cada
uma de suas palavras, lubrificá-las e certificar-se de que corriam
bem sobre os trilhos. O coração dela se apertou como um pequeno
punho e ela rangeu os dentes de porcelana.
“Amigas”,
disse o sr. Thirkell, e podia-se ouvir o gelo se quebrar no coração
de toda a plateia.
“Não!”,
disse a sra. Bellowes antes do tempo. Ela podia ouvir as más
notícias correndo para ela e ela mesma amarrada aos trilhos,
indefesa, enquanto as imensas rodas negras ameaçavam e o apito
gritava impotente.
“Haverá
um ligeiro atraso”, disse o sr. Thirkell.
No
instante seguinte, o sr. Thirkell deve ter gritado, ou se sentido
tentado a gritar “Senhoras, permaneçam sentadas!”, como um
menestrel, pois as mulheres haviam se levantado das cadeiras e se
acercado dele, protestando e tremendo.
“Um
atraso não muito longo”, o sr. Thirkell levantou as mãos, dando
tapinhas no ar.
“Quanto
tempo?”
“Apenas
uma semana.”
“Uma
semana!”
“Sim.
As senhoras podem ficar aqui no Repousorium por mais sete dias, não
podem? Um pequeno atraso não terá importância no fim das contas,
terá? As senhoras esperaram toda uma vida. Somente alguns dias a
mais.”
A
vinte dólares por dia, pensou a sra. Bellowes, friamente.
“O
que há de errado?”, uma mulher gritou.
“Um
problema jurídico”, disse o sr. Thirkell.
“Temos
um foguete, não temos?”
“Bem,
ss-sim.”
“Mas
estou aqui há um mês inteiro, esperando”, disse uma velhinha.
“Atrasos, atrasos!”
“É
isso mesmo”, disse todo mundo.
“Senhoras,
senhoras”, murmurou o sr. Thirkell, sorrindo serenamente.
“Queremos
ver o foguete!” Era a sra. Bellowes adiantando-se, brandindo o
punho como um martelinho de brinquedo.
O
sr. Thirkell olhou dentro dos olhos das velhinhas, um missionário
entre canibais albinos.
“Bom,
agora?”, disse.
“Sim,
agora!”, gritou a sra. Bellowes.
“Receio
que...”, ele começou.
“Eu
também receio!”, ela disse. “É por isso que queremos ver a
nave!”
“Não,
não, agora, senhora...” Ele estalava os dedos pedindo seu nome.
“Bellowes!”,
ela gritou.
Ela
era um recipiente pequeno, mas agora todas as pressões ebulientes
que haviam se acumulado durante longos anos eram liberadas pelas
delicadas aberturas de seu corpo. As bochechas se tornaram
incandescentes. Com um grito que parecia o apito melancólico de uma
fábrica, a sra. Bellowes correu para a frente e se pendurou nele,
quase que com os dentes, como um cão dos Alpes ensandecido pelo
verão. Ela não iria e nunca poderia largá-lo a não ser depois de
morto, e as outras mulheres acompanharam, pulando e rosnando como uma
matilha investindo contra seu treinador, o mesmo que as havia
acariciado e para quem elas se agitavam e ganiam alegremente uma hora
atrás, agora cercando-o, amassando suas mangas e afugentando a
serenidade egípcia de seu olhar.
“Por
aqui”, grita a sra. Bellowes, sentindo-se como Madame Lafarge. “Por
trás! Esperamos tempo demais para ver a nave. Toda hora ele adia,
todo dia ficamos à espera, agora vamos ver.”
“Não,
não, senhoras!”, gritou o sr. Thirkell, saltando para lá e para
cá.
Elas
atravessaram em bando a parte de trás do palco e saíram por uma
porta, como uma inundação, arrastando consigo o pobre homem para
dentro de um galpão e depois para fora, entrando muito
repentinamente em um ginásio abandonado.
“Ali
está!”, disse alguém. “O foguete.”
E
então fez-se um silêncio que era terrível de suportar.
Lá
estava o foguete.
A
sra. Bellowes olhou para ele e suas mãos se soltaram do colarinho do
sr. Thirkell.
O
foguete era algo como um bule de cobre amassado. Havia mil
protuberâncias e fissuras e canos enferrujados e respiradouros sujos
dentro e sobre ele. As entradas estavam toldadas de poeira, parecendo
olhos de uma porca cega.
Todas
deram um suspiro lamentoso.
“Este
é o foguete Glória ao Altíssimo?”, gritou a sra.
Bellowes, consternada.
O
sr. Thirkell assentiu e olhou para os próprios pés.
“Pelo
qual pagamos mil dólares cada uma e viemos de longe até Marte para
embarcar com o senhor e voar para encontrá-Lo?”, perguntou a sra.
Bellowes. “Ora, isso não vale uma penca de bananas”, disse a
sra. Bellowes. “Não passa de lixo!”
Lixo,
cochicharam todas, começando a ficar histéricas.
“Não
o deixem fugir!”
O
sr. Thirkell tentou se soltar e correr, mas mil armadilhas para gambá
caíram sobre ele de todos os lados. Ele se contorcia. Todo mundo
andava em círculos como ratos cegos. Houve choro e confusão que
duraram cinco minutos, enquanto elas se aproximaram e tocaram o
Foguete, o Bule Amassado, o Contêiner Enferrujado dos Filhos de
Deus.
“Bem”,
disse a sra. Bellowes. Ela subiu até a entrada torta do foguete e se
virou para todo mundo. “Parece que fizeram uma coisa terrível
conosco”, ela disse. “Não tenho dinheiro nenhum para voltar para
casa na Terra e tenho orgulho demais para ir ao governo e contar a
eles que um homem comum como este nos tapeou, levando todas as nossas
economias. Não sei como vocês se sentem quanto a isso, todas vocês,
mas o motivo por que todas viemos é que tenho oitenta e cinco anos e
você tem oitenta e nove e você tem setenta e oito e todas nós
estamos nos encaminhando para os cem anos, e não há nada na Terra
para a gente, e não parece haver nada em Marte também. Nenhuma de
nós espera continuar respirando por muito mais tempo ou fazendo
milhares de tapetes de crochê, ou nunca teríamos vindo aqui. Então,
o que eu tenho a propor é uma coisa simples — correr o risco.”
Estendeu
a mão e tocou a carcaça enferrujada do foguete.
“Este
é o nosso foguete. Pagamos pela viagem. E vamos fazer
a nossa viagem!”
Todas
se juntaram e ficaram na ponta dos pés, e abriram a boca atônitas.
O sr. Thirkell começou a chorar. Ele o fez com bastante facilidade e
muita eficiência.
“Vamos
entrar nesta nave”, disse a sra. Bellowes, ignorando-o. “E vamos
decolar para onde estávamos indo.”
O
sr. Thirkell parou de chorar tempo suficiente para dizer:
“Mas
era tudo um golpe. Eu não entendo nada de espaço. Ele não está lá
fora, de modo algum. Eu menti. Não sei onde Ele está e não
conseguiria encontrá-lo se quisesse. E as senhoras foram tolas de
acreditar no que eu dizia”.
“Sim”,
disse a sra. Bellowes, “fomos tolas. Concordo com isso. Mas o
senhor não pode nos culpar, pois somos velhas, e era uma ideia boa e
bonita, umas das ideias mais adoráveis do mundo. Ah, nós na verdade
não nos enganamos pensando que podíamos chegar mais perto d’Ele
fisicamente. Era o sonho louco e gentil de gente velha, o tipo de
coisa a que você se agarra durante uns poucos minutos por dia, mesmo
que saiba não ser verdade. Então, todas vocês que querem ir,
sigam-me na nave.”
“Mas
as senhoras não podem ir!”, disse o sr. Thirkell. “Não têm um
navegador. E a nave é uma ruína!”
“O
senhor”, disse a sra. Bellowes, “será o navegador.”
Ela
entrou na nave e, depois de um momento, as outras velhinhas se
acotovelaram. O sr. Thirkell, rodando os braços freneticamente, foi
assim mesmo empurrado pela entrada e, em um minuto, a porta se fechou
com uma batida. O sr. Thirkell foi amarrado com cintos à cadeira do
navegador, com todo mundo falando ao mesmo tempo e segurando-o. Os
capacetes especiais foram distribuídos para serem ajustados em cada
cabeça grisalha ou branca, para fornecer oxigênio extra em caso de
vazamento no casco da nave e, finalmente, chegara a hora e a sra.
Bellowes se postou atrás do sr. Thirkell e disse:
“Estamos
prontas, senhor.”
Ele
não disse nada. Implorava a elas silenciosamente, usando os grandes
olhos escuros e molhados, mas a sra. Bellowes balançava a cabeça
negativamente e apontava para os controles.
“Decolar”,
concordou o sr. Thirkell morosamente, e apertou um botão.
Todo
mundo caiu. O foguete decolou do planeta Marte com um grande rastro
de fogo, e o barulho de uma cozinha inteira jogada no poço de um
elevador, com o som de panelas e frigideiras e chaleiras e fogos
crepitando e molhos borbulhando, com um cheiro de incenso queimado e
borracha e enxofre, com cor de fogo amarelo e uma faixa em vermelho
se estendendo abaixo deles, e todas as velhas cantando e se
abraçando, e a sra. Bellowes subindo pelas paredes da nave
suspirante, oscilante, tremente.
“Rume
para o espaço, senhor Thirkell.”
“Não
vai durar”, disse o sr. Thirkell, tristemente. “Esta nave não
deve durar. Vai...”
Ela
não durou.
O
foguete explodiu.
A
sra. Bellowes sentiu-se levantada e arremessada de lá para cá,
vertiginosamente, como uma boneca. Ela ouviu os gritos altos e viu de
relance os corpos, passando por ela em fragmentos de metal e luz
empoeirada.
“Socorro,
socorro!”, gritava o sr. Thirkell, ao longe, em uma fraca
transmissão de rádio.
A
nave se desintegrara em um milhão de pedaços, e as velhinhas, todas
as cem, foram lançadas diretamente para a frente com a mesma
velocidade que a da nave.
Quanto
ao sr. Thirkell, por algum motivo de trajetória, talvez, saíra pelo
outro lado da nave. A sra. Bellowes o viu caindo separado e distante
delas, berrando.
Lá
vai o senhor Thirkell, pensou a sra. Bellowes.
E
ela sabia aonde ele estava indo. Ia ser queimado e assado e grelhado
para valer, mas para valer mesmo.
O
sr. Thirkell estava caindo para dentro do Sol.
E
aqui estamos, pensou a sra. Bellowes. Aqui estamos, indo e
indo e indo.
Quase
não havia impressão de movimento, mas ela sabia que estava se
deslocando a oitenta mil quilômetros por hora e que continuaria a
viajar àquela velocidade por uma eternidade, até que...
Ela
viu as outras mulheres rodopiando à sua volta em suas próprias
trajetórias, com poucos minutos de oxigênio restantes para cada uma
em seus capacetes, e cada uma estava olhando para cima, para onde
estavam indo.
É
claro, pensou a sra. Bellowes. Indo espaço adentro. Indo e
indo, e a escuridão como uma grande igreja, e as estrelas como
velas, e apesar de tudo, do sr. Thirkell, do foguete, da
desonestidade, estamos indo em direção ao Senhor.
E
lá, sim, lá, enquanto ela continuava caindo e caindo, vindo em sua
direção, ela podia discernir o contorno agora, vindo em direção a
ela estava Sua poderosa mão dourada, estendendo-se para baixo, para
segurá-la e confortá-la como a um pardal assustado.
“Sou
a senhora Amelia Bellowes”, ela disse tranquilamente, em sua melhor
voz. “Sou do planeta Terra.”
Ray Bradbury, in A cidade inteira dorme e outros contos breves
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