terça-feira, 19 de abril de 2022

O velho Santiago


Era um velho que pescava sozinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe. Nos primeiros quarenta dias um rapaz fora com ele.
Mas, após quarenta dias sem um peixe, os pais do rapaz disseram a este que o velho estava definitivamente e declaradamente salao, o que é a pior forma de azar, e o rapaz fora por ordem deles para outro barco que na primeira semana logo apanhou três belos peixes. Fazia tristeza ao rapaz ver todos os dias o velho voltar com o esquife vazio e sempre descia a ajudá-lo a trazer as linhas arrumadas ou o croque e o arpão e a vela enrolada no mastro. A vela estava remendada com quatro velhos sacos de farinha e, assim ferrada, parecia o estandarte da perpétua derrota.
O velho era magro e seco, com profundas rugas na parte de trás do pescoço. As manchas castanhas do benigno cancro da pele que o sol provoca ao reflectir-se no mar dos trópicos viam-se-lhe no rosto. As manchas iam pelos lados da cara abaixo, e as mãos dele tinham as cicatrizes profundamente sulcadas, que o manejo das linhas com peixe graúdo dá. Mas nenhuma destas cicatrizes era recente. Eram antigas como erosões num deserto sem peixes.
Tudo nele e dele era velho, menos os olhos, que eram da cor do mar e alegres e não vencidos.
Santiago – disse o rapaz, ao virem da praia para onde fora alado o esquife. – Posso tornar a ir contigo. Já ganhamos algum dinheiro.
O velho ensinara o rapaz a pescar e o rapaz gostava muito dele.
Não – respondeu o velho. – Andas num barco de sorte. Fica com eles.
Mas lembra-te de como saíste oitenta e sete dias sem peixe, e depois apanhaste só grandes, todos os dias, três semanas a fio.
Lembro – disse o velho. – Bem sei que não me deixaste por duvidares.
Foi o papá quem me mandou. Sou um rapaz pequeno e tenho de lhe obedecer.
Bem sei – disse o velho. – É assim mesmo.
Não têm grande fé...
Pois não. Mas nós temos. Então não temos?
Temos – respondeu o rapaz.
Posso pagar-te uma cerveja no Terraço e depois levamos a tralha para casa?
E porque não? – disse o velho. – Entre pescadores!
Sentaram-se no Terraço e muitos dos pescadores fizeram troça do velho e ele não se zangou. Outros, dos pescadores mais velhos, olhavam-no e ficavam tristes. Mas não o mostravam e falavam atenciosamente da corrente e dos fundos a que haviam deitado as linhas e do bom tempo firme e do que tinham visto. Os pescadores de sorte nesse dia já lá estavam e tinham aberto os grandes peixes e tinham-nos trazido ao comprido em duas tábuas, com dois homens atrapalhados à ponta de cada tábua, até à pescaria onde esperariam pelo caminhão frigorífico que os levaria ao mercado de Havana. Os que haviam pescado tubarões tinham-nos levado à fábrica, do outro lado da enseada, onde eram içados com um cadernal, e lhes eram extraídos os fígados, cortadas as barbatanas, esfoladas as peles, e a carne feita em postas para salgar.
Quando o vento era leste um cheiro da fábrica atravessava o porto; naquele dia, porém, só a vaga memória de um odor vinha, porque o vento rondara ao norte e caíra, e no Terraço cheio de sol era agradável estar.
Santiago – disse o rapaz.
Que é? – perguntou o velho, segurando o copo e a pensar nos tempos de outrora.
Posso ir arranjar-te umas sardinhas para amanhã?
Não. Vai jogar o “baseball”. Ainda sei remar e o Rogélio atira a rede.
Gostava de ir. Se não posso pescar contigo, gostava de ser útil de qualquer maneira.
Pagaste-me uma cerveja – Disse o velho. – Já és um homem.
Que idade tinha eu quando me levaste a primeira vez num barco?
Cinco, e ias quase morrendo, quando puxei o peixe ainda muito forte e por pouco ele fazia o barco em pedaços. Não te lembras?
Lembro-me da cauda a dar e a bater e do banco a partir-se e do barulho da pancada. Lembro-me de me teres atirado para vante, onde estavam as linhas molhadas, e de sentir o barco tremer todo, e do barulho de tu à pancada a ele como quem deita uma árvore abaixo, e do cheiro doce do sangue por cima de mim.
Tu lembras-te disso, ou fui eu quem te contou?
Lembro-me de tudo, desde que primeiro saímos juntos.
O velho olhou para ele, com os seus olhos amoráveis, confiantes, ardidos do sol.
Se fosses meu filho, levava-te e tentava a sorte – disse. – Mas és filho do teu pai e da tua mãe, e andas num barco dos bons.
E se eu fosse às sardinhas? E sei onde arranjar quatro iscas.
Sobraram-me de hoje as minhas. E deixei-as em sal na caixa.
Deixa-me arranjar quatro frescas.
Uma – disse o velho. A esperança e a confiança nunca o haviam abandonado. Mas reverdeciam agora, como ao sopro da brisa.
Duas – Disse o rapaz.
Duas – anuiu o velho. – Não as roubaste?
Era capaz. Mas comprei estas.
Obrigado – disse o velho. Era demasiado simples ele, para ficar-se a pensar ao atingir a humildade. Mas sabia que atingira e sabia que não era desgraça e não acarretava perda do amor-próprio autêntico.
Amanhã, com esta corrente, vai ser um bom dia – disse.
Para onde vais? – perguntou o rapaz.
Muito para o largo, para vir quando levantar o vento. Quero sair antes de ser dia.
Hei-de ver se o levo bem para o largo – disse o rapaz.
E, se pescas alguma coisa das grandes, podemos ir ajudar-te.
Ele não gosta de trabalhar muito ao largo.
Pois não – reconheceu o rapaz. – Mas hei-de ver o que ele não pode ver, assim um pássaro à pesca, e levá-lo aos delfins.
Vê assim tão mal?
Está quase cego.
É estranho – disse o velho. – Ele nunca andou às tartarugas. E é o que dá cabo dos olhos.
Mas tu andaste anos e anos às tartarugas na Costa do Mosquito, e vês bem.
É que eu sou um velho estranho.
Mas ainda tens força para um peixe dos grandes a valer.
Acho que sim. E há muitas manhas.
Vamos levar a tralha para casa – disse o rapaz.
Para eu arranjar a rede e ir pelas sardinhas.
Pegaram na palamenta do barco. O velho levava o mastro ao ombro, e o rapaz a caixa de madeira com as linhas escuras, ásperas e enroladas, o croque e o arpão na sua bainha. A caixa das iscas estava sob o banco da popa, com o cacete que servia para dominar o peixe graúdo quando era trazido até ao casco. Ninguém roubaria nada ao velho, mas era melhor levar a vela e as linhas grossas para casa, pois que a orvalhada é má para elas, e, embora o velho estivesse certo de que ninguém do sítio lhe roubaria nada, achava que um croque e um arpão são tentações inúteis a deixar num barco.
Subiram juntos o caminho até à choupana do velho e entraram pela porta franca. O velho encostou ao pé da parede o mastro com a sua vela enrolada, e o rapaz pousou a caixa e o resto ao pé. O mastro era quase tão comprido como o compartimento único da choupana. Esta era feita de duros ramos de palmeira, a que chamam guano, e havia nela uma cama, uma mesa, uma cadeira, e um lugar no chão para cozinhar a carvão de choça. Nas paredes escuras, de achatadas e sobrepostas folhas do grosseiramente fibroso guano, havia uma gravura a cores do Sagrado Coração de Jesus e outra da Virgem de Cobre. Eram relíquias de sua mulher. Noutro tempo houvera ainda uma fotografia dela na parede, mas ele tirara-a por se sentir muito só ao vê-la, e estava agora na prateleira do canto, por baixo da camisa lavada.
Que tens para comer? – perguntou o rapaz. – Um tacho de arroz de peixe. Queres?
Não. Como em casa. Queres que eu acenda o lume?
Não. Acendo-o eu depois. Ou como o arroz frio. – Posso levar a rede?
Claro que podes.
Não havia rede, e o rapaz lembrava-se de quando a tinham vendido. Mas todos os dias representavam esta cena. Também não havia tacho de arroz, o que o rapaz também sabia.
Oitenta e cinco é bom número – disse o velho. – Gostavas de me ver trazer um que desse mais de quinhentos quilos?
Pego na rede e vou às sardinhas. Sentas-te ao sol, à porta?
Sento. Tenho o jornal de ontem e vou ler o “baseball”.
O rapaz não sabia se o jornal da véspera também era a fingir. Mas o velho foi buscá-lo abaixo da cama.
O Perico deu-mo na bodega – explicou.
Eu volto com as sardinhas. Guardo as tuas e as minhas no gelo, e pela manhã a gente reparte-as. Quando eu voltar, contas-me do “baseball”.
Os Yankees não podem perder.
Mas tenho medo dos Indianos de Cleveland.
Tem confiança nos Yankees, meu filho. Pensa no grande DiMaggio.
Mas eu tenho medo dos Tigres de Detroit e dos Indianos de Cleveland.
Tem cautela, ou acabas com medo dos Vermelhos de Cincinnati e do Sioux de Chicago.
Tu vês isso, e contas-me quando eu voltar.
Achas que a gente compre lotaria com a terminação em oitenta e cinco? Amanhã é o dia oitenta e cinco.
Podíamos comprar – disse o rapaz. – Mas que é feito do teu grande recorde de oitenta e sete?
Isso não acontece duas vezes. Achas que arranjas um oitenta e cinco?
Posso encomendar.
Um inteiro. São dois dólares e meio. A quem pode a gente pedir isso emprestado?
É fácil. Dois dólares e meio posso eu pedir sempre.
Parece-me que também eu. Mas faz por não pedir emprestado. A gente começa por pedir emprestado e acaba a pedir esmola.
Anima-te, meu velho – disse o rapaz. – Lembra-te de que estamos em Setembro.
O mês dos grandes peixes – comentou o velho. – Em Maio, qualquer é pescador.
Vou-me às sardinhas.

Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar

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