terça-feira, 19 de abril de 2022

O lobo e o falcão

Ele, guerreiro, cavalgava um cavalo negro. Seus olhos eram tranquilos, seu rosto triste, seus cabelos dourados como a luz do sol, e sua voz só se ouvia depois de longos silêncios.
Ela, diáfana como a lua, cabelos loiros e voz mansa como a luz das estrelas.
Eles muito se amavam.
Mas havia naquela terra um feiticeiro das trevas. Ele se apaixonou pela moça-lua. Quis tê-la para si. Mas ela amava o guerreiro e repeliu os gestos do feiticeiro. Este, enfurecido, lançou sobre os amantes um feitiço: estariam condenados, pelo resto dos seus dias, a nunca se tocarem. A mulher seria como a lua. Só apareceria à noite, depois de o sol se pôr. Durante o dia ela seria um falcão branco. E seu amado seria como o sol: só apareceria durante o dia. Durante a noite ele seria um lobo negro.
E assim aconteceu. Durante o dia o guerreiro cavalgava em seu cavalo, levando no ombro sua amada, o falcão branco. Durante a noite o falcão voltava a ser mulher e ficava ao lado do seu amado, o lobo negro.
Mas havia um breve momento encantado, quando eles quase se tocavam. Ao pôr do sol, quando a luz do dia se misturava com o escuro da noite, o falcão voltava a ser mulher e o guerreiro se transformava em lobo. Ao nascer do sol, quando o escuro da noite se misturava com a luz do dia, o lobo voltava a ser guerreiro e a mulher se transformava em falcão. Nesse brevíssimo momento, os dois apareciam um para o outro como sempre haviam sido... Suas mãos se estendiam, uma querendo tocar a outra – mas o toque era impossível, porque, antes que suas mãos se tocassem, a metamorfose acontecia.
O guerreiro amava o falcão. Sabia que dentro do falcão vivia sua amada, encantada. Ele acariciava suas penas – mas um falcão não é uma mulher. Ele o carregava movido pela esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
A mulher amava o lobo. Sabia que dentro do lobo vivia, encantado, o guerreiro de olhos profundos que ela amava. Ela acariciava seu pelo negro – mas um lobo não é um homem. Ela o acariciava movida pela esperança de que, um dia, o feitiço fosse quebrado.
Mas o amor é mais forte que os feitiços maus. E aconteceu que, um dia, depois de uma luta horrenda, o feiticeiro foi morto e o feitiço foi quebrado. O guerreiro voltou a ser o guerreiro que sempre fora, e a mulher voltou a ser a mulher que sempre fora. E as suas mãos puderam se tocar e tudo foi alegria e eles se casaram e viveram felizes para sempre...”
Assim termina a estória tal como me foi contada, com um final feliz. Mas eu, que também sou feiticeiro, imaginei outro final para essa mesma estória. E é esse outro fim que passo a contar.
O guerreiro, não podendo suportar a tristeza da sua condição, resolveu procurar um feiticeiro bom que tivesse poder maior que o feiticeiro mau. Ele se chamava Merlin. O guerreiro foi à morada-caverna dele, no alto de uma montanha, levando ao ombro o falcão. Lá chegando, contou-lhe a sua desgraça e formulou o seu pedido: queria que ele e a amada deixassem de ser lobo e falcão e voltassem a ser homem e mulher, para que pudessem se amar.
Merlin fez um grande silêncio e lhe disse:
Não posso atender o seu pedido, porque isso seria a sua perdição, o fim do seu amor. A magia nada cria. A magia só tem o poder de trazer das profundezas aquilo que lá existe. Você, no fundo da sua alma, é um lobo selvagem. A sua amada, no fundo da alma dela, é um falcão selvagem. Ela o ama porque vê, no fundo dos seus olhos mansos, um lobo que anda sem medo por florestas escuras. E você a ama porque vê, no fundo dos olhos mansos dela, um falcão que voa sem medo nas alturas. Se eu, por um feitiço, destruir o selvagem que há em você e o selvagem que há nela, não mais haverá mistérios dentro dos seus olhos. Vocês se transformarão em animais domésticos: um cão que abana o rabo para ganhar um osso, uma pata que rebola sem poder voar. Domesticados, se transformarão em seres banais. Você não terá estórias das matas escuras para lhe contar nem ela terá estórias de voos pelos picos gelados das montanhas para contar a você. E o seu amor se transformará num tédio interminável.
O guerreiro chorou.
Então, nosso amor está condenado?
Não — disse Merlin. — Há esperança, mas não do jeito como vocês querem. Não vou desfazer o feitiço, vou rearranjá-lo. Quando os primeiros raios de sol iluminarem o horizonte, você se transformará em lobo e ela se transformará em falcão. Você irá para o mistério das matas, e ela para os mistérios dos céus. Vocês serão selvagens ao mesmo tempo, cada um no seu mundo. Quando o sol se puser e a primeira estrela aparecer, você voltará a ser o guerreiro-sol, e ela voltará a ser a mulher-lua. Aí então vocês se encontrarão...
Ditas essas palavras, Merlin ficou em silêncio. Acendeu a fogueira na sua caverna, porque estava ficando frio. O sol estava se pondo. A noite se aproximava. Aceso o fogo, ele pronunciou palavras de bruxedo e despediu-se do guerreiro com o seu falcão.
O guerreiro, falcão no ombro, começou a longa descida da montanha para a planície. Seu rosto estava iluminado pelos últimos raios do sol que se punha. E foi então que, no meio do céu, viu a primeira estrela que aparecia…

Rubem Alves, in Cantos do Pássaro Encantado

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