quinta-feira, 7 de abril de 2022

O impostor inverossímil Tom Castro

Dou-lhe esse nome porque com esse nome ficou conhecido nas ruas e casas de Talcahuano, Santiago do Chile e Valparaíso, por volta de 1850, e é justo que o assuma outra vez, agora que retorna a estas terras — ainda que na qualidade de mero fantasma e passatempo de sábado.1 O registro de nascimento de Wapping chama-o Arthur Orton e o inscreve na data de 7 de junho de 1834. Sabemos que era filho de um açougueiro, que sua infância conheceu a miséria insípida dos bairros baixos de Londres e que sentiu o chamado do mar. O fato não é insólito. Run away to sea, fugir para o mar, é a maneira inglesa tradicional de romper com a autoridade dos pais, a iniciação heroica. A geografia a recomenda e mesmo a Escritura (Salmos, CVII): “Os que descem em barcos ao mar, os que comerciam nas grandes águas, esses veem as obras de Deus e suas maravilhas no abismo”. Orton fugiu de seu deplorável subúrbio cor-de-rosa sujo e desceu num barco ao mar e contemplou com a decepção habitual o Cruzeiro do Sul, e desertou no porto de Valparaíso. Era uma pessoa de sossegada idiotice. Logicamente, teria podido (e devido) morrer de fome, mas sua confusa jovialidade, seu permanente sorriso e sua mansidão infinita granjearam-lhe o favor de certa família Castro, cujo nome adotou. Desse episódio sul-americano não restam pegadas, mas sua gratidão não decaiu, já que, em 1861, reaparece na Austrália, sempre com aquele nome: Tom Castro. Em Sydney conheceu um tal de Bogle, um criado negro. Bogle, sem ser bonito, tinha aquele ar repousado e monumental, aquela solidez de obra de engenharia que tem o homem negro entrado em anos, em carnes e autoridade. Tinha uma segunda condição, que determinados manuais de etnografia negaram à sua raça: a da inspiração genial. Logo veremos a prova. Era um varão morigerado e decente, com os antigos apetites africanos muito corrigidos pelo uso e abuso do calvinismo. Com exceção das visitas do deus (que descreveremos depois) era absolutamente normal, sem outra irregularidade além de um medo pudico e persistente que o detinha nos cruzamentos, receando, a leste, oeste, sul e norte, o violento veículo que daria fim a seus dias.
Orton o viu num entardecer numa desguarnecida esquina de Sydney tentando se decidir para sortear a morte imaginária. Depois de observá-lo por longo tempo, ofereceu-lhe o braço e os dois atravessaram aterrorizados a rua inofensiva. Desde aquele instante de um entardecer já defunto, estabeleceu-se um protetorado: o do negro inseguro e monumental sobre o obeso palerma de Wapping. Em setembro de 1865, ambos leram num diário local um desolado aviso.

O IDOLATRADO HOMEM MORTO

Nos últimos dias de abril de 1854 (enquanto Orton provocava as efusões da hospitalidade chilena, ampla como seus pátios), naufragou nas águas do Atlântico o vapor Mermaid, procedente do Rio de Janeiro, rumo a Liverpool. Entre os que pereceram estava Roger Charles Tichborne, militar inglês criado na França, morgado de uma das principais famílias católicas da Inglaterra. Parece inverossímil, mas a morte daquele jovem afrancesado, que falava inglês com o mais fino sotaque de Paris e despertava aquele incomparável rancor que só causam a inteligência, a graça e o pedantismo franceses, foi um acontecimento transcendental no destino de Orton, que jamais o vira. Lady Tichborne, a mãe horrorizada de Roger, recusou-se a crer na morte dele e publicou desconsolados anúncios nos jornais de mais ampla circulação. Um desses anúncios caiu nas brandas mãos funerárias do negro Bogle, que concebeu um projeto genial.

AS VIRTUDES DA DISPARIDADE

Tichborne era um esbelto cavalheiro de ar retraído, com traços agudos, a tez morena, cabelo preto e liso, os olhos vivos e a palavra de uma precisão de imediato incômoda; Orton era um pateta transbordante, de vasto abdômen, traços de uma infinita vagueza, cútis que puxava para a de um sardento, cabelo castanho encaracolado, olhos dorminhocos e conversação ausente ou apagada. Bogle inventou que o dever de Orton era embarcar no primeiro vapor para a Europa e satisfazer a esperança de Lady Tichborne, declarando ser seu filho. O projeto era de uma insensata engenhosidade. Procuro um exemplo fácil. Se um impostor em 1914 tivesse pretendido se fazer passar pelo imperador da Alemanha, a primeira coisa que teria falsificado seriam os bigodes ascendentes, o braço morto, o cenho autoritário, a capa cinza, o ilustre peito condecorado e o alto elmo. Bogle era mais sutil: teria apresentado um kaiser imberbe, alheio a atributos militares e a águias honrosas e com o braço esquerdo num estado de indubitável saúde. É inútil tornar precisa a metáfora; consta que apresentou um Tichborne balofo, com o amável sorriso de imbecil, cabelo castanho e uma irretocável ignorância do idioma francês. Bogle sabia que um fac-símile perfeito do desejado Roger Charles Tichborne era impossível obter. Sabia também que todas as similitudes alcançadas não fariam outra coisa além de destacar certas diferenças inevitáveis. Renunciou, pois, a toda semelhança. Intuiu que a enorme inépcia da pretensão seria uma prova convincente de que não se tratava de uma fraude, pois ninguém teria negligenciado desse modo flagrante os traços mais singelos de convicção. É preciso não esquecer também a colaboração todo-poderosa do tempo: catorze anos de hemisfério austral e de acaso podem mudar um homem.
Outra razão fundamental: Os repetidos e insensatos anúncios de Lady Tichborne demonstravam sua absoluta segurança de que Roger Charles não havia morrido, sua vontade de reconhecê-lo.

O ENCONTRO

Tom Castro, sempre serviçal, escreveu a Lady Tichborne. Para fundar sua identidade, invocou a prova fidedigna de duas pintas localizadas no mamilo esquerdo e daquele episódio de sua infância, tão aflitivo e por isso mesmo tão memorável, quando foi atacado por um enxame de abelhas. O comunicado era breve e, à semelhança de Tom Castro e de Bogle, prescindia de escrúpulos ortográficos. Na imponente solidão de um hotel de Paris, a dama leu-o e releu-o com lágrimas felizes, e em poucos dias encontrou as lembranças que lhe pedia seu filho.
No dia 16 de janeiro de 1867, Roger Charles Tichborne se fez anunciar naquele hotel. Foi precedido por seu respeitoso criado, Ebenezer Bogle. O dia de inverno era de muitíssimo sol; os olhos cansados de Lady Tichborne estavam velados de pranto. O negro abriu de par em par as janelas. A luz serviu de máscara: a mãe reconheceu o filho pródigo e lhe franqueou seu abraço. Agora que de fato o tinha, podia prescindir do diário e das cartas que ele lhe mandara do Brasil: meros reflexos adorados que haviam alimentado sua solidão de catorze anos lúgubres. Devolvia-as a ele com orgulho: não faltava nenhuma.
Bogle sorriu com toda a discrição: o plácido fantasma de Roger Charles tinha já onde se documentar.

AD MAJOREM DEI GLORIAM

Esse feliz reconhecimento — que parece cumprir uma tradição das tragédias clássicas — deveria coroar esta história, deixando três felicidades asseguradas ou ao menos prováveis: a da mãe verdadeira, a do filho apócrifo e tolerante, a do conspirador recompensado pela apoteose providencial de sua indústria. O Destino (tal é o nome que aplicamos à infinita operação incessante de milhares de causas entrelaçadas) não o resolveu assim. Lady Tichborne morreu em 1870 e os parentes moveram uma ação contra Arthur Orton por usurpação de estado civil. Desprovidos de lágrimas e de solidão, mas não de cobiça, jamais acreditaram no obeso e quase analfabeto filho pródigo que ressurgiu tão intempestivamente da Austrália. Orton contava com o apoio dos inumeráveis credores que haviam determinado que ele era Tichborne, para que pudesse pagar-lhes.
Da mesma forma contava com a amizade do advogado da família, Edward Hopkins, e com a do antiquário Francis J. Baigent. Isso, porém, não bastava. Bogle pensou que, para ganhar a partida, era imprescindível o favor de uma forte corrente popular. Solicitou a cartola e o distinto guarda-chuva e foi buscar inspiração pelas ruas decorosas de Londres. Era no entardecer; Bogle vagou até que uma lua da cor do mel se duplicou na água retangular das fontes públicas. O deus visitou-o. Bogle chamou uma carruagem e se fez conduzir ao apartamento do antiquário Baigent. Este enviou uma longa carta ao Times, que assegurava que o suposto Tichborne era um descarado impostor. Era assinada pelo padre Goudron, da Companhia de Jesus. Outras denúncias igualmente papistas a sucederam. O efeito foi imediato: as boas pessoas não deixaram de adivinhar que Sir Roger Charles era vítima de um complô abominável dos jesuítas.

A CARRUAGEM

Cento e noventa dias durou o processo. Cerca de cem testemunhas juraram que o acusado era Tichborne — entre eles, quatro companheiros de armas do regimento 6 dos dragões. Seus partidários não paravam de repetir que não era um impostor, já que, se fosse, teria procurado remedar os retratos juvenis de seu modelo. Além disso, Lady Tichborne o reconhecera e é evidente que uma mãe não se engana. Tudo ia bem, ou mais ou menos bem, até que uma antiga amante de Orton compareceu perante o tribunal para fazer sua declaração. Bogle não se alterou com aquela pérfida manobra dos “parentes”; solicitou cartola e guarda-chuva e foi implorar uma terceira iluminação pelas decorosas ruas de Londres. Nunca saberemos se a encontrou. Pouco antes de chegar a Primrose Hill, atingiu-o o terrível veículo que do fundo dos anos o perseguia. Bogle viu-o vir, soltou um grito, mas não atinou com a salvação. Foi projetado com violência contra as pedras. Os vertiginosos cascos do matungo partiram-lhe o crânio.

O ESPECTRO

Tom Castro era o fantasma de Tichborne, mas um pobre fantasma habitado pelo gênio de Bogle. Quando lhe disseram que este tinha morrido, ficou aniquilado. Continuou mentindo, mas com escasso entusiasmo e com disparatadas contradições. Era fácil prever o fim.
No dia 27 de fevereiro de 1874, Arthur Orton, aliás, Tom Castro, foi condenado a catorze anos de trabalhos forçados. No cárcere, soube se fazer querer; era seu ofício. O comportamento exemplar valeu-lhe uma redução de quatro anos. Quando aquela hospitalidade afinal o deixou — a da prisão —, percorreu as aldeias e os centros do Reino Unido, pronunciando pequenas conferências nas quais declarava sua inocência ou afirmava sua culpa. Sua modéstia e seu anseio de agradar eram tão duradouros que muitas noites começou pela defesa e acabou pela confissão, sempre a serviço das inclinações do público.
No dia 2 de abril de 1898 morreu.

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia

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