sábado, 23 de abril de 2022

Haveria um caminho

Gago de medo o homem fora ao dentista que, para distraí-lo e trabalhar em paz, enquanto lhe metia o boticão, metia-lhe também uma agulha na popa. Que raiz funda, doutor!
Viu só? E exibiu-lhe o molar.
Pois foi desta anedota ingênua que me lembrei naquela madrugada, quando não me aguentava mais de chorar e ter medo. Haveria um caminho. Era impossível rir daquele modo, de minha própria sorte. Decidi que devia a algumas pessoas o comunicado da minha sina. Precisava também pedir orações. Começando pelos parentes, fiz uma lista. Podia ter deixado de fora a Cleonir do Januário, sempre me tratando com acidez, sempre me desengraçando com palavras pontiagudas. Moveu-me decerto a estupidez, disfarçando de humildade meu orgulho ferido: olha aqui, Cleonir, você é um limão rançoso, mas venho te contar, eu, que não sou rançosa e desde criança sou amada e festejada por isso e por aquilo, estou com doença grave. Será o que aconteceu? Ela só disse oh! E dias depois me mandou uma mudinha de mirra. Tudo esquisito, por que mirra? Seu óleo precioso não é para embalsamar? “Ela me unge para a sepultura”, ó Cristo, era de gelar, eu transpirava medo. Admiro quem diz eu não perdoo, parece forte e sem culpa, parece da lei mosaica, o próprio Javé vingando-se, humano como um chefe tribal. Nasci perdoando, perdoo fácil, guardo tão bem segredos que os esqueço. O que me impediu ter sido uma criança como o menino Ivã do filme russo? Careço de um perfil, careço tanto, pareço um cristão-novo, batizada, continuo querendo cortar cabeças. Mas, ainda que mal, amo Jesus Cristo. Ainda na bruma uma ideia, um esboço de ideia parece importante: eu também sou forte, também não perdoo, só que a mim mesma, não me amo, não me protejo, não tenho pena de mim. Por isso fui contar à Cleonir o que Deus me pedia, por isso ofereci a cabeça à sanha da predadora. Tenho, sim, um perfil, minha vida tem um roteiro, A infância de Olímpia, formo com os terráqueos, tive câncer, descansei em minha própria fraqueza.

Adélia Prado, in Quero minha mãe

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