quarta-feira, 20 de abril de 2022

A viúva ching, pirata

A palavra corsárias corre o risco de despertar uma lembrança que é vagamente incômoda: a de uma zarzuela já desbotada, com suas óbvias teorias de mucamas, que faziam o papel de piratas coreográficas em mares de visível papelão. No entanto, existiram corsárias: mulheres hábeis na manobra marinheira, no governo de tripulações bestiais e na perseguição e saque de naves de alto bordo. Uma delas foi Mary Read, que uma vez declarou que a profissão de pirata não era para qualquer um; para exercê-la com dignidade, seria preciso ser um homem de coragem, como ela. Nos rudes inícios de sua carreira, quando ainda não era capitã, um de seus amantes foi injuriado pelo valentão de bordo. Mary desafiou-o para um duelo, e lutou com ele com as duas mãos, segundo um antigo uso das ilhas do mar do Caribe: a comprida e precária pistola na mão esquerda, o sabre fiel na direita. A pistola falhou, mas a espada se portou bem… Por volta de 1720 a arriscada carreira de Mary Read foi interrompida por uma forca espanhola, em Santiago de la Vega (Jamaica).
Outra pirata daqueles mares foi Anne Bonney, que era uma irlandesa resplandecente, de seios altos e cabelo fogoso, que mais de uma vez arriscou o corpo na abordagem de naves. Foi companheira de armas de Mary Read, e finalmente de forca. Seu amante, o capitão John Rackam, teve também seu nó corrediço nessa função. Anne, desdenhosa, deu com aquela áspera variante da recriminação de Aixa a Boabdil: “Se tivesses lutado como um homem, não te enforcariam como a um cão”.
Outra, mais venturosa e longeva, foi uma pirata que operou nas águas da Ásia, do mar Amarelo até os rios da fronteira do Annam. Falo da aguerrida viúva de Ching.

OS ANOS DE APRENDIZAGEM

Por volta de 1797, os acionistas das muitas esquadras piráticas daquele mar fundaram um consórcio e nomearam almirante um tal Ching, homem justiceiro e experiente. Este foi tão severo e exemplar no saque das costas, que os habitantes apavorados imploraram com dádivas e lágrimas o socorro imperial. Sua lastimosa petição não deixou de ser ouvida: receberam ordem de pôr fogo em suas aldeias, de esquecer seus afazeres de pesca, de emigrar terra adentro e de aprender uma ciência desconhecida chamada agricultura. Assim o fizeram, e os invasores frustrados não encontraram senão costas desertas. Tiveram de se entregar, em consequência, ao assalto de naves: depredação ainda mais nociva que a anterior, pois prejudicava seriamente o comércio. O governo imperial não vacilou e ordenou aos antigos pescadores o abandono do arado e das juntas de bois, bem como a restauração de remos e redes. Eles amotinaram-se, fiéis ao antigo temor, e as autoridades decidiram-se por outra conduta: nomear o almirante Ching chefe dos Estábulos Imperiais. Ele ia aceitar o suborno. Os acionistas souberam a tempo, e sua virtuosa indignação manifestou-se num prato de urtigas envenenadas, cozidas com arroz. A guloseima foi fatal: o antigo almirante e chefe novel dos Estábulos Imperiais entregou a alma às divindades do mar. A Viúva, transfigurada pela dupla traição, congregou os piratas, revelou-lhes o enredado caso e instou-os a recusar a clemência falaz do imperador e o ingrato serviço dos acionistas de tendência envenenadora. Propôs a eles a abordagem por conta própria e a votação de um novo almirante. A escolhida foi ela. Era uma mulher ossuda, de olhos sonolentos e sorriso cariado. O cabelo retinto e oleoso resplandecia mais que os olhos.
Às suas ordens tranquilas, as naves lançaram-se ao perigo e ao alto-mar.

O COMANDO

Sucederam-se treze anos de metódica aventura. Seis esquadras integravam a armada, sob bandeiras de cor diferente: a vermelha, a amarela, a verde, a negra, a arroxeada e a da serpente, que era a da nave capitânia. Os chefes chamavam-se Pássaro e Pedra, Castigo da Água da Manhã, Joia da Tripulação, Onda de Muitos Peixes e Sol Alto. O regulamento, redigido pela viúva Ching em pessoa, é de uma inapelável severidade, e seu estilo justo e lacônico prescinde das desmaiadas flores retóricas que emprestam majestade propriamente irrisória à maneira chinesa oficial, de que depois ofereceremos alguns alarmantes exemplos. Copio alguns artigos:
Todos os bens transbordados das naves inimigas passarão a um depósito e serão ali registrados. Uma quinta parte do que cada pirata arrecadava lhe será entregue mais tarde; o resto ficará no depósito. A violação desta ordem é a morte.
A pena do pirata que tiver abandonado seu posto sem permissão especial será a perfuração pública de suas orelhas. A reincidência nesta falta é a morte.
O comércio com as mulheres arrebatadas nas aldeias fica proibido na coberta; deverá limitar-se ao porão e nunca sem a permissão do responsável pela carga. A violação desta ordem é a morte.”
Informes subministrados por prisioneiros asseguram que o rancho daqueles piratas consistia principalmente em bolacha, em obesas ratazanas cevadas e arroz cozido; nos dias de combate, costumavam misturar pólvora a seu álcool. Cartas e dados fraudulentos, o copo e o retângulo do fantan, o visionário cachimbo de ópio e a lanterna mágica ocupavam as horas. Duas espadas de uso simultâneo eram as armas preferidas. Antes da abordagem aspergiam as faces e o corpo com uma infusão de alho, talismã infalível contra os ataques das bocas de fogo.
A tripulação viajava com suas mulheres, mas o capitão com seu harém, que era de cinco ou seis delas, renovadas a cada vitória, segundo o costume.

FALA KIA-KING, O JOVEM IMPERADOR

Em meados de 1809, foi promulgado um edito imperial, de que transcrevo a primeira e a última parte. Muitos criticaram seu estilo:
Homens desventurados e daninhos, homens que pisam o pão, homens que desatendem o clamor dos cobradores de impostos e dos órfãos, homens em cuja roupa de baixo figuram a fênix e o dragão, homens que negam a verdade dos livros impressos, homens que deixam as lágrimas correrem mirando o norte, prejudicam o bem-estar de nossos rios e a antiga confiança de nossos mares. Em navios avariados e desprezíveis afrontam noite e dia a tempestade. Seu objetivo não é benévolo: não são nem nunca foram os verdadeiros amigos do navegante. Longe de lhe prestar ajuda, acometem-no com ferocíssimo ímpeto e o convidam à ruína, à mutilação ou à morte. Violam assim as leis naturais do Universo, de modo que os rios transbordam, as margens se inundam, os filhos se voltam contra os pais e os princípios de umidade e seca são alterados…
[…] Por conseguinte, encomendo-te o castigo, almirante Kvo-Lang. Não lances no esquecimento que a clemência é um atributo imperial e que seria presunção um súdito tentar assumi-la. Sê cruel, sê justo, sê obediente, sê vitorioso.”
A referência incidental às embarcações avariadas era, naturalmente, falsa. Seu fito era levantar o ânimo da expedição de Kvo-Lang. Noventa dias mais tarde, as forças da viúva Ching se enfrentaram com as do Império Central. Quase mil naves combateram de sol a sol. Um coro misto de sinos, de tambores, de canhonaços, de imprecações, de gongos e de profecias acompanhou a ação. As forças do Império foram desbaratadas. Nem o vedado perdão nem a recomendada crueldade tiveram ocasião de ser exercidas. Kvo-Lang observou um rito que nossos generais derrotados optam por omitir: o suicídio.

AS RIBEIRAS APAVORADAS

Então os seiscentos juncos de guerra e os quarenta mil piratas vitoriosos da Viúva soberba remontaram ao estuário do Si-Kiang, multiplicando incêndios e festas espantosas e órfãos a bombordo e a estibordo. Houve aldeias inteiras arrasadas. Numa só delas, o número de prisioneiros passou de mil. Cento e vinte mulheres que solicitaram o confuso amparo dos juncais e arrozais vizinhos foram denunciadas pelo irrefreável choro de uma criança e logo vendidas em Macau. Embora distantes, as miseráveis lágrimas e lutos daquela depredação chegaram aos ouvidos de Kia-King, o Filho do Céu. Certos historiadores pretendem que o condoeram menos que o desastre de sua expedição punitiva. A verdade é que organizou uma segunda, terrível em estandartes, em marinheiros, em soldados, em apetrechos de guerra, em provisões, em áugures e astrólogos. O comando recaiu dessa vez em Ting-Kvei. Essa pesada multidão de naves remontou ao delta do Si-Kiang e fechou a passagem da esquadra dos piratas. A Viúva preparou-se para a batalha. Sabia-a difícil, muito difícil, quase desesperada; noites e meses de saque e de ócio haviam afrouxado seus homens. A batalha não começava nunca. Sem pressa o sol se levantava e se punha sobre os caniços trêmulos. Os homens e as armas velavam. Os meios-dias eram mais poderosos, as sestas, infinitas.

O DRAGÃO E A RAPOSA

Contudo, altos bandos preguiçosos de leves dragões surgiam cada entardecer das naves da esquadra imperial e pousavam com delicadeza na água e nas cobertas inimigas. Eram construções aéreas de papel e caniço, feito cometas, e sua superfície prateada ou vermelha repetia idênticos caracteres. A Viúva examinou com ansiedade aqueles meteoros regulares e leu neles a lenta e confusa fábula de um dragão que sempre protegera uma raposa, apesar de suas persistentes ingratidões e constantes delitos. Afinou-se no céu a lua, e as figuras de papel e caniço traziam toda tarde a mesma história, com variantes quase imperceptíveis. A Viúva afligia-se e pensava. Quando a lua se tornou cheia no céu e na água avermelhada, a história pareceu chegar ao fim. Ninguém podia predizer se um ilimitado perdão ou se um ilimitado castigo se abateria sobre a raposa; o fim inevitável aproximava-se. A Viúva compreendeu. Jogou suas duas espadas no rio, ajoelhou-se num bote e ordenou que a conduzissem até a nave do comando imperial.
Era no entardecer: o céu estava cheio de dragões, dessa vez amarelos. A Viúva murmurava uma frase: “A raposa procura a asa do dragão”, disse ao subir a bordo.

A APOTEOSE

Os cronistas relatam que a raposa obteve o perdão e dedicou sua lenta velhice ao contrabando de ópio. Deixou de ser a Viúva; assumiu um nome cuja tradução vernácula é Brilho da Verdadeira Instrução.
Desde aquele dia”, escreve um historiador, “os navios recuperaram a paz. Os quatro mares e os rios inumeráveis se tornaram seguros e felizes caminhos.
Os lavradores puderam vender as espadas e comprar bois para o arado de seus campos. Fizeram sacrifícios, ofereceram orações nos cumes das montanhas e se regozijaram durante o dia cantando atrás de biombos.”

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia

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