Existem
algumas formas para evitar as discussões inerentes numa relação.
Dividir tarefas é uma. Exemplo: se estão num apartamento, ela pega
o jornal no hall, ele, o delivery na portaria.
Outro?
Ela passeia com o cachorro de dia, ele, à noite. Ela o leva à tosa
e banho, ele, ao veterinário. Ela dá a ração, ele limpa os
excrementos.
Com
a repetição e o consenso, acomodam os conflitos e aumentam as
chances de ser estabelecida a paz. Mas o que realmente ajuda uma
relação é a alternância de quem escolhe o que fazer aos sábados.
Sábado
à tarde.
Comida
costuma causar muita polêmica, pois ele prefere sempre os mesmos
restaurantes, e ela, o novo, restaurantes étnicos que saem nos
guias, recomendados por críticos gastronômicos e colunas sociais.
Prático,
ele gosta de rodízio. Especialmente de churrascarias. De dia ou de
noite, não faz diferença: pede farofa com ovo e bacon. Gosta também
de cantinas italianas tradicionais, daquelas com massas grossas e
fartura de molho. Ele sempre pede torradas com alho de entrada. E
polenta frita. Bebe refrigerantes. Ou caipirinha de limão com pinga
mineira. Sem açúcar.
Já
ela gosta de grelhados com salada, pratos com ricota, tomate picado e
manjericão. Bebe suco. Ou caipirinha de frutas vermelhas com saquê.
E adoçante.
Ele
coloca manteiga no pão. Ela, azeite. Ele gosta de picanha. Ela, de
paillard. Ele pede maionese extra. Ela pede para tirar. Ele pede
espaguete. Ela, meio pene. Ele encara um carneiro com batatas. Ela
prefere um atum ou salmão com brócolis.
No
entanto, na sobremesa, a preocupação com a taxa de triglicerídeos
inverte. Ele pede um café, ela, um petit gâteau com sorvete de
creme, calda de chocolate extra e farofinha.
Sábado
à noite.
O
programa é cinema! Quando ele escolhe, geralmente são filmes de
guerra, policial ou terror. Que concorrem a algum Oscar técnico:
efeitos especiais, montagem, edição de som ou maquiagem.
Na
fila do cinema, encontram o dentista, o professor de caratê da
infância, filhos de amigos, a secretária da firma e o seu namorado
forte, e um ex de quem ela nem lembra o nome.
Os
protagonistas do filme têm tríceps, bíceps e deltoides bem
trabalhados. E costumam exibi-los em camiseta regata. Têm barba
bem-feita e seguram qualquer arma com intimidade, de um simples
revólver a uma submetralhadora com mira a laser. Sabem onde
destravá-las e como apontá-las. E só viajam de primeira classe.
Todos
violentos. Todos com cenas de perseguição. Todos com heroínas
loiras e saradas. As traições são resolvidas na porrada. A
vingança? Dão um tiro na testa do infeliz. Sempre há em jogo uma
maleta de dinheiro. Quando não, há uma maleta com uma bomba
complexa.
Há
vilão, e ele costuma ser feio. Ou tem uma deformidade de nascença
ou uma deficiência adquirida. A grande ambição do protagonista não
é uma lancha ou um avião particular, mas voltar para a paz da sua
casinha com o seu cachorro labrador. A loira é detalhe. Ele sabe
muito bem que, depois de suar em bicas, ela irá para os seus ombros
salientes. Apesar de vestir a mesma camiseta.
O
casal chama de “filme de menino”.
São
exibidos em salas enormes, as maiores dos shoppings, com tecnologia
de ponta na compra de ingressos, poltronas, imagem e som digital. Até
os estacionamentos têm guaritas com cancelas automáticas, daquelas
que falam sozinhas.
Só
o preço dos ingressos incomoda. Com o dinheiro que gastam, pagariam
tranquilamente um combinado duplo num japa de respeito; sem modismos.
Mas ela não reclama. Sugere o jantar num fast-food da praça de
alimentação, para compensar o preju.
No
outro fim de semana, a garota escolhe o filme. Geralmente foi
premiado no festival de Cannes, Veneza ou Berlim. Tem bom roteiro,
diálogos inteligentes e atores magros e pálidos. Os personagens não
dão um tiro durante o filme. Se rolar uma arma, logo a dispensam:
são da paz. E têm gatos.
Na
fila do cinema, encontram o terapeuta, um colunista de jornal, pais
de amigos, o dono da firma com a sua amante francesa, o professor de
ioga, e o ex mais recente, que acabou de chegar do Nepal e tem mil
novidades.
Ela
gosta de filmes multiculturais que discutem preconceitos e tabus.
Certamente, também exploram a relação amorosa, os seus caprichos e
a relação entre pais e filhos. Existem amantes. As traições são
resolvidas com muito papo.
Há
referências históricas. São falados em espanhol, francês, árabe
ou chinês. O enredo gira em torno de dilemas existenciais. Nos
créditos, agradecem a vários institutos e parcerias. Não há uma
distribuidora de peso por trás. O logo da produtora é antiquado e
repleto de riscos.
Há
cenas longas, escuras, filmadas por uma câmera que não sai do
lugar. Os personagens não se vingam, conciliam-se. Estão sempre
duros e não se xingam. A maior ambição é entender o sentido da
vida. Viajam de classe econômica.
Os
finais são em aberto. E ele sempre pergunta para ela o que, afinal,
aconteceu. Ele não entende direito quem é o bem e quem é o mal.
Sim, tais filmes não têm vilões. Aparentemente, o vilão está
dentro de cada um nós: é a mensagem que querem passar.
O
casal chama de “filme de menina”.
São
exibidos em salas pequenas, cinemas que parecem cineclubes, onde se
estaciona na rua. A pipoca é amadora — fria e mole —, vendida
por um pipoqueiro na calçada. As poltronas seguem uma moda retrô.
Normalmente, têm a cor do vazamento do teto. O ar-condicionado é
temperamental: muito frio em dia frio, e preguiçoso em dia quente.
Ao
menos, sobra dinheiro para tomarem um saquê californiano no japa em
questão.
É
evidente que tudo isso não passa de um clichê barato, resultado de
estereótipos e generalizações. Mas domingo não tem jeito: é
sempre a mesma coisa.
Ela
dorme pesado. Ele liga a tevê para ver a corrida. Ele toma café.
Ela, chá. Ele faz um ovo frito. Ela toma iogurte que ativa o
intestino. Ela demora horas no chuveiro. Ele, no toalete.
À
tarde. Ela quer visitar a família. Ele, nem preciso falar: assinou o
canal Pay-per-view do campeonato em disputa, logo... Para a sorte
dele, começa a chover. Ela fica no telefone, ele na tevê.
À
noite é batata, digo, pizza. Adivinha quem pede meia calabresa e
quem pede meia rúcula com tomate seco?
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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