sábado, 19 de março de 2022

Red tenta capturar uma sombra

Ela prepara armadilhas. Ela volta no tempo para construir becos de história; ela enreda filamentos. Sua vítima, de quem por sua vez ela é a vítima, escapa, deixando ora um som, ora um gosto no ar, nada tão grandioso quanto uma linha presa em um espinho.
Nas fazendas de servidores fio abaixo, alojadas nos corações de icebergs remanescentes, ela dá a volta em seu próprio rastro, vislumbra a sombra, dispara sua pistola de dardos pelas lacunas da nuvem, fazendo nascer faíscas azuis.
Na corte de Asoka, uma acrobata, ela escala, pula e gira, vasculhando uma multidão de mil pessoas em busca de um único predador, um observador que não deveria estar ali. Ela fareja a sombra e o cheiro lhe escapa.
Ela invade as ruínas da muralha de Jericó, e nas ruas densas ouve um passo sobre pedra, fora de lugar. Ela se vira, prepara, solta. Uma flecha se crava na pedra.
Red faz varreduras por uma floresta de cristal pulsando brilhante com seres humanos cujos corpos físicos foram derretidos, como gordura de bacon, até a fragrância de suas mentes se expandirem e ocuparem todo o espaço. A coisa que está procurando, o que está procurando por ela, não a pega ali, embora Red também não a pegue.
Ela encontra uma possibilidade significativa perto do leito de um rio e espera. Não sabe por que acha que a sombra irá lhe visitar ali, mas sente que está começando a conhecer a coisa, seus hábitos, quando ela a visita e quando mantém distância. Red semeia o ar com nanorrobôs, entrelaça serviçais na grama; ela prepara drones espiões e câmeras sentinelas; designa um satélite a seu serviço. Ela observa o rio, cautelosa, quieta, por sete meses. Ela pisca uma vez, e quando abre os olhos, sente que o momento passou: a sombra esteve ali e se foi, e ela não descobriu nada. Nenhuma armadilha foi acionada, os nanorrobôs falharam em registrar uma presença, as câmeras foram uma a uma desligadas, e o satélite orbita mudo e quebrado.
Red anseia pelas cartas guardadas atrás de seu olho.
Ela não consegue respirar. Uma enorme mão lhe aperta o peito, esmagando. Ela se sente presa em sua pele, limitada sob seu crânio. Sonhos ajudam, e memórias, mas sonhos e memórias não são o bastante. Ela quer imaginar uma risada. Precisa esperar. Não consegue esperar.
Bem longe fio acima, ela se senta sob algo parecido com um salgueiro em um pântano de dinossauros, segura uma semente de sumagre ente os dentes e morde.
Red fica ali parada por algumas horas. A noite cai. O vento farfalha nas samambaias. Um apatossauro passa, eriçando as penas.
Ela se deixa sentir. Os órgãos que protegem suas emoções das respostas físicas param de funcionar, e tudo que ela mantinha escondido se liberta. Seu coração se aperta. Ela ofega, e se sente tão sozinha.
Uma mão pousa em seu ombro.
Red agarra o pulso da sombra.
A sombra a empurra e ela, por sua vez, empurra a sombra. Elas rolam na vegetação rasteira; se chocam contra um enorme tronco de cogumelo. Pequenos lagartos escapolem. A sombra está de pé, mas Red enlaça sua perna nas dela, derrubando-a. Ela tenta uma chave de perna, mas suas próprias pernas são travadas. Ela se liberta, dá três, quatro socos, todos facilmente bloqueados. Implantes queimam. Asas se abrem de suas costas para liberar o calor residual; ela bate forte. Acerta a sombra nas costelas, mas aqueles ossos não quebram. A sombra flutua atrás dela, toca seu ombro, e seu braço fica mole. Red joga seu peso para trás, agarra o braço da sombra enquanto cai. Elas escorregam juntas na lama. Os dedos de Red viram garras. Ela tenta encontrar a garganta. Encontra. Aperta.
E de algum modo a sombra se solta e a deixa caída, resfolegando furiosa, sozinha na lama.
Ela amaldiçoa as estrelas e assiste à noite jurássica.
Red não aguenta mais esperar.
Ela se levanta, cambaleia até um rio, lava as mãos. Tira o olho esquerdo com seu polegar e tateia a órbita até encontrar as três sementes de sumagre. (A que comeu antes era falsa.)
Foda-se a segurança. Foda-se a sombra.
Red sabe o que é fome agora.
Ela come a primeira semente sob a copa das árvores.
Ela engasga. Se encolhe. Não consegue respirar. Seu coração se parte e ela desmorona.
Os órgãos, ela se lembra, estão desligados. Essa dor é nova.
Ela não os religa antes de comer a segunda semente.
No pântano, grandes bestas ecoam seus gemidos. Ela não é mais uma pessoa. Ela é um sapo; ela é um coelho na mão do caçador; ela é um peixe. Ela é, brevemente, Blue, sozinha com Red, e juntas.
Ela come a terceira carta.
O silêncio clama o pântano.
O gosto residual ferroa sua língua e a preenche. Ela chora, e ri entre as lágrimas, e se deixa cair. Podem encontrá-la, matá-la, ali. Ela não se importa.
Entre os dinossauros, Red dorme.
A Rastreadora, enlameada, surrada, cortada, a encontra adormecida, toca suas lágrimas com uma mão sem luva, e as prova antes de ir.

Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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