A
clínica de desintoxicação West Oakland ficava num lugar onde antes
havia um armazém. É escura por dentro e ecoa como uma garagem
subterrânea. Os quartos, uma cozinha e o escritório dão para um
amplo salão. No meio do salão ficam uma mesa de sinuca e a arena da
tevê. Chamam de arena porque as paredes em volta só têm um metro e
meio de altura, para que os terapeutas possam olhar lá para dentro.
A
maioria dos pacientes internados estava na arena, de pijama azul,
vendo Leave It to Beaver. Bobo segurava uma xícara de chá
para Carlotta beber. Os outros homens estavam rindo do fato de ela
ter saído correndo pelo pátio de manobras da ferrovia, tentando
entrar debaixo da locomotiva. A Amtrak de Los Angeles tinha parado.
Carlotta também estava rindo. Todos eles correndo pela arena de
pijama. Não que ela não ligasse para o que tinha feito. Ela
simplesmente não se lembrava, não reconhecia aquela ação de forma
alguma.
Milton,
um terapeuta, veio até a beira da arena.
“Quando
vai ser a luta?”
“Daqui
a duas horas.” Benitez e Sugar Ray Leonard iam disputar o título
da categoria meio-médio.
“Sugar
Ray vai levar, fácil.” Milton sorriu para Carlotta e os homens
fizeram comentários, piadas. Ela conhecia a maioria dos homens de
outras internações ali e em clínicas de desintoxicação de
Hayward, Richmond e San Francisco. Bobo ela conhecia também da ala
psiquiátrica de Highland.
Todos
os vinte pacientes estavam na arena agora, com travesseiros e
cobertores, amontoados como crianças de jardim de infância na hora
da soneca. Desenhos de Henry Moore de pessoas em abrigos antiaéreos.
Na tevê, Orson Welles dizia: “Nós não vendemos nenhum vinho
antes da hora”. Bobo riu e disse: “Tá na hora, irmão, tá na
hora!”.
“Para
de tremer, mulher! Tá bagunçando a televisão.”
Um
homem com dreadlocks se sentou do lado de Carlotta e pôs a mão na
parte interna da coxa dela. Bobo segurou o pulso do homem. “Tira a
mão, senão eu quebro.” O velho Sam chegou enrolado num cobertor.
Não havia calefação e estava um frio de lascar.
“Senta
ali nos pés dela. Vê se faz eles pararem de tremer.”
Papai
batuta estava quase no fim. Clifton Webb morreu e Myrna Loy foi
para a faculdade. Willie disse que tinha gostado da Europa porque lá
as pessoas brancas eram feias. Carlotta não entendeu o que ele quis
dizer, mas depois se deu conta de que as únicas pessoas que os
beberrões solitários veem são as que aparecem na televisão. Às
três da manhã ela costumava esperar para ver Jack, o estripador,
dos Datsuns usados. Retalhando preços. Só cortando e mutilando.
A
televisão era a única luz acesa na clínica. Era como se a arena
fosse um ringue enfumaçado só deles, com o ringue de boxe em cores
no meio. A voz do locutor era estridente. O prêmio desta noite é de
um milhão de dólares! Todos os homens estavam apostando em Sugar
Ray, teriam apostado. Bobo disse a Carlotta que alguns dos homens que
estavam ali nem sequer eram alcoólatras, só tinham fingido que
precisavam se desintoxicar para poder assistir à luta.
Carlotta
estava torcendo para Benitez. Você gosta de meninos bonitos, né,
amor? Benitez era bonito, tinha feições delicadas, um bigode bem
cuidado. Pesava sessenta e cinco quilos, tinha ganhado seu primeiro
campeonato aos dezessete anos. Sugar Ray Leonard era só ligeiramente
mais pesado, mas parecia muito mais alto, sem se mexer. Os dois
homens se encontraram no meio do ringue. Não se ouvia um ruído. A
multidão na tevê e os pacientes na arena prenderam a respiração
quando os boxeadores se encararam, rodeando-se, sinuosos, olhos nos
olhos.
No
terceiro assalto um gancho rápido de Leonard derrubou Benitez no
chão. Ele se levantou num segundo, com um sorriso infantil no rosto.
Constrangido. Eu não imaginava que isso fosse acontecer comigo.
Naquele momento os homens na arena da tevê começaram a querer que
ele ganhasse.
Ninguém
se mexia, nem mesmo durante os comerciais. Sam ficou enrolando
cigarros durante a luta inteira e passando-os para os outros. Milton
veio para a beira da arena durante o sexto assalto, justo quando
Benitez levou um soco na testa, o único golpe a lhe deixar uma marca
naquela luta. Milton viu o sangue refletido nos olhos de todos, no
suor de todos.
“Não
é de espantar… é lógico que vocês todos iam torcer por um
perdedor”, ele disse.
“Silêncio!
Oitavo assalto.”
“Vamos
lá, garoto, aguenta firme.”
Eles
não estavam pedindo para Benitez ganhar, só para continuar na luta.
E ele fez isso, continuou na luta. No nono assalto ele cravou um soco
e recuou, depois um gancho de esquerda o levou para as cordas e um de
direita o fez cuspir o protetor bucal.
Décimo
assalto, décimo primeiro, décimo segundo, décimo terceiro, décimo
quarto. Ele continuou na luta. Ninguém dizia uma palavra na arena.
Sam tinha pegado no sono.
O
sino tocou anunciando o último assalto da luta. O estádio estava
tão silencioso que deu para ouvir Sugar Ray Leonard sussurrar. “Ai,
meu Deus. Ele continua em pé.”
Mas
o joelho direito de Benitez tocou na lona. Breve, como um católico
saindo de um banco de igreja. Uma deferência mínima que significava
que a luta havia acabado; ele tinha perdido. Carlotta sussurrou:
“Deus,
por favor me ajude.”
Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos
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