quarta-feira, 23 de março de 2022

O dia em que ele deixou Ashland


E foi assim, em linhas gerais, que Edward Bloom tornou-se um homem. Ele era saudável, forte e amado por seus pais. Tinha também acabado de se formar no ensino médio. Nos campos verdejantes de Ashland ele corria com seus companheiros, e com prazer comia e bebia. Parecia uma vida de sonho. Só que certa manhã ele acordou e seu coração sentiu que tinha de partir. Falou com sua mãe e seu pai, e eles não tentaram impedi-lo. Mas se entreolharam com um pressentimento, porque sabiam que só havia uma estrada para sair de Ashland, e passar por ela significava atravessar o lugar que não tinha nome. Aqueles que estavam destinados a deixar Ashland passavam ilesos por esse lugar, mas os que não estavam ficavam lá para sempre, sem conseguir prosseguir nem voltar. Assim eles deram adeus ao filho sabendo que talvez nunca mais o vissem, e ele fez o mesmo.
A manhã em que partiu estava luminosa, mas à medida que ele foi se aproximando do lugar que não tinha nome, o dia foi ficando escuro, e os céus baixaram, e uma neblina espessa o envolveu. Logo ele chegou num lugar muito parecido com Ashland, mas com diferenças importantes. Na rua principal havia um banco, a Drogaria Cole’s, a Livraria Cristã, o Talbot’s Five and Dime, o Prickett’s Place, a Loja de Joias e Relógios, o Good Food Café, um salão de sinuca, um cinema, um terreno baldio, uma loja de ferragens e também uma mercearia, com as prateleiras cheias de mercadorias mais velhas do que ele. Havia algumas dessas lojas na rua principal de Ashland, mas aqui elas estavam vazias e escuras, e as vitrines estavam rachadas, e os donos estavam parados nas portas olhando para o vazio. Contudo eles sorriram ao ver meu pai. Sorriram e acenaram. Um freguês!, pensaram. Havia também um bordel na rua principal, bem no final dela, mas não era como um bordel da cidade. Era apenas uma casa onde morava uma prostituta.
Quando ele entrou na cidade, as pessoas correram a seu encontro, e ficaram olhando para suas belas mãos.
Partindo?, elas perguntaram. Deixando Ashland?
Era um grupo estranho. Um homem tinha um braço mais curto do que o outro. Sua mão direita saía do cotovelo, e o braço acima do cotovelo era atrofiado. A sua mão espiava para fora da manga, como a cabeça de um gato espiando para fora de um saco de papel. Certo verão, anos antes, ele estava andando de carro com o braço esticado para fora da janela, sentindo o vento. Mas o carro andava perto demais da beira da estrada, e em vez do vento ele sentiu a pancada contra um poste telefônico. Todos os ossos de seu antebraço se quebraram. Agora a sua mão ficava ali pendurada, inútil, diminuindo cada vez mais com o passar do tempo. Ele deu boas-vindas a meu pai com um sorriso.
E havia uma mulher, de cinquenta e poucos anos, que era perfeitamente normal em quase todos os aspectos. Mas aquelas pessoas eram assim: em muitos aspectos elas eram normais, exceto por uma coisa, aquela coisa horrível. Muitos anos antes ela havia chegado em casa do trabalho e encontrara o marido enforcado num cano de água do porão. Teve um derrame ao vê-lo lá, e em consequência disso o lado esquerdo de seu rosto ficou congelado para sempre: os lábios caídos de um lado como numa careta exagerada, a pele pendurada em volta do olho. Ela não podia mover aquela parte do rosto, então, quando falava, só abria metade da boca, e sua voz parecia presa no fundo da garganta. As palavras subiam com dificuldade para conseguir escapar. Ela tentara deixar Ashland depois que essas coisas aconteceram, mas só tinha conseguido chegar até ali.
E havia outros que simplesmente tinham nascido do jeito que eram, pessoas cujo nascimento havia sido o primeiro, e pior, acidente. Havia um hidrocefálico chamado Bert; ele trabalhava como gari. Para onde ia, levava a vassoura. Ele era o filho da prostituta, e um problema para os homens do lugar: a maioria deles tinha estado com a prostituta, e qualquer um podia ser pai do rapaz. No que dizia respeito a ela, todos eles eram. Ela nunca quis ser prostituta. A cidade tinha precisado de uma, ela fora obrigada a aceitar o posto, e com o passar dos anos foi se tornando amarga. Especialmente depois do nascimento do filho, começou a odiar os fregueses. Ele era uma grande alegria, mas um fardo ainda maior. Não tinha praticamente nenhuma memória. Frequentemente perguntava a ela “Onde está o meu pai?”, e ela apontava pela janela para o primeiro homem que via. “Lá está o seu pai”, ela dizia. Ele corria para a rua e se pendurava no pescoço do homem. Mas no dia seguinte não se lembrava de nada, e tornava a perguntar “Onde está o meu pai?”, e conseguia outro, do mesmo jeito.
Finalmente, meu pai conheceu um homem chamado Willie. Ele estava sentado num banco e se levantou quando Edward se aproximou, como se esperasse por ele. As beiradas dos seus lábios eram secas e rachadas. Seu cabelo era cinzento e espetado, e olhos, pequenos e pretos. Tinha perdido três dedos (dois numa das mãos e um na outra), e era velho. Tão velho que parecia ter avançado no tempo até onde era humanamente possível, e, como ainda estava vivo, começara a viajar para trás. Ele estava encolhendo. Estava ficando pequeno como um bebê. Movia-se lentamente, como se estivesse andando com água pelos joelhos, e olhou para meu pai com um sorriso austero.
Seja bem-vindo à nossa cidade — ele disse, de modo simpático mas um tanto cansado. — Posso mostrar-lhe o lugar?
Eu não posso ficar — meu pai respondeu. — Estou só de passagem.
É o que todos dizem. — Willie segurou no braço de meu pai e, juntos, começaram a caminhar.
Aliás — continuou —, por que a pressa? Você devia ao menos dar uma olhada no que temos para oferecer. Aqui temos uma loja, uma lojinha simpática, e ali, bem ali — disse — temos um lugar para jogar sinuca. Bilhar, sabe. Talvez você goste disso.
Obrigado — Edward disse, porque não queria desagradar Willie ou nenhum dos outros que os observavam. Ele já tinha atraído uma pequena multidão de três ou quatro pessoas que os seguiam pelas ruas vazias, mantendo certa distância mas olhando de soslaio, de modo meio carente. — Muito obrigado.
Willie segurou com mais força seu braço ao lhe mostrar a farmácia e a Livraria Cristã, e depois, com uma piscadela marota, a casa onde morava a prostituta.
Ela também é um doce — Willie disse. E então, como que se lembrando involuntariamente de alguma coisa, continuou: — Às vezes.
O céu estava mais escuro agora, e uma chuvinha fina começou a cair. Willie olhou para cima e deixou a água entrar em seus olhos. Meu pai enxugou o rosto e fez uma careta.
Temos a nossa cota de chuva — Willie disse —, mas você se acostuma.
Tudo aqui parece meio... úmido — meu pai retrucou.
Willie lançou-lhe um olhar.
Você se acostuma. Este lugar é para isso, Edward. Para a pessoa se acostumar com as coisas.
Não é o que eu quero.
Isso também — Willie disse. — Você se acostuma com isso também.
Eles continuaram caminhando em silêncio pela neblina que cobria seus pés, pela chuva que caía suavemente sobre sua cabeça e ombros, pela manhã crepuscular daquela estranha cidade. As pessoas se juntavam nas esquinas para os ver passar, algumas se reunindo ao contingente que os seguia. Edward avistou um homem magro de terno preto e surrado e o reconheceu. Era Norther Winslow, o poeta. Tinha partido de Ashland poucos anos antes para ir para Paris, para escrever. O homem ficou olhando para Edward e quase sorriu, mas então Edward viu a mão direita dele, na qual faltavam dois dedos, e o rosto de Norther ficou pálido. Apertando a mão de encontro ao peito, ele dobrou uma esquina e desapareceu. As pessoas tinham depositado muitas esperanças em Norther.
Claro — Willie disse, vendo o que tinha acontecido. — Pessoas como você passam por aqui o tempo todo.
Como assim? — meu pai disse.
Pessoas normais — Willie disse, o que pareceu deixar um gosto ruim em sua boca. Ele cuspiu. — Pessoas normais e seus planos. Esta chuva, esta umidade... são uma espécie de resíduo. O resíduo de um sonho. De um monte de sonhos, na verdade. Os meus, os deles e os seus.
Os meus não — disse Edward.
Não — Willie respondeu. — Ainda não.
E foi então que viram o cachorro. Era apenas uma sombra indefinida no meio do nevoeiro até sua figura surgir diante deles. Havia manchas brancas em seu peito e marrons ao redor de seus dedos, mas o restante dele era preto. Ele tinha um pelo curto, espetado, e não parecia ser de nenhuma raça em especial — um cachorro genérico, com partes de muitos outros dentro dele. Ia na direção deles, devagar mas firmemente, sem parar para cheirar nenhum hidrante ou poste, não estava passeando, mas caminhando. Aquele cachorro ia para algum lugar. Aquele cachorro tinha um alvo: meu pai.
O que é isso? — Edward disse.
Willie sorriu.
Um cachorro. Vem checar todo mundo mais cedo ou mais tarde, normalmente mais cedo. É uma espécie de porteiro, se sabe o que eu quero dizer.
Não — meu pai disse. — Não sei o que você quer dizer.
Você vai saber. Você vai saber. Chame-o — ele disse.
Chamar? Como é o nome dele?
Ele não tem nome. Nunca pertenceu a ninguém, então nunca recebeu um nome. Chame-o simplesmente de Cachorro.
Cachorro.
Isso mesmo: Cachorro.
Então meu pai se ajoelhou, bateu palmas e tentou parecer simpático.
Aqui Cachorro! Vem cá amigão! Aqui, garoto. Vem!
E Cachorro, que andava em linha reta, parou e olhou para meu pai por um longo tempo — um longo tempo para um cachorro, pelo menos. Meio minuto. O pelo de suas costas ficou eriçado. Ele olhou bem dentro dos olhos de meu pai. Abriu a boca e mostrou os dentes e o rosado feroz de suas gengivas. Estava a cerca de dois metros de distância, rosnando furioso.
Talvez seja melhor eu sair da frente dele — meu pai disse. — Acho que não está gostando muito de mim.
Estenda a mão — Willie respondeu.
O quê?
O cachorro rosnou ainda mais alto.
Estenda a mão para ele cheirar.
Willie, acho que isso não...
Estenda a mão — ele disse.
Vagarosamente, meu pai estendeu a mão. Cachorro se aproximou dela com passos lentos, rosnando baixinho, as mandíbulas prontas para atacar. Contudo, quando esfregou a ponta do nariz na mão de meu pai, gemeu, e a lambeu. Cachorro abanou o rabo. O coração de meu pai voltou a bater.
Willie ficou olhando, triste e derrotado, como se tivesse sido traído.
Isso significa que posso ir? — meu pai perguntou, levantando-se, enquanto o cachorro se esfregava em suas pernas.
Ainda não — Willie disse, tornando a agarrar o braço de meu pai, com tanta força que esmagou seus músculos. — Você precisa tomar uma xícara de café antes de ir.

O Good Food Café era um salão rodeado de cabines de vinil verde e mesas de fórmica pontilhadas de dourado. Havia descansa-pratos de papel sobre as mesas e colheres e garfos bem fininhos, incrustados de comida seca. Estava uma escuridão lá dentro, um tom melancólico de cinza, e, embora quase todas as mesas estivessem ocupadas, não parecia haver vida, nada daquela expectativa ansiosa de fome a ser saciada. Quando Willie e meu pai entraram, todos levantaram os olhos e sorriram, como se sua refeição tivesse acabado de chegar.
Willie e meu pai sentaram-se numa mesa e, sem mesmo precisar pedir, uma garçonete silenciosa levou duas xícaras de café para eles. Café preto e fervendo. Willie ficou olhando para dentro da xícara e sacudiu a cabeça.
Você acha que já está tudo resolvido, não é, filho? — Willie sorriu e tomou um gole de café. — Você acha que é mesmo um peixe grande. Mas não é o primeiro que vemos. Olhe só para Jimmy Edwards sentado ali. Grande astro de futebol. Bom aluno. Queria ser um empresário na cidade, ganhar dinheiro, coisa e tal. Mas nunca conseguiu sair daqui. Não teve a força interior necessária, entende. — Ele se debruçou sobre a mesa e cochichou: — Aquele cachorro arrancou seu dedo indicador da mão esquerda.
Meu pai olhou e viu que era verdade. Jimmy tirou lentamente a mão de cima da mesa e a enfiou no bolso, e virou o rosto. Papai olhou para os outros, que olhavam para ele, e viu que quase todo mundo tinha o mesmo problema. Ninguém tinha todos os dedos, e alguns só tinham uns poucos. Meu pai olhou para Willie, prestes a lhe perguntar por quê. Mas foi como se Willie tivesse lido sua mente.
O número de vezes que tentaram partir — ele disse. — Ir para outro lugar ou voltar para o lugar de onde vieram. Aquele cachorro — disse contemplando as próprias mãos — não brinca em serviço.
Então, lentamente, como que atraídas por um som que só elas podiam ouvir, as pessoas sentadas nas mesas ao redor se levantaram e se aproximaram da cabine onde ele estava, olharam-no e sorriram. Ele se lembrava dos nomes de algumas delas do tempo de sua infância em Ashland. Cedric Fowlkes, Sally Dumas, Ben Lightfoot. Mas estavam diferentes agora. Ele quase podia enxergar através delas, então acontecia algo e ele não conseguia, como se elas estivessem entrando e saindo de foco.
Ele olhou para a porta do café, onde Cachorro estava sentado. Cachorro olhava para dentro, imóvel, e meu pai esfregou as mãos, imaginando o que o aguardaria, se teria perdido a chance de passar por Cachorro antes, e que da próxima vez talvez não tivesse tanta sorte.
Uma mulher chamada Rosemary Wilcox estava parada ao lado da cabine. Tinha se apaixonado por um homem da cidade e tentado fugir com ele, mas só ele conseguiu sair. Seus olhos eram escuros e fundos, num rosto que um dia foi bonito. Ela se lembrava de meu pai quando era pequeno, e disse que era muito bom vê-lo de novo, tão alto, forte e bonito.
A multidão em volta da cabine cresceu e se aproximou, e meu pai viu que não conseguia se mexer. Não havia espaço para isso. Bem perto dele estava um homem ainda mais velho que Willie. Ele parecia petrificado. Sua pele tinha secado e estava esticada sobre os ossos, e suas veias eram azuis e pareciam tão frias quanto um rio congelado.
Eu... Eu não confiaria naquele cachorro — o homem disse lentamente. — Não me arriscaria, filho. Ele não o atacou antes, mas nunca se sabe o que fará da próxima vez. É imprevisível. Então não saia daí — falou — e conte-nos a respeito do mundo para onde você quer ir e das coisas que você quer encontrar lá.
E o velho fechou os olhos, assim como Willie e os outros, todos querendo ouvir a respeito do mundo colorido que meu pai sabia que estava esperando por ele logo adiante, do outro lado daquele lugar escuro. Então papai contou a eles, e quando terminou, todos agradeceram e sorriram.
O velho disse:
Isso foi muito bom.
Podemos repetir amanhã? — alguém perguntou.
Vamos tornar a fazer isso amanhã — um outro murmurou.
É bom ter você aqui — um homem disse para o meu pai. — É bom ter você aqui.
Conheço uma moça muito simpática — Rosemary disse. — E bonita também. Parece um pouco comigo. Eu ficaria feliz em apresentá-los, se é que me entende.
Sinto muito — meu pai disse, olhando um a um. — Houve um mal-entendido. Eu não vim para ficar.
Aposto que houve um mal-entendido — Ben Lightfoot falou, olhando para meu pai com ódio profundo.
Mas nós não podemos deixá-lo ir — Rosemary disse, suavemente.
Eu tenho que ir. — Meu pai tentou levantar-se. Mas não conseguiu, a multidão não deixava.
Pelo menos fique algum tempo — falou Willie. — Alguns dias.
Para nos conhecer melhor — Rosemary completou, afastando o cabelo dos olhos com aquela mão horrível. — Você se esquecerá do resto.
De repente ele ouviu um ruído atrás do círculo de homens e mulheres que o rodeavam. Depois um grito, um latido, e como um milagre as pessoas se afastaram. Era Cachorro. Ele rosnou ameaçadoramente, mostrou seus dentes terríveis, e todos recuaram, apertando as mãos de encontro ao peito. Meu pai aproveitou a chance e correu pela abertura, sem olhar para trás. Correu no meio da escuridão até encontrar luz e o mundo tornou a ficar verde e maravilhoso. O asfalto virou cascalho, o cascalho virou terra e a beleza de um mundo mágico parecia não estar muito distante. Quando a estrada terminou, meu pai parou, respirou e viu que Cachorro estava bem atrás dele, de língua de fora. Quando o alcançou, Cachorro esfregou seu corpo quente nas pernas dele. Não havia nenhum som exceto o vento soprando entre as árvores e o caminhar deles por uma trilha quase selvagem. De repente, então, a floresta se abriu, e diante deles estava um lago, um enorme lago verde que se estendia até onde a vista podia alcançar, e na extremidade havia um pequeno deque de madeira, balançando nas ondas provocadas pelo vento. Eles foram até lá. Ao chegar Cachorro deitou-se, como se toda sua energia tivesse se esvaído. Meu pai olhou em volta, com certo orgulho, e viu o sol se pôr atrás das árvores, inspirou o ar e enterrou os dedos no pelo ao redor do pescoço de Cachorro, massageando os músculos com delicadeza, como se estivesse massageando os músculos de seu próprio coração, e Cachorro emitiu sons caninos de alegria. O sol se pôs, a lua surgiu, a água do lago começou a se encrespar suavemente, e na luz branca da lua ele viu a moça, sua cabeça surgindo na superfície ao longe, a água passando por seus cabelos e voltando ao lago, e ela estava sorrindo. Ela sorria e meu pai também. E então ela acenou. Ela acenou para meu pai, e ele acenou de volta.
Olá!”, ele disse, acenando para ela. “Adeus!”

Daniel Wallace, in Peixe Grande

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