[...]
E
foi isso que Jõe Bexiguento a mim contou, e que de certo modo me
divagasse. Mas, foi ele acabar de contar, e escutamos o assovio
combinado dos nossos, e demos resposta: era um que chegava ― o
Paspe ― se aparecendo macio dos escuros, com alpercatas sem barulho
e o rifle em bandoleira. Ele tinha formado, para a esparrela, com
Titão Passos, agora vinha trazer notícia dos dele, seguidos para se
ajuntarem no covo do Capão; e pedir ordens. Rio de homem, esse
Paspe: que não temia nem se cansava. Contou: que, aquilo que era
para estratagemas, deu foi em por água-abaixo, porque os bebelos
tinham botado espiação, ou tomado o faro. Assim, o inimigo
contornando, em vez de vir simples: e tochando resposta antes de
pergunta, fogo feio ― dois mortos, dos titão-passos, companheiros
bons; mais três muito feridos. Guerra tinha disso também.
― Ah,
e Zé Bebelo mesmo estava lá, no comando daqueles, em sua dita
pessoa? ― perguntei.
― Decerto
que estava. A cujo! ― o Paspe falou; e pediu logo quem tivesse um
golinho de cachaça.
Devo,
então, que perguntei por Diadorim. Puro por perguntar, sem
esperanças de informação. E mesmo, más notícias eu ainda tinha o
receio de ouvir. Serviço que me foi, o Paspe me respondeu:
― Vi,
esse por mim passou, até me deu um recado, uai!! e para você mesmo!
― Vai, diz por mim ao Riobaldo Tatarana, que eu tenho um
que-fazer, ao que vou, por dias poucos, com breve estou de volta...
― foi o que falou. Assim passou, a cavalo ― onde terá sido que
arrumou montada? Decerto conseguiu algum animal dos bebelos mesmo,
que restou no meio de tirotei...
Ouvi
e não cri. Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mim então, não podia ser
ele, foras de norma. E ao Paspe reperguntei, pedindo o exato. Era.
Mas não seria, então, que ele estivesse ferido, numa perna?
Ao
que nem não nem sim ― mais pelo não que pelo sim... ― o Paspe
completou. Não tinha reparado, no relance de tempo. Só viu que o
arreio era um socadinho, quase novo, e o cavalo alto, desbarrigado,
mas pronto de si, riscando com todas as ferraduras,
murzêlo-andrino...
Aí,
ái, ôi, espécie de dôr em meus cantos, o senhor sabe. Agora eu
pateteava. Quê que era ser fiel; donde estava o amigo? Diadorim, na
pior hora, tinha desertado de minha companhia. As certas, fuga
fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro. Ah, ele, que de tudo
sabia em tudo, agora assim de tenção me largava lá sem uma palavra
própria da boca, sem um abraço, sabendo que eu tinha vindo para
jagunço só mesmo por conta da amizade! Acho que me escabreei. De
sorte que tantos pensamentos tive, duma viragem, que senti foi
esfriar as pontas do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono
de doença, de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem
estatuto, que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com
água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado febre
de estupor. Foi assim.
Vou
reduzir o contar! o vão que os outros dias para mim foram, enquanto.
Desde que da rede levantei, com aquele peso anoitecido, amanhecido
nos olhos. Tempo de minha vazante. A ver como veja: tem sofrimento
legal padecido, e mordido e remordido sofrimento; assim do mesmo que
ter roubo sucedido e roubo roubado. Me entende? Dias que marquei:
foram onze. Certo que a guerra ia indo. Demos um tiroteio mediano,
uma escaramucinha e um meio-combate. Que isso merece que se conte?
Miúdo e miúdo, caso o senhor quiser, dou descrição. Mas não
anuncio valor. Vida, e guerra, é o que é: esses tontos movimentos,
só o contrário do que assim não seja. Mas, para mim, o que vale é
o que está por baixo ou por cima ― o que parece longe e está
perto, ou o que está perto e parece longe. Conto ao senhor é o que
eu sei e o senhor não sabe; mas principal quero contar é o que eu
não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. Agora, o senhor
exigindo querendo, está aqui que eu sirvo forte narração ― dou o
tampante, e o que for ― de trinta combates. Tenho lembrança. Pelo
tempo durado de cada fogo, se é capaz até do cálculo da quantidade
de balas. Contar? Do que se aguentou, de arvoados tiros, e a gente
atirando a truz, no meio de pobre roça alheia, canavial cortante,
eito de verde feliz ou palhada de milho morto, que se pisava e
quebrava. De vez em que rifle trauteava tanto, e eram os estalos
passando, repassando, que, vai, se aconchava mão em orêlha, sem
saber por quê, feita uma esperança de se conseguir milagre de algum
barulhinho diverso outro, qualquer, que aquele não fosse, na
ensurdescência. E quando toró de chuva deu bomba, desmanchando a
função de briga e empapando todos, ensolvando as armas. De se olhar
em frente o morro, sem desconfiança, e, de repente, do nú do morro,
despejarem descarga. De um entrar em poço, atravessando, e mesmo com
água quase até pelos peitos, ter de se virar em direção, e
desfechar. De como, no prazo duma hora só, careci de ir me vendo
escorando rifle e alvejando, em quentes, em beira de mato e campo, em
virada de espigão, descendo e subindo ramal de ladeirinhas pequenas,
e atrás de cerca, debaixo de cocho, trepado em jatobá e pequizeiro,
deitado no azul duma laje grande, e rolando no bagaço dôce de cana,
e rebentando por dentro de uma casa. E de companheiro em sôpas de
sangue mais sujeira de suas tripas, lá dele, se abraçando com a
gente, de mandado da dôr, para morrer só mesmo, seja que
amaldiçoando, em lei, toda mãe e todo pai. E como quando, no
refêrvo, combatendo no dano da mormaceira, a raiva de fúria de
repente igualava todos, nos mesmos urros e urros, uns e uns, contras
e contrários ― chega se queria combinar de botar fora as
armas-de-fogo, para o aproximaço de se avir em mãos às duras
brancas, para se oferecer fim, oferecer faca. Isso é isto.
Sobejidão. O senhor mais queria saber? Não. Eu sabia que não.
Menos mortandades. Aprecio uns assim feito o senhor ― homem sagaz
solerte.
Vir
voltemos. Aqueles dias eu empurrei, mudando em raiva falsa a falta
que Diadorim me fazia. Aí, curti amargos. Por me ver casca em chão,
que é o figurado de desprezo, e mais tudo o que em ocasiões dessas
se sente, conforme o senhor de certo conhece e sabe. Mas o pior era o
que eu mesmo mais sentia: feito se do íntimo meu tivessem tirado o
esteio-mor, pé-de-casa. E, conforme sempre se dá, segundo se está
assim em calibre de cão, e malquerente, repuxei ideias. Me alembrei
do que tinha soprado em intriga o Antenor, e dei razão à cisma
dele: quem sabe, mesmo, Joca Ramiro estava no propósito de deixar a
gente se acabar ali, na má guerra, em sertão plano? E então
Diadorim disso sabia, estava no enrêdo, agora tinha ido para junto
de Joca Ramiro ― que era a única pessoa que ele bastantemente
prezava? Fiquei em mim desiludido, caí numa lazeira. Mas cuspi três
vezes forte no chão, e risquei de mim Diadorim. Homem como eu não é
todo capaz de guardar a parte de amor, em desde que recebe muitas
ofensas de desdém. Só que, depois, o que há, é a alma assim meio
adoecida. Digo, fiquei lazo. Me veio de pensar em falar com o
Antenor. Não fiz. Dúvidas dessas, eu não ia repartir com estranhas
pessoas. E não gostei nunca de homem intrujão, com esses não
começo conversa! não hio e não chio. Tanto que mesmo foi o
Hermógenes que um dia me chamou, veio caçoando! ― Eh, valente tu
é, Tatarana! Gosto dessa sua bizarria...
― Sas
ordens, sor... ― eu só falei. Porque, ele, pelo jeito, logo
entendi que ia me fazer algum espontâneo obséquio, ou me dar alguma
boa notícia; todo que um, assim, nessas horinhas, logo muda de modo!
antes, aproveita um tico para falar de cima, jeitoso de dono bom ou
de pai que cede. E foi que não errei. O que o Hermógenes queria me
prometer era que em breve iam estar acabados aqueles riscos de
trabalho e combate, com liquidados os bebelos, e então a gente
ficava livre para lidar melhormente, atacando bons lugares, em
serviço para chefes políticos. E que, nessa ocasião, ele queria me
escolher para comandar uma parte dos seus, por ser isso de minha rija
competência ― cabo-de-turma.
Tanto
gabado elogio que não me mudou, não me fez. Descareci.
Experimentando o homem, só aproveitei foi para uma deixa! ― Joca
Ramiro... ― eu disse, com uma risadazinha minha velhaca, que entre
dois podia pegar qualquer incerto significado. E me esperei. Mas o
Hermógenes se saíu em só dizer, sério, confioso! que Joca Ramiro
era maludo capitão, vero, no real. Sonsice do Hermógenes? Não,
senhor. Sei e vi, que o sincero. Por que era que todos davam assim
tantas honras a Joca Ramiro, esse louvo sereno, com doado? Isso meio
me turvava. Mas, do Hermógenes, então, me atormentou sempre aquele
meu receio, que eu carecia de pôr em raiva. Assim, por isso, falei
em mim comigo: ― A ele nego água, na boca do pote!
Esconjurar
desse jeito leve me trouxe sossego. Ao que eu carecia. Tanto mesmo
que eu não queria ter de pensar naquele Hermógenes, e o pensamento
nele sempre me vinha, ele figurando, eu cativo. Ser que pensava,
amiúde, em ele ser carrasco, como tanto se dizia, senhor de todas as
crueldades. No começo, aquilo me corria só os calafrios de horror,
a ideia minha refugava. Mas, a pouco, peguei às vezes uma ponta de
querer saber como tudo podia ser, eu imaginava. Digo ao senhor: se o
demónio existisse, e o senhor visse, ah, o senhor não devia de, não
convém espiar para esse, nem mi de minuto! ― não pode, não
deve-de! São se só as coisas se sendo por pretas ― e a gente de
olhos fechados.
Ao
tanto com o esforço meu, em esquecer Diadorim, digo que me dava
entrante uma tristeza no geral, um prazo de cansado. Mas eu não
meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a tristonha
travessia, pois então era preciso. Água de rio que arrasta. Dias
que durasse, durasse; até meses. Agora, eu não me importava. Hoje,
eu penso, o senhor sabe: acho que o sentir da gente volteia, mas em
certos modos, rodando em si mas por regras. O prazer muito vira medo,
o medo vai vira ódio, o ódio vira esses desesperos? ― desespero é
bom que vire a maior tristeza, constante então para o um amor ―
quanta saudade... ―; aí, outra esperança já vem... Mas, a
brasinha de tudo, é só o mesmo carvão só. Invenção minha, que
tiro por tino. Ah, o que eu prezava de ter era essa instrução do
senhor, que dá rumo para se estudar dessas matérias…
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas
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