Agora
é uma mulher adulta, alta, casada, mas não passava de uma orfãzinha
que morava com a vovó. A avó a trouxera para casa quando a mãe
desaparecera, essas coisas acontecem: a pessoa desaparece. O pai
havia desaparecido antes, quando a menina tinha cinco anos. Não a
levaram para o enterro, então ela pensava: ele sumiu, e tinha muito
medo de que acontecesse o mesmo com a mãe. Se a mãe tentasse sair à
noite, ela se agarrava a ela; não chorava, não tinha direito de
chorar, a mãe não a mimava. Era tranquila, bem-comportada, e chegou
o dia em que a mãe de fato desapareceu, aos nove anos a menina
passou a noite sozinha, coberta com o roupão da mãe, de manhã se
lavou e com o mesmo vestido foi para a escola. Os vizinhos notaram
algum problema dois dias depois, a menina parou de ir para a escola,
do quarto se escutavam sons estranhos, como se alguém estivesse
rindo, e na cozinha não se cozinhava nada, não saía ninguém dali,
inclusive a mãe da pequena Jênia. A vizinha conseguiu que a menina
confessasse que ela estava sem comer fazia dois dias e que a mãe não
se encontrava. Todos saíram correndo, passaram um telegrama para a
avó, e a avó, em pleno inverno, levou a neta da cidadezinha no rio
Oká para a cidadezinha à beira-mar em que vivia.
A
estrada era conhecida. Jênia ia para a casa da avó todas as férias,
mas naquele momento não havia férias previstas, e foi uma longa
espera. Da mãe não acharam nada, nenhum vestígio. A mãe, dizia a
avó, havia lutado toda a vida pela verdade e nunca roubava, mas ao
redor dela todos roubavam, ela trabalhava num jardim de infância. A
mãe, considerava a avó, havia ido para algum lugar em Moscou para
descobrir a verdade (antes do desaparecimento ela fora demitida),
talvez ela tivesse sido internada num manicômio; acontece, ponderava
a avó.
Jênia
era uma menina tranquila, bonitinha, até entrou para a faculdade de
pedagogia em outra cidade, estudava muito e ganhou fama no alojamento
estudantil porque, cada vez que a avó enviava um pacote com
verduras, toucinho e frutas secas, ela colocava tudo sobre a mesa e
dividia com todos, e depois vinham uns diazinhos de fome, mas era
para todos. Jênia fora criada pela mãe e a avó sem queixas, como
agora vivia em seu alojamento.
Logo
apareceu um namorado para ela, pedreiro e até capataz na obra, que
na primavera a levava de trem para a floresta, lia para ela os versos
que escrevia, mas infelizmente era casado, como depois se descobriu.
A
mulher dele soube a respeito de Jênia, encontrou-a no alojamento,
foi com ela até a rua e contou que Sacha era casado, tinha dois
filhos e que no momento não estavam morando juntos porque ele
contraíra uma doença venérea, tinha a obrigação de fazer um
tratamento, ela mesma também estava fazendo o tratamento por causa
dele. Onde ele tinha pegado a doença, aí estava a questão, disse a
esposa, e olhou com ódio para Jênia. Elas estavam sentadas no
jardim público. “E quanto a você”, acrescentou a mulher de
Sacha, “devia morrer como um cão doente, já que espalha doença
por aí.”
A
estudante pobre não tinha com quem se aconselhar, tinha medo de ir
para a clínica (descobririam na hora!), mas, felizmente, ao andar
pelo mercado, viu uma placa: DOENÇAS VENÉREAS. Uma médica velhinha
a atendeu, era preciso ter dinheiro, a médica não aceitava
escutá-la sem pagar. Jênia tirou da orelha os brincos da mãe, a
única lembrança que tinha, a médica aceitou os brincos, examinou a
moça e disse que era preciso esperar os exames. Os exames vieram com
bom resultado. Por sorte, Jênia não se contaminara, ou a esposa de
Sacha havia mentido. Mas Sacha não apareceu mais no horizonte, e
Jênia entendeu que para as pessoas nem tudo é tão simples, e que
existe um lado da vida secreto, animal, que floresce teimosamente, e
é nele que se concentram as coisas detestáveis e hediondas; e será
que não haviam matado sua mãe?, pensava a Jênia adulta (dezoito
anos) — pois mamãe ainda era jovem e podia ter ido parar nessa
sombra da vida onde tanta gente morre.
Ainda
naquele mesmo verão havia acontecido um incidente infeliz com Jênia,
justamente na casa da avó. Naquele verão, perto da cidade, num
depósito de lixo haviam sido encontrados os cadáveres de duas
mulheres, com os braços virados como roupa torcida, e sem cabeça. A
cidadezinha zumbia. Pelo visto haviam matado duas veranistas ou
turistas, porque os habitantes estavam todos em seus lugares.
Uma
noite, não muito tarde, Jênia estava voltando da casa de uma amiga
e já meio perto de casa foi agarrada dos dois lados. Eram
adolescentes de uns dezesseis, dezessete anos, três, bronzeados, ou
seja, do campo, do sul, ela não os conhecia, eles não a conheciam,
eles tinham crescido nos seus três anos de ausência. Eles taparam
sua boca com uma mordaça e a levaram torcendo os braços atrás das
costas, exatamente o mesmo roteiro. Jênia andava vergada, aos
empurrões e solavancos, haviam posto uma faca sob o ombro dela.
Falavam na língua deles, Jênia entendia um pouco; eram chamados de
gregos na cidadezinha, mas não eram gregos. Jênia entendeu que
estavam discutindo no caminho quem seria o primeiro, porque um
brigava com o outro que ele estaria com a doença ruim. Eles gritavam
na escuridão da noite, xingavam em russo, arrastando Jênia toda
curvada, quando de repente tudo se iluminou ao redor. Parecia que
haviam acendido um holofote. Os três pararam, por um instante
soltaram Jênia, e ela, ao ver uma obra iluminada e um velho e uma
mulher entre um amontoado de pedras, saiu em disparada com todas as
forças rumo a eles, arrancou a mordaça da boca e começou a gritar:
“Me matem! Me matem!”. Ela parou perto do velho, estendia para
ele os braços inchados e gritava: “Me matem, mas não me entreguem
para eles!”.
Os
três começaram a gritar agitados que era uma vadia e estava devendo
para eles, eles tinham pagado! Eles gritavam em russo. O velho mandou
os rapazes embora com um gesto de mão, disse em outra língua
“saiam”, e os três deram a volta como soldados e sumiram na
escuridão da noite depois de ouvir o que ele dissera.
O
velho disse a Jênia que a levaria para casa, a mulher ficou na
construção; Jênia só viu o rosto dela de passagem e pensou em
como era parecida com a mãe. Jênia estava com medo de sair, mas o
velho foi andando e era preciso ir. O velho a levou para uma casa.
Jênia não reconhecia nada na escuridão da noite, e, ao entrar numa
espécie de quarto de despejo, ela escutou que o velho trancou a
porta atrás dela e se afastou. Jênia sentou no chão, depois tateou
a parede irregular, áspera, se apoiou nela e adormeceu.
*
* *
De
manhã ela despertou em algum lugar, estava sentada num tronco áspero
de álamo, ao redor havia um terreno baldio ermo, com plantas
crescidas.
Jênia
saiu correndo, sem reconhecer nada ao redor, por fim encontrou a
estrada para casa e dormiu no galpãozinho do pátio. Era de manhã
cedo. Para a avó ela disse que havia passado a noite na casa da
amiga porque estava com medo de ir para casa. Jênia também disse
que tentaria ir embora naquele dia mesmo. A avó deve ter entendido
tudo, os braços de Jênia estavam enormes e cheios de manchas azuis,
o rosto inchado e o canto da boca um pouco rasgado.
A
avó disse que naquela noite ela não havia dormido, remexeu nas
coisas velhas e achou no bauzinho um par de brincos da filha e um
ícone, e queria dar ambos para Jênia.
Jênia
pôs os brincos da mãe, exatamente iguais aos que ela tinha usado
para pagar a consulta, pegou o emblema, juntou suas pobres coisinhas
e foi para a estação. Ela decidiu passar na frente daquela
construção de propósito para ver o velho e a mulher que parecia a
mãe, mas não havia nada lá: nem construção, nem aquele terreno
baldio. O dia claro resplandecia, ao redor se estendiam casas e
jardins.
Ao
levá-la para a estação, a avó não perguntou por que Jênia não
estava indo para a estação e sim para o outro lado, para o depósito
de lixo. De repente Jênia disse que em algum lugar, ela imaginava,
devia estar o túmulo da mãe, era preciso procurar perto de um álamo
num terreno baldio.
A
avó retrucou que a filha havia desaparecido numa cidade
completamente diferente, mas Jênia não escutou, ficou procurando um
álamo, e no primeiro que apareceu ela se sentou no chão, apoiou-se
nele e começou a soluçar.
Elas
passaram algum tempo sentadas assim, chorando, depois Jênia, usando
um vestido de inverno com mangas compridas, foi embora da cidadezinha
para sempre e desde então deixou de esperar a mãe, e não a
encontrou em manicômios e prisões. Os brincos, no entanto, ela não
tirou, nunca tira.
Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores
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