terça-feira, 22 de março de 2022

A sombra da vida

Agora é uma mulher adulta, alta, casada, mas não passava de uma orfãzinha que morava com a vovó. A avó a trouxera para casa quando a mãe desaparecera, essas coisas acontecem: a pessoa desaparece. O pai havia desaparecido antes, quando a menina tinha cinco anos. Não a levaram para o enterro, então ela pensava: ele sumiu, e tinha muito medo de que acontecesse o mesmo com a mãe. Se a mãe tentasse sair à noite, ela se agarrava a ela; não chorava, não tinha direito de chorar, a mãe não a mimava. Era tranquila, bem-comportada, e chegou o dia em que a mãe de fato desapareceu, aos nove anos a menina passou a noite sozinha, coberta com o roupão da mãe, de manhã se lavou e com o mesmo vestido foi para a escola. Os vizinhos notaram algum problema dois dias depois, a menina parou de ir para a escola, do quarto se escutavam sons estranhos, como se alguém estivesse rindo, e na cozinha não se cozinhava nada, não saía ninguém dali, inclusive a mãe da pequena Jênia. A vizinha conseguiu que a menina confessasse que ela estava sem comer fazia dois dias e que a mãe não se encontrava. Todos saíram correndo, passaram um telegrama para a avó, e a avó, em pleno inverno, levou a neta da cidadezinha no rio Oká para a cidadezinha à beira-mar em que vivia.
A estrada era conhecida. Jênia ia para a casa da avó todas as férias, mas naquele momento não havia férias previstas, e foi uma longa espera. Da mãe não acharam nada, nenhum vestígio. A mãe, dizia a avó, havia lutado toda a vida pela verdade e nunca roubava, mas ao redor dela todos roubavam, ela trabalhava num jardim de infância. A mãe, considerava a avó, havia ido para algum lugar em Moscou para descobrir a verdade (antes do desaparecimento ela fora demitida), talvez ela tivesse sido internada num manicômio; acontece, ponderava a avó.

Jênia era uma menina tranquila, bonitinha, até entrou para a faculdade de pedagogia em outra cidade, estudava muito e ganhou fama no alojamento estudantil porque, cada vez que a avó enviava um pacote com verduras, toucinho e frutas secas, ela colocava tudo sobre a mesa e dividia com todos, e depois vinham uns diazinhos de fome, mas era para todos. Jênia fora criada pela mãe e a avó sem queixas, como agora vivia em seu alojamento.
Logo apareceu um namorado para ela, pedreiro e até capataz na obra, que na primavera a levava de trem para a floresta, lia para ela os versos que escrevia, mas infelizmente era casado, como depois se descobriu.
A mulher dele soube a respeito de Jênia, encontrou-a no alojamento, foi com ela até a rua e contou que Sacha era casado, tinha dois filhos e que no momento não estavam morando juntos porque ele contraíra uma doença venérea, tinha a obrigação de fazer um tratamento, ela mesma também estava fazendo o tratamento por causa dele. Onde ele tinha pegado a doença, aí estava a questão, disse a esposa, e olhou com ódio para Jênia. Elas estavam sentadas no jardim público. “E quanto a você”, acrescentou a mulher de Sacha, “devia morrer como um cão doente, já que espalha doença por aí.”
A estudante pobre não tinha com quem se aconselhar, tinha medo de ir para a clínica (descobririam na hora!), mas, felizmente, ao andar pelo mercado, viu uma placa: DOENÇAS VENÉREAS. Uma médica velhinha a atendeu, era preciso ter dinheiro, a médica não aceitava escutá-la sem pagar. Jênia tirou da orelha os brincos da mãe, a única lembrança que tinha, a médica aceitou os brincos, examinou a moça e disse que era preciso esperar os exames. Os exames vieram com bom resultado. Por sorte, Jênia não se contaminara, ou a esposa de Sacha havia mentido. Mas Sacha não apareceu mais no horizonte, e Jênia entendeu que para as pessoas nem tudo é tão simples, e que existe um lado da vida secreto, animal, que floresce teimosamente, e é nele que se concentram as coisas detestáveis e hediondas; e será que não haviam matado sua mãe?, pensava a Jênia adulta (dezoito anos) — pois mamãe ainda era jovem e podia ter ido parar nessa sombra da vida onde tanta gente morre.

Ainda naquele mesmo verão havia acontecido um incidente infeliz com Jênia, justamente na casa da avó. Naquele verão, perto da cidade, num depósito de lixo haviam sido encontrados os cadáveres de duas mulheres, com os braços virados como roupa torcida, e sem cabeça. A cidadezinha zumbia. Pelo visto haviam matado duas veranistas ou turistas, porque os habitantes estavam todos em seus lugares.
Uma noite, não muito tarde, Jênia estava voltando da casa de uma amiga e já meio perto de casa foi agarrada dos dois lados. Eram adolescentes de uns dezesseis, dezessete anos, três, bronzeados, ou seja, do campo, do sul, ela não os conhecia, eles não a conheciam, eles tinham crescido nos seus três anos de ausência. Eles taparam sua boca com uma mordaça e a levaram torcendo os braços atrás das costas, exatamente o mesmo roteiro. Jênia andava vergada, aos empurrões e solavancos, haviam posto uma faca sob o ombro dela. Falavam na língua deles, Jênia entendia um pouco; eram chamados de gregos na cidadezinha, mas não eram gregos. Jênia entendeu que estavam discutindo no caminho quem seria o primeiro, porque um brigava com o outro que ele estaria com a doença ruim. Eles gritavam na escuridão da noite, xingavam em russo, arrastando Jênia toda curvada, quando de repente tudo se iluminou ao redor. Parecia que haviam acendido um holofote. Os três pararam, por um instante soltaram Jênia, e ela, ao ver uma obra iluminada e um velho e uma mulher entre um amontoado de pedras, saiu em disparada com todas as forças rumo a eles, arrancou a mordaça da boca e começou a gritar: “Me matem! Me matem!”. Ela parou perto do velho, estendia para ele os braços inchados e gritava: “Me matem, mas não me entreguem para eles!”.
Os três começaram a gritar agitados que era uma vadia e estava devendo para eles, eles tinham pagado! Eles gritavam em russo. O velho mandou os rapazes embora com um gesto de mão, disse em outra língua “saiam”, e os três deram a volta como soldados e sumiram na escuridão da noite depois de ouvir o que ele dissera.
O velho disse a Jênia que a levaria para casa, a mulher ficou na construção; Jênia só viu o rosto dela de passagem e pensou em como era parecida com a mãe. Jênia estava com medo de sair, mas o velho foi andando e era preciso ir. O velho a levou para uma casa. Jênia não reconhecia nada na escuridão da noite, e, ao entrar numa espécie de quarto de despejo, ela escutou que o velho trancou a porta atrás dela e se afastou. Jênia sentou no chão, depois tateou a parede irregular, áspera, se apoiou nela e adormeceu.

* * *

De manhã ela despertou em algum lugar, estava sentada num tronco áspero de álamo, ao redor havia um terreno baldio ermo, com plantas crescidas.
Jênia saiu correndo, sem reconhecer nada ao redor, por fim encontrou a estrada para casa e dormiu no galpãozinho do pátio. Era de manhã cedo. Para a avó ela disse que havia passado a noite na casa da amiga porque estava com medo de ir para casa. Jênia também disse que tentaria ir embora naquele dia mesmo. A avó deve ter entendido tudo, os braços de Jênia estavam enormes e cheios de manchas azuis, o rosto inchado e o canto da boca um pouco rasgado.
A avó disse que naquela noite ela não havia dormido, remexeu nas coisas velhas e achou no bauzinho um par de brincos da filha e um ícone, e queria dar ambos para Jênia.
Jênia pôs os brincos da mãe, exatamente iguais aos que ela tinha usado para pagar a consulta, pegou o emblema, juntou suas pobres coisinhas e foi para a estação. Ela decidiu passar na frente daquela construção de propósito para ver o velho e a mulher que parecia a mãe, mas não havia nada lá: nem construção, nem aquele terreno baldio. O dia claro resplandecia, ao redor se estendiam casas e jardins.
Ao levá-la para a estação, a avó não perguntou por que Jênia não estava indo para a estação e sim para o outro lado, para o depósito de lixo. De repente Jênia disse que em algum lugar, ela imaginava, devia estar o túmulo da mãe, era preciso procurar perto de um álamo num terreno baldio.
A avó retrucou que a filha havia desaparecido numa cidade completamente diferente, mas Jênia não escutou, ficou procurando um álamo, e no primeiro que apareceu ela se sentou no chão, apoiou-se nele e começou a soluçar.
Elas passaram algum tempo sentadas assim, chorando, depois Jênia, usando um vestido de inverno com mangas compridas, foi embora da cidadezinha para sempre e desde então deixou de esperar a mãe, e não a encontrou em manicômios e prisões. Os brincos, no entanto, ela não tirou, nunca tira.

Liudmila Petruchévskaia, in Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha: Histórias e contos de fadas assustadores

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