A flor do campo

Mais que a amargosa pétala mastigada,
seu aspro odor e seiva azeda,
a lembrança antiga das camadas do sono:
há muito tempo, foi depois da missa,
eu e mais duas tias num caminho, as pernas delas
na frente, com meia grossa e saias.
No ar os cheiros do mato, as palavras cordiais,
o céu pra onde íamos, azul,
conforme as palavras de Nosso Senhor,
os lírios do campo, olhai-os,
a flor do mato, a infância.

Adélia Prado

A noite mais perigosa

Juro, acredite em mim – a sala de visitas estava escura – mas a música chamou para o centro da sala – uma coisa acordada estava ali – a sala se escureceu toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me no medo – como já agasalhei de ti em ti mesmo – que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se de uma claridade que não iluminava – e que eu tremia no centro dessa difícil luz – acredita em mim embora seja difícil explicar – sou alguma coisa perfeita e graciosa – como se eu nunca vira uma flor – e com medo pensei que aquela flor é a alma de quem acabara de morrer – e eu olhava aquele centro iluminado que se movia e se deslocava – e a flor me impressionava como se houvesse uma abelha perigosa rondando a flor – uma abelha gelada de pavor – diante da irrespirável graça desse bruxuleio que era a flor – e a flor depois ficava gelada de pavor diante da abelha que era muito doce das flores que ela no escuro chupava – acredita em mim que não entendo – um rito fatal se cumpria – a sala estava cheia de um sorriso penetrante – tratava-se apenas de um esbranquiçar das trevas – não ficou nenhuma prova – nada te posso garantir – eu sou a única prova de mim – e assim te explico o que os outros não entendem e me põe no hospital – não entendo que se possa ter medo de uma rosa – experimentaram com violetas que eram mais delicadas – mas tive medo – tinha cheiro de flor de cemitério – e as flores e as abelhas já me chamam – não sei como não ir – na verdade eu quero ir – não lamente a minha morte – já sei o que vou fazer e aqui mesmo no hospital – não será suicídio, meu amor, amo demais a vida e por isso nunca me suicidaria, vou mais é ser a claridade móvel, sentir o gosto de mel se eu for designada para ser abelha.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Pega lá uma chave de fenda

Domingo. Chegaram, pai e filha, da loja de móveis meia-boca com a escrivaninha branca que ela dizia ser a mágica solução para passar no vestibular de Medicina.
Sentaram-se no chão, abriram a caixa, separaram os parafusos, as peças que pareciam ser todas iguais e um folheto que fingia explicar a montagem.
Ele, como bom pai, ignorava o folheto e começava a montar o móvel sem nenhum bom senso. A menina perguntou se o tampo da mesa não deveria ser o último. Ele percebeu que ela tinha razão e disse que só pegou “pra olhar um negócio”.
Virou-se para a filha e falou:
Lu, vai lá na lavanderia, abre a caixa de ferramentas e pega lá uma chave de fenda pra a gente.
Ela gostava daquele “pra a gente”. Foi. Abriu a caixa com alguma dificuldade, pegou, voltou e se jogou no chão ao lado dele.
Não, filha. Isso é uma chave-inglesa. Troca lá, a chave de fenda tem o cabo amarelo.
Deu uma suspiradinha, foi de novo, voltou, colocou a ferramenta na frente do pai.
Luísa, isso é um alicate.
Caramba, mas você que falou que era a do cabo amarelo.
Caramba, mas confundir uma chave de fenda com um alicate é que nem confundir tremoço com salame. Troca lá.
Bufou. Levantou e saiu andando com o vestido rendado, dando passos bravos como só as mulheres sabem dar. Gritou da lavanderia:
Não tem mais nada de cabo amarelo aqui!
Quê?
(Homens têm cerca de 70% da capacidade auditiva reduzida quando estão concentrados em alguma coisa.)
Não tem mais nada amarelo, pai, só a trena!
Vem cá, então!
Voltou irritada, com a testa franzida, igualzinha à mãe, já metralhando no caminho:
Por que você não levanta e vai? A culpa deve ser dessa sua barriga imensa! A mamãe sempre fala pra você voltar pra natação, mas você não ouve!
Me ouve, Luísa. Eu preciso apertar esse parafuso. Procura na caixa a única ferramenta que tem uma ponta que se encaixa nessa fenda aqui e que depois a gente gira para o parafuso ir afundando.
Pai, por que que você nunca facilita pra mim? Custava você levantar e ir? É a mesma coisa que você faz com os vidros de palmito! Eu sempre te peço pra abrir, e você vem com aquela conversa de “pega uma faquinha, força a tampa e deixa o ar sair!”. Ok, funciona, mas custa me mimar um pouco, que nem os outros pais? Custa ser um pai normal?
Ele fez que não ouviu.
Vai, filha, pega lá. Já, já começa o jogo, e hoje a gente não pode perder de jeito nenhum, que é contra o Inter, jogo de seis pontos.
Eu sei. E o pior é que o Miranda tá suspenso.
Chegou na lavanderia. Bateu o olho na caixa. Localizou a chave de fenda de primeira. Voltou, passou-a às mãos do pai e disse:
Isso é laranja, não amarelo.
Montaram a escrivaninha. Ficou quase boa. Assistiram ao jogo com pipoca, comemoraram o gol de falta.
Passaram-se os meses, e, de fato, ela tinha razão, era só a escrivaninha que faltava para passar no vestibular. Foi morar no interior do estado. O pai morria de orgulho e de saudades.
Um dia, à noitinha, uma das amigas com quem dividia apartamento gritou da cozinha:
Alguma mulher forte se habilita a abrir esse vidro de palmito?
Luísa deu meio sorriso, levantou-se e foi. Não tinha erro: faquinha, ar, tampa aberta. A outra menina, surpresa, disse:
Nossa. Nunca vi isso. Meu pai sempre me deu o vidro aberto.
E ela pensou enquanto voltava para o quarto: “O meu me deu o vidro fechado. O vidro fechado e asas”.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

Reforma das persianas

Modesto beneficiário do INPS, X. foi ao banco receber o benefício aumentado de fim de ano. Junto ao guichê, o desconhecido de cara aberta catucou-o:
Dá-me o prazer de aceitar uma pequenina lembrança?
(Mais um chato querendo me impingir um brinde que não servirá para nada e me custará cinquenta cruzeiros.)
O homem estendeu-lhe um desses calendários de bolso, que reduzem o ano às proporções de um dia de folhinha de desfolhar.
(Em breve, a que se reduzirá o tempo?)
Obrigado — e recebeu o presente.
Quem agradece sou eu. Sinto verdadeira satisfação em oferecer calendários a determinados cavalheiros.
(Esse cara é gozado. Por que fica satisfeito com uma coisa dessas? Pensa que está me dando um lote de ações do Banco do Brasil?)
A estampa é bonita — comentou, para dizer qualquer coisa.
Não é? Eu que bolei. A janela aberta para o céu e para o mar. Janela de cobertura, vê-se logo. Repare que não se enxerga nem a praia nem a rua. Só o essencial, o infinito.
(Além do mais, com babados de literato.)
Não preciso chamar a atenção do amigo para os símbolos. Sei que beliscou imediatamente a minha ideia.
(Não precisa chamar, mas está chamando, para o que ele chama de símbolos.)
Perfeito. Vejo pelo anúncio que o senhor é técnico…
Em restauração de persianas e venezianas, e também de gelosias, para servi-lo. Minha especialidade.
Pois quando eu precisar lá em casa, sr. Teopompo, me lembrarei do senhor.
Quero que se lembre sempre de mim. Pode parecer que estou botando banca, mas não é à toa que me chamo Teopompo.
(Matusquela.)
Como assim?
Enviado de Deus, sabe? Foi o professor Nascentes que me explicou. Claro que não me atribuo tamanha importância. Mas um nome assim influi na gente, é responsabilidade. Ele ditou minha profissão.
(É; diagnóstico perfeito.)
Não sirvo para missionário, me faltam as luzes, aquele saber, mas restaurando janelas abro um horizonte para os meus semelhantes, não lhe parece?
E fecha também.
Não diga isso. Quando a persiana desce, está abrindo para o espaço, como direi… interior. O mesmo que fechar os olhos. Fechar os olhos é abri-los para o miolo da gente. É cavar um túnel dentro de nós mesmos. De vez em quando, ou melhor, frequentemente, é ótimo fazer isto.
(Onde que ele quer chegar com esse papo furado?)
Com licença. O caixa vai me pagar.
Toda. Como eu dizia, os homens têm necessidade de usar uma janela, coisa que pouco se faz hoje em dia. Quem é que chega à janela do apartamento para ver, não digo a batida de carro na rua, mas as nuvens, o sol rompendo ou baixando, as gaivotas, os pombos, as cores, os reflexos? Quem vê mais a Lua? O senhor? Duvido. Não leve a mal, mas a gente, o senhor inclusive, só espia o que está a meio metro de distância, nem isso. Hoje tudo é televisão, é cassete, se vê e se ouve por tabela. Troço sem graça.
(E daí?)
Bom, vou me despedir.
Se permite, mais uma palavrinha. Cuide bem de suas janelas.
Terei presente.
No material e no moral. Pessoas de sua idade…
(Minha idade? Que diabo ele tem com isso?)
Como?
É quando se deve olhar mais em redor, reparar bem, para descobrir o que vale a pena, o coração de cada coisa. Janeiro está estourando aí, vamos abrir a janela para janeiro.
Isso todo mundo abre, queira ou não queira.
Falo de um modo particular de abrir. Com jeito, com mansidão. Não escancarar logo, entende? Aos golinhos, não deixando as réguas da persiana se embaralhar, os cordões embolar. Descobrir o ano novo como… posso dizer?
Não sendo contra a segurança nacional, pode.
Como se despe a mulher amada, ou ela se despe pra gente. Valorizando as coisas.
(Até que ele tem ensino.)
Olhe devagar, saboreando a novidade das coisas que embaçaram com o ano velho e voltam a ficar lustrosas no ano novo. Não gaste com o olhar, hem? para que elas durem o ano inteiro. Se é bom, dura até mais. Mas doze meses é prazo regular de duração. Tempo de restaurar a janela.
(Pronto. Entra a mensagem.)
Restaurar a janela é um meio de restaurar a vista e o visto. Não digo isto para vender o meu peixe. Pergunto por perguntar: há muito tempo que não reforma suas persianas?
Francamente, não me recordo.
Então, meu caro, elas devem estar caindo de cansadas. Neste caso…
Agora percebi.
O quê?
O senhor fica junto ao guichê dos aposentados porque acha que eles devem morar em apartamentos adquiridos há mais de trinta anos, portanto com persianas gastas. Fatalmente serão seus clientes.
E haverá mal nisso? Não acha que eu faço bem aos aposentados? A reforma das persianas é um começo de reforma de vida. Vamos, comece bem o ano! Quem lhe fala é Teopompo Cardoso, semienviado de Deus!
X. aprendeu a lição mais simples de ano novo.

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

Sou essa

Eu bordo o labirinto quente das minhas veias.
Repito as palavras como mantras, nas voltas que a agulha faz.
Por vezes me furo e não o pano, gosto de levar esse susto.
É a digital de sangue que deixo ali: minhas lágrimas, cervejas, rompantes.
Se me revelo expondo as fraquezas, confusão, raiva.
Não me constranjo.
Há muito cansei de
Desculpar-me.
Sou essa, e aceito não ser querida.
Se me arrependo de algo,
Digo aqui e bordarei:
Foi ter saído de mim,
Para deixar alguns entrarem.

Fernanda Young

Macadame

Quando fresco, parece caviar, faz um barulho de cacos de vidro, de alguém mordendo gelo.
Eu mordia gelo quando a limonada acabava, balançando com a minha avó no balanço da varanda. Ficávamos olhando lá para baixo, para o grupo de presidiários acorrentados que estava pavimentando a Upson Street. Um capataz derramava o macadame; os prisioneiros o calcavam com batidas fortes e ritmadas. As correntes retiniam; o macadame fazia barulho de aplausos.
Nós três dizíamos essa palavra com frequência. Minha mãe porque odiava o lugar onde morávamos, sujo e miserável, e agora pelo menos teríamos uma rua de macadame. Minha avó apenas porque queria muito que as coisas ficassem limpas — o macadame iria segurar a poeira. A poeira vermelha texana que o vento soprava para dentro de casa com resíduos cinza da fundição, formando dunas no piso encerado do hall, na mesa de mogno.
Eu dizia macadame em voz alta, para mim mesma, porque parecia um nome para um amigo.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

As falsas recordações

Se a gente pudesse escolher a infância que teria vivido, com que enternecimento eu não recordaria agora aquele velho tio de perna de pau, que nunca existiu na família, e aquele arroio que nunca passou aos fundos do quintal, e onde íamos pescar e sestear nas tardes de verão, sob o zumbido inquietante dos besouros…

Mário Quintana, in Sapato florido

Beijando o ponto dolorido



Quando o canal corporal ajuda a difundir as emoções de um indivíduo para outro, não se trata apenas de bocejar ou imitar, mas de sentir o que os outros sentem. Mesmo que ainda esteja enraizado em conexões corporais, aqui estamos chegando perto da verdadeira empatia. O contágio emocional, como é conhecido, começa no nascimento, quando um bebê chora ao ouvir outro bebê chorar. Nos aviões e nas maternidades, os bebês às vezes fazem coro como sapos. Pode-se pensar que eles choram em reação a qualquer tipo de ruído, mas estudos mostraram que reagem especificamente aos gritos de bebês da mesma idade. Bebezinhas o fazem mais do que bebezinhos. O fato de isso surgir tão cedo revela a natureza biológica da cola emocional da sociedade. É uma capacidade que compartilhamos com todos os mamíferos.
Na vida real, uma fêmea de orangotango selvagem balançará habilmente de uma árvore alta para outra. Seu filhote pequeno, tentando segui-la através da copa das árvores, para de repente: o espaço entre as duas árvores seguintes é grande demais. Ele choraminga e pede desesperadamente a ajuda da mãe. Ao ouvi-lo, ela pode choramingar e voltar para fazer uma ponte que ajude o jovem. Ela pega o galho de uma árvore com uma das mãos e o galho de outra árvore com a outra mão ou com o pé, depois puxa as duas árvores para mais perto uma da outra enquanto fica agarrada entre elas, permitindo que o filhote cruze usando seu corpo como ponte viva. Essa sequência corriqueira é impulsionada pelo contágio emocional — a mãe fica angustiada com os gemidos de seus filhos — combinado com a inteligência, que permite à mãe entender o problema e encontrar uma solução.
Mais surpreendente é a atração de emoções negativas. Seria de esperar que os sinais de medo e aflição fossem altamente aversivos, mas um estudo recente descobriu que os ratos são na verdade atraídos por outros ratos com dor.21 Estou bastante familiarizado com esse fenômeno em macacos rhesus jovens. Certa vez, um bebê caiu acidentalmente sobre uma fêmea dominante, que o mordeu. Ele gritou tanto que logo foi cercado por outros filhotes. Eu contei oito deles na pilha de bebês, todos subindo sobre a pobre vítima, empurrando, puxando e jogando uns aos outros para o lado. Isso obviamente fez pouco para aliviar o medo do primeiro bebê. Mas a resposta dos macacos parecia automática, como se eles estivessem tão perturbados quanto a vítima e procurassem consolar um ao outro.
Porém, essa talvez não seja toda a história. Se esses bebês macacos estavam tentando se acalmar, por que precisariam se aproximar da vítima, em vez de correr para suas mães? De fato, eles procuraram a fonte real de aflição, em vez de uma fonte garantida de conforto. Bebês macacos fazem isso o tempo todo sem qualquer indicação de que sabem o que está acontecendo. Eles parecem atraídos para o sofrimento dos outros como mariposas para a luz.
Gostamos de ler preocupação nesse tipo de comportamento, mas eles provavelmente não entendem o que aconteceu com o primeiro bebê. Eu chamo esse tipo de atração cega para aqueles que estão em apuros de pré-preocupação. É como se a natureza tivesse dotado crianças e muitos animais de uma regra simples: “Se você sentir a dor de outra pessoa, vá até lá e faça contato!”. É bom perceber, entretanto, que qualquer teoria de autopreservação estrita preveria exatamente o oposto. Se os outros ao seu redor estiverem gritando e choramingando, há uma boa chance de estarem em perigo, portanto o mais sensato seria se retirar. O mesmo se aplica aos sons de aflição. Se gritos agudos irritam seu ouvido, a coisa lógica a fazer é tapar os ouvidos ou se afastar. Mas muitos animais fazem o oposto — se aproximam para descobrir o que está acontecendo, mesmo quando os sons de dor são quase inaudíveis. O ponto é o estado emocional do outro. O fato de que ratos, macacos e muitos outros animais procurem ativamente aqueles que estão com problemas não se encaixa em cenários puramente egoístas, e prova o defeito fundamental das teorias sociobiológicas populares nas décadas de 1970 e 1980.
Em representações sociobiológicas da natureza como um lugar de competição selvagem, todo comportamento se resumia a genes egoístas, e as tendências egoístas eram invariavelmente atribuídas à “lei do mais forte”. A gentileza genuína estava fora de questão, porque nenhum organismo seria tão estúpido a ponto de ignorar o perigo para ajudar o outro. Se tal comportamento ocorresse, deveria ser uma miragem ou um produto de genes “defeituosos”. A infame frase que resumia essa época — “Arranhe um altruísta e verá um hipócrita sangrar”22 — foi citada repetidas vezes com certo regozijo: o altruísmo, dizia-se, deve ser uma farsa. A frase era usada para repelir românticos inveterados e idealistas ingênuos que acreditavam na bondade humana. Não por coincidência, foi também a época de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, assim como de Gordon Gekko, o personagem fictício do filme Wall Street, de 1987: Gekko acreditava que a cobiça era o que fazia o mundo girar. Quase todo mundo estava correndo atrás de uma ideia simples, claramente em desacordo com a forma como os animais sociais, inclusive os seres humanos, foram moldados pela seleção natural.
Felizmente, não se fala mais sobre “genes egoístas”. Enterrada por uma massa de novos dados, a ideia de que o comportamento é invariavelmente egoísta teve uma morte inglória. A ciência confirmou que a cooperação é a primeira e mais importante inclinação da nossa espécie, pelo menos a cooperação com os membros do grupo de pertencimento, tanto que um livro sobre o comportamento humano de Martin Nowak, publicado em 2011, tinha por título SuperCooperators: Altruism, Evolution, and Why We Need Each Other to Succeed [Supercooperadores: altruísmo, evolução e por que precisamos um do outro para ter sucesso]. Quando as pessoas que participaram de um experimento de neuroimagem tiveram escolha entre uma opção egoísta e uma opção altruísta, a maioria optou pela segunda. Elas preferiam a escolha egoísta se houvesse boas razões para evitar a cooperação. Muitos estudos corroboram essa visão, dizendo que tendemos a ser gentis e abertos aos outros, a menos que algo nos detenha. Às vezes brinco que deve ser por isso que Ayn Rand, a romancista e aspirante a filósofa russo-americana, precisava daqueles volumes pesados tão entediantes, cheios de personagens frios, para defender sua posição. O argumento principal dela é que somos individualistas absolutos, mas ela teve de se esforçar muito para nos convencer, porque no fundo todos sabem que não somos assim. Em vez de uma descrição de nossa espécie, Ayn Rand ofereceu uma construção ideológica contraintuitiva.
O modo de vida padrão do primata humano é intensamente social, como mostram nossas atividades favoritas, desde assistir a jogos esportivos e cantar em coros até festejar e sociabilizar. Uma vez que derivamos de uma longa linhagem de animais que vivem em grupo, que sobreviveram ajudando uns aos outros, essas tendências são inteiramente lógicas. Andar sozinho nunca funcionou para nós.
Nadia Ladygina-Kohts forneceu um exemplo típico da natureza propensa ao social de nossos parentes primatas, incluindo a atração pelos sinais de aflição, em seu chimpanzé adotivo, Joni:

Se eu fingir que estou chorando, fechar os olhos e lacrimejar, Joni interrompe imediatamente sua brincadeira ou qualquer outra atividade, corre depressa para mim, todo agitado e exaurido, dos lugares mais remotos da casa, como o telhado ou o teto de sua gaiola, de onde eu não conseguia tirá-lo, apesar de meus chamados e súplicas persistentes. Ele corre apressadamente ao meu redor, como se procurasse o ofensor; olhando para o meu rosto, pega carinhosamente meu queixo na palma da mão, toca de leve o meu rosto com o dedo, como se tentasse entender o que está acontecendo, e se vira, firmando os dedos dos pés como punhos cerrados.

Que melhor prova da compaixão dos símios do que o fato de que um chimpanzé que se recusava a descer do telhado em troca de comida o fez instantaneamente ao ver sua dona sofrer? Quando Nadia fingia chorar, Joni olhava nos olhos dela, e “quanto mais triste e desconsolado meu choro, mais calorosa sua compaixão”. Quando ela pôs as mãos sobre os olhos, ele tentou afastá-las, estendeu os lábios para o rosto dela, olhou-a com atenção, gemendo e choramingando levemente.
Quando animais ou crianças começam a entender o que está acontecendo com uma pessoa que sofre, eles deixam para trás a atração cega e demonstram preocupação empática. Tentam aliviar a dor, como Joni fez com Nadia Kohts. É também a maneira como os pais humanos reagem quando seus filhos esfolam o joelho, batem com a cabeça ou levam tapas ou mordidas de outra criança. A maneira mais rápida de fazê-los parar de chorar é beijar o local dolorido.
O desenvolvimento inicial desse comportamento foi estudado em nossa espécie filmando crianças em suas casas. O pesquisador pede a um parente adulto que finja chorar ou aja como se estivesse com dor, a fim de ver o que as crianças fazem. No filme, as crianças parecem preocupadas enquanto se aproximam do adulto aflito. Elas gentilmente tocam, acariciam, abraçam ou beijam o adulto. As meninas fazem isso mais do que os meninos. O achado mais importante foi que essas respostas surgem muito cedo, antes dos dois anos de idade. O fato de que crianças pequenas já expressem empatia sugere que se trata de algo espontâneo, porque é improvável que alguém as instrua sobre como reagir.
Para mim, a verdadeira revelação foi que as crianças se comportavam exatamente como os símios, que não só se aproximam de alguém aflito, como passam pela mesma rotina de tocar, abraçar e beijar. Após assistir a filmes do estudo humano, percebi de imediato que o tempo todo estive pesquisando uma preocupação empática: por que deveria adotar uma terminologia diferente? Muitos animais, de cães a roedores, de golfinhos a elefantes, exibem um comportamento reconfortante, embora cada espécie use seus próprios gestos. Nas mesmas casas onde as crianças foram filmadas, os psicólogos descobriram acidentalmente que os cães também reagiam à pessoa aflita pondo a cabeça no colo dela ou lambendo seu rosto. Esse comportamento foi depois confirmado por estudos mais direcionados.
Como era de esperar, nem todo mundo gostou de ver a descrição de cães e macacos como seres empáticos, mas ao longo dos anos a resistência diminuiu. A ideia de empatia animal está agora razoavelmente bem estabelecida. Afinal, ninguém está afirmando que os cães têm todas as capacidades mentais que os humanos põem em ação para entender os outros. Muitos níveis diferentes marcam a empatia. Mas podemos certamente reconhecer nos cães sensibilidade para as emoções dos outros, a adoção de emoções semelhantes e expressões de preocupação. Esse é o motivo pelo qual consideramos o cão o melhor amigo do homem, afinal. Nos primatas, a empatia é tão óbvia e comum que agora há dezenas de estudos que examinaram a “consolação”, a tendência para confortar e tranquilizar aqueles que passaram por uma experiência dolorosa. Para documentar como os primatas se consolam, simplesmente esperamos por um incidente espontâneo que lhes provoque estresse — uma briga, uma queda, uma frustração —, e então observamos como os outros os consolam. O consolo através do contato corporal tem um efeito calmante e é típico de relacionamentos sociais íntimos. É também muito eficaz. Em um momento, uma primata está gritando a plenos pulmões e estapeando-se com movimentos espasmódicos do braço, batendo nas laterais do corpo numa birra barulhenta porque não conseguiu a comida que estava implorando. No momento seguinte, enquanto uma amiga a mantém apertada num abraço, seus gritos diminuem para gemidos suaves.
Uma vez que o comportamento de consolação não é de forma alguma limitado a bonobos e chimpanzés, fiquei feliz quando um dia um aluno que entrou para minha equipe disse que queria estudar elefantes. Com Josh Plotnik, observamos o maior mamífero terrestre, conhecido por seus laços sociais e assistência mútua. Em um santuário ao ar livre no norte da Tailândia, onde elefantes asiáticos resgatados vagam em semiliberdade, uma elefanta chamada Mae Perm corria para o lado de sua amiga, uma elefanta cega chamada Jokia, sempre que esta precisava: agia como se fosse o seu cão-guia. As duas estavam sempre em contato vocal, bramindo e ribombando uma para a outra. Se Jokia estivesse irritada ou assustada com qualquer coisa, como o bramido de um elefante macho ou o barulho de trânsito distante, as duas elefantas estendiam as orelhas e erguiam as caudas. Mae Perm podia emitir chilreios tranquilizantes e acariciar Jokia com a tromba, ou colocá-la na boca de Jokia. Isso a deixava imensamente vulnerável (nada é mais sensível e importante para um elefante do que a ponta da tromba), mas validava sua confiança na outra. Jokia fazia o mesmo, pondo a tromba na boca de Mae Perm, mostrando que a confiança era mútua.
Se outros elefantes estivessem por perto, eles podiam reagir da mesma maneira agitada que Jokia: levantavam as caudas, abanando as orelhas, às vezes urinavam e defecavam durante o gorjeio. E se posicionavam num círculo protetor ao redor dela.
Josh encontrou amplas provas de contágio emocional e consolação nesses paquidermes. No entanto, muitas pessoas consideram sua existência tão evidente que às vezes lhe perguntavam por que seus estudos eram necessários. Todo mundo não sabe que os elefantes têm empatia? De certa forma, fico feliz ao ouvir essa pergunta, porque mostra como a ideia de empatia animal se tornou bem estabelecida. Mas a ciência progride em meio a um enorme ceticismo, e quem se lembra da feroz resistência a essa ideia, como eu certamente lembro, percebe que, sem dados sólidos, ela nunca teria se consolidado. Mas definitivamente isso aconteceu, da mesma forma que agora aceitamos que o coração bombeia sangue e que a Terra é redonda. Não podemos nem imaginar que as pessoas costumavam pensar de outra forma.
Contudo, mesmo depois de chegar a esse ponto em relação à sensibilidade emocional dos mamíferos, ainda precisamos de estudos para aprender como ela funciona e em quais circunstâncias encontra expressão, porque a empatia nunca é a única opção. Mae Perm, por exemplo, não deixava de se aproveitar da cegueira de Jokia para roubar a comida dela.
Compreender a deficiência do outro também oferece maneiras de explorá-la.

Frans de Wall, in O último abraço da matriarca

Entrando em um novo mundo

A história do primeiro dia de meu pai no mundo onde ele iria viver talvez seja melhor contada por um homem que trabalhou com ele, Jasper “Buddy” Barron. Buddy era vice-presidente da Bloom Inc., tendo assumido o posto depois que meu pai se aposentou.
Buddy se vestia com elegância. Usava uma gravata amarelo-vivo, um terno azul-marinho risca de giz de executivo, sapatos pretos e meias finas, apertadas, quase transparentes, do mesmo tom de azul do terno, que subiam até uma altura indeterminada de suas pernas. Ele tinha um lenço de seda espiando por cima do falso bolso do lado esquerdo de seu terno, como se fosse um ratinho de estimação. E foi o primeiro e único homem que conheci que tinha realmente têmporas grisalhas, como dizem nos livros. O restante do cabelo era escuro, cheio e saudável, e o repartido que formava uma longa linha no couro cabeludo cor-de-rosa parecia uma estrada no meio do campo de sua cabeça.
Quando contava sua história, ele gostava de se recostar na cadeira e sorrir.
O ano era mil novecentos e alguma coisa”, ele começava. “Há mais tempo do que queremos lembrar. Edward tinha acabado de sair de casa. Tinha 17 anos. Pela primeira vez na vida, estava por sua própria conta, mas se preocupava com isso? Não, não estava preocupado: sua mãe lhe dera uns poucos dólares para se sustentar — dez, talvez doze — mais dinheiro, de todo modo, do que ele jamais tivera na vida. E ele tinha seus sonhos. Sonhos são o que move um homem, William, e seu pai já sonhava com um império. Contudo, olhando para ele no dia em que saiu da cidade em que nasceu, você não teria visto mais do que um rapaz jovem e bonito, só com a roupa do corpo e furos no sapato. Talvez você não tivesse enxergado os furos no sapato, mas eles estavam lá, William; os furos estavam lá.
Naquele primeiro dia ele caminhou cinquenta quilômetros. Àquela noite, dormiu sob as estrelas, numa cama feita de agulhas de pinheiro. E foi naquela noite que a mão do destino cutucou seu pai pela primeira vez. Pois enquanto ele dormia dois homens apareceram, bateram nele, roubaram todo seu dinheiro e o deixaram quase morto. Ele sobreviveu por pouco e, no entanto, trinta anos depois, quando me contou essa história pela primeira vez — e esta para mim é uma das melhores de Edward Bloom —, disse que se tornasse a encontrar aqueles dois homens, os dois malfeitores que o espancaram quase até a morte e levaram todo seu dinheiro, agradeceria a eles — agradeceria — porque, de certo modo, os homens determinaram o curso do resto de sua vida.
Na época, é claro, quase morto no escuro daquela floresta estranha, ele não estava nada agradecido. De manhã, porém, já estava bem descansado, e, embora sangrando em diversas partes do corpo, começou a andar, sem saber para onde estava indo e sem se importar mais com isso, simplesmente andando, para a frente, sem parar, pronto para o que a Vida e o Destino tivessem reservado para ele. Foi quando viu um velho armazém, e um velho diante dele, balançando-se numa cadeira para a frente e para trás, para trás e para a frente, que olhou assustado para a figura ensanguentada que se aproximava. Ele chamou a mulher e ela chamou a filha, e em meio minuto eles providenciaram uma panela de água quente, um pano e um monte de ataduras feitas de um lençol que rasgaram em tiras. E ficaram esperando por Edward, que se aproximava mancando. Eles estavam prontos para salvar a vida daquele estranho. Mais do que prontos: estavam determinados.
Mas é claro que Edward não deixou. Não podia permitir que eles salvassem sua vida. Nenhum homem com a integridade de seu pai — e existem poucos, William, pouquíssimos e raros de encontrar — iria aceitar essa caridade, mesmo sendo uma questão de vida ou morte. Pois como ele poderia viver consigo mesmo, se realmente sobrevivesse, sabendo que sua vida estava tão inexoravelmente ligada à de outras pessoas, sabendo que não era dono de si mesmo?
Então, mesmo sangrando, e com uma das pernas quebrada em dois lugares, Edward achou uma vassoura e varreu a loja. Depois pegou um pano e um balde, pois na pressa de fazer a coisa certa tinha se esquecido completamente das suas feridas abertas, que sangravam abundantemente, e só percebeu ao terminar de varrer que tinha deixado uma trilha de sangue na loja inteira. Ele então passou o pano. Esfregou. Ficou de joelhos e esfregou o chão com um pano enquanto o velho, a esposa e a filha o observavam. Eles estavam atônitos. Maravilhados. Viam um homem tentando remover as manchas do próprio sangue de um chão de madeira. Era impossível, impossível — mesmo assim ele tentava. A questão é esta, William: ele tentou até não poder mais, até cair de cara no chão, ainda agarrado ao pano — morto.
Ou pelo menos foi o que eles acharam. Pensaram que ele tivesse morrido. Correram para o cadáver: ainda havia um pouco de vida nele. E numa cena que quando seu pai descrevia sempre me fazia lembrar da Pietà de Michelangelo, a mãe, uma mulher forte, ergueu-o nos braços e o pôs no colo, aquele jovem, moribundo, rezando por sua vida. Parecia inútil. Mas enquanto os outros se amontoavam ansiosos ao redor, Edward abriu os olhos e disse o que poderiam ter sido suas últimas palavras, disse-as para o velho cuja loja ele percebera imediatamente que não tinha fregueses, disse o que poderia ter sido seu último suspiro: ‘Anuncie’.”
Buddy deixava a palavra ecoar pela sala.
E o resto, como costumam dizer, é história. Seu pai se recuperou. Logo estava forte de novo. Ele arava os campos, catava as ervas daninhas do jardim, ajudava na loja. Andava pelas estradas do campo pregando cartazes, anunciando o Armazém Campestre de Ben Jimson. Aliás, foi ideia dele chamá-lo de armazém “campestre”. Ele achou que parecia mais simpático, mais atraente do que simplesmente “armazém”, e ele tinha razão. Foi também nessa época que seu pai inventou o slogan “Compre um e leve um de graça”. Cinco palavrinhas, William, mas elas transformaram Ben Jimson num homem rico.
Edward ficou com os Jimsons por quase um ano, juntando seu primeiro pé-de-meia. O mundo, como uma esplêndida flor, abriu-se para ele. E como você pode ver”, ele dizia, mostrando as extravagâncias em couro e dourado do seu escritório e fazendo um pequeno aceno em minha direção, como se eu também não passasse de um produto da criatividade legendária de meu pai, “para um rapaz de Ashland, Alabama, ele se deu muito bem.”

Daniel Wallace, in Peixe Grande 

Desassossegos

García Lorca
olhando uma mariposa
afogada no tinteiro

Brian Wilson
sentando ao piano
depois de escutar Rubber Soul
Lucia Berlin
na enfermaria
da simplicidade

Cartier-Bresson
fotografando
a eternidade

Alejandra Pizarnik
terminando sozinha
o que ninguém começou

Murilo Mendes
vendo a cidade cair
das prateleiras do céu.

Marcelo Montenegro, in Vídeos Caseiros

A teoria do nabo

Eu não tinha nenhuma vontade de contar minha história amaldiçoada a ninguém. Se tivesse feito isso, um dono de circo logo estaria atrás de mim, tentando me transformar em uma atração — “Rápido, aproximem-se e deem uma olhada! Pague apenas se gostar do que ver!”
Ou não ver… Eu só queria ser normal.
Dito isso, eu não poderia apenas sentar e não fazer nada para resolver esse mistério, então perturbei o dr. Fujita para ler a minha sorte. Pensei que talvez ele pudesse descobrir algo incomum na minha estrutura facial.
Usando uma lupa que mostrava minhas rugas tão enormes quanto o rio Sumida, o dr. Fujita olhou para o meu rosto por tempo suficiente para cavar um buraco através dele. De repente, um olhar de surpresa apareceu em seu rosto e ele se inclinou para trás, como se estivesse amedrontado. Quando ele começou a falar, havia uma certa formalidade em sua voz:
Hum, esta é a primeira vez que vi seu rosto de tão perto, mas, devo dizer, você tem características extremamente únicas. Fiquei bem surpreso.
O que você quer dizer com características únicas? — eu perguntei, começando a sentir-me desconfortável.
Abandonando a sua habitual preguiça, dr. Fujita colocou as mãos de modo firme em seus joelhos.
Dizem que, uma vez, muito tempo atrás, um dos meus colegas sêniores lera o rosto do criado Tokichiro Kinoshita e previu que ele seria um senhor feudal. O meu colega ficara tão perplexo por sua própria previsão e desacreditado em presciência, que ele quebrou seus palitos de previsão2 ali mesmo, jogou-os no rio e declarou que havia desistido da profissão. No fim, aquele Tokichiro Kinoshita acabou se tornando Toyotomi Hideyoshi, um grande senhor feudal, político e samurai. De qualquer modo, neste mesmo instante estou considerando vender minha lupa e meu livro místico de previsão de futuro para uma loja de penhores.
Ei, não tente me assustar. De que diabos você está falando?
Seu rosto. Ele possui uma combinação rara de características, encontrada apenas uma vez em um quatrilhão de anos ou até mais. Se minha leitura estiver correta, você não é um habitante desta realidade que estamos experenciando.
Espere, o que você disse? Não estou entendendo nada.
Nada está além da sua compreensão. Você, meu amigo, é um ultraterrestre.
Ultraterrestre? Agora fiquei ainda mais confuso. Eu posso ser um ultraterrestre, mas estou diante de você, neste momento, no corpo de um respeitável japonês.
Após minha declaração arrogante, uma revelação perturbadora, causada pela lembrança daqueles eventos atemorizantes, surgiu em minha mente. Estremeci quando a memória daquela noite nos campos de Toyama — em que meu corpo aparentemente se tornou invisível — voltou a mim.
Dr. Fujita me ignorou e prosseguiu:
Para ser direto, o que vejo de você agora não é nada além de uma fatia da sua verdadeira forma, vista de um certo ângulo. Digamos que eu tenha um nabo. Se eu fosse cortá-lo em alguma parte do meio, você veria apenas a forma de elipse da superfície cortada. E pensaria: “Oh, essa é uma suculenta e alva superfície em forma de elipse.” Mas aquela superfície branca não é nada além de uma pequena fatia do nabo. Similar ao que vejo de você agora, à minha frente, não é nada além de uma fatia da sua forma verdadeira. Sua verdadeira forma, como um nabo cuja única fatia branca está visível, é algo que transcende a imaginação.
Eu não estou te entendendo.
Pelo menos em teoria você me entende, não é? Agora considere isto. Em nosso mundo, tudo tem altura, largura e profundidade. Ou seja, três dimensões.
Certo, nosso mundo é tridimensional.
Agora, imagine que nosso mundo tenha apenas duas dimensões. Tem altura e largura, mas não tem profundidade. Um mundo como a superfície de uma água calma, um mundo geometricamente plano.
Ok, um mundo bidimensional.
Agora, digamos que nós mergulhemos com calma aquele nabo na água. A princípio, apenas a ponta quebraria a superfície do líquido. Nesse ponto de vista, no mundo bidimensional o nabo é apenas visível como um minúsculo ponto.
Claro.
Entretanto, conforme eu mergulho o nabo mais profundamente na água, a porção cruzando a superfície dela aos poucos se expande para um círculo branco. No mundo bidimensional, o ponto parece crescer aos poucos para se tornar um círculo branco. Mas, assim que a parte das folhas atinge a água, o que até agora se parecia com um círculo branco de repente se transforma em uma dispersão de várias faixas verdes. Essas faixas estão se movendo continuamente, mudando de forma. Por fim, o ponto mais alto das folhas submerge na água, no mundo bidimensional não há nada mais para ser visto.
Entendi. Que estranho.
O que começou como um ponto branco logo se transformou em um largo disco branco, e então em uma dispersão de faixas verdes, até por fim desaparecer por completo. É como se fosse um fantasma para aquelas formas de vida do mundo bidimensional, mas para nós, no mundo tridimensional, é em sua essência nada além de um nabo penetrando a superfície calma da água, enquanto submerge aos poucos. No entanto, formas de vida bidimensionais não podem nem imaginar a forma do nabo que podemos ver. Aqueles no mundo bidimensional não têm a capacidade de perceber objetos tridimensionais.
Uau, você é um cientista incrível.
Isso mesmo. Fisiognomia é ciência. Mas voltando ao que eu estava dizendo. De acordo com a minha leitura, você não é um ser tridimensional, e sim quadrimensional. Você pode crer que algo tão absurdo nunca poderia acontecer, no entanto, é o que eu descobri por meio da leitura, então não sei mais o que lhe dizer. Na verdade, acho que vou desistir de fisiognomia. É uma farsa completa.
Minha única resposta a isso foi suspirar várias vezes. Eu estava atordoado pelas palavras do dr. Fujita. Porém me faltava energia para declarar dramaticamente que eu, assim como Tokichiro Kinoshita, seria muito bem-sucedido na vida, e que a leitura dele havia sido correta. Só pude lamentar, porque eu, dentre todas as pessoas, nasci como um ser humano amaldiçoado — ou devo dizer, forma de vida amaldiçoada. Ao mesmo tempo, veio-me a curiosidade de saber como seria minha forma verdadeira se eu fosse, de fato, um ser quadrimensional.
Desde então, vivo como um recluso. Parece que ainda há momentos em que meu corpo se torna invisível aos outros. Às vezes, alguém se choca contra mim, e, cada vez que isso acontece, digo a mim mesmo: “Lá vamos nós novamente.”
Eu fiz algumas pesquisas outro dia, mas não encontrei nenhuma informação sobre quem eram meus pais. Então eu sei que devo ter sido adotado. É por isso que não tenho como saber se nasci mesmo de um útero humano. De qualquer modo, não existe ninguém que tenha uma memória clara do seu nascimento. A certeza de que alguém veio do útero da mãe é uma concepção equivocada. Por consequência, suspeito da existência de um grande número de pessoas que também são quadrimensionais, assim como eu, vivendo despreocupados, ignorantes quanto às suas condições.
Essas pessoas devem ser extremamente cuidadosas. Sempre que alguém se chocar com você na rua ou em qualquer outro lugar, reflita sobre isso, mantenha em mente que você pode ser invisível para a outra pessoa — ou, talvez, até um corte transversal de um ser quadrimensional.

Juza Unno, in A última transmissão

Não esparramar raivas


[…]
Daí, eu caçava o jeito de me espairecer, junto com todos. Conversas com o Catôcho, com Jõe Bexiguento, com o Vove, com o Feijó ― de mais sisudez ― ou com Umbelino ― o de cara de gato. Se ria, fora de aperreio de combate muito se vadiava. Assim-assei, naquela influição. Vinha ordem, então a gente se reunia em bando grande, depois tornava a em grupozinhos se apartar. A guerra era a igual. E ali dava de se sentir o faltoso e o imperfeito, como no mais acontece, em quantidade maior. O São Francisco não é turvo sempre? E o que se falava mais era em mulher? Isso fazia muito boa falta. Cada um queria delas, no que só pensava. As mocinhas próprias de se provar, ou rua alegre cheia de alegria ― o bom sempre melhor, o bom. Amigo meu, o Umbelino ― esse que dizia! que, por não ter mulher ali, se tinha de muito lembrar. Ele era do Rio Sirubim, de um lugar para trás das cachoeiras.Valia como companheiro, capaz darmas. Que que pequeno, era bom. Relembrava! ― Já tive uma mulher amigável só minha, na Rua-do-Alecrim, em São Romão, e outra, mais, na Rua-do Fogo... Essas conversas, com o calor. Calor em que cão pendura a língua, o senhor sabe. Já viu, por aí? Em Januária ou São Francisco, tinha estação de tempo em que não se podia deixar um ovo guardado! com umas duas ou três horas, já se estragava. Todos contavam estórias de raparigas que tinham sido simples somente; essas senvergonhagens. Mas, de noite ― é de crer? ― a gente sabia dos que queriam qualquer reles suficiente consolo. E eram brabos sarados guerreiros, que nunca noutro ar. Coisas. Canta que cantavam, de dia, nenhum sabia pé-de-verso direito, ou não queriam ensinar, era só aquela invenção, e cantando fanhoso no nariz. Ou ficavam dizendo graças e ditérios. Nem feito meninos não sendo. Por esse sem-que-fazer, a gente ainda mais comia, quase que por divertimento. Os uns iam torar palmito, colher mandioca em mandiocalzinho sem dono, dono tinha fugido longe. Gostei de favas do mato, muito muricí, quixaba e jaca. O Fonfrêdo tinha um blilbloquê, a gente brincava de jogar. Tudo jogado a dinheiro baixo. Os espertos, teve quem pôs a jogo até bentinho de pescoço, sem dizer desrespeito. E faziam negócio desses breves, contado que alguns arrumavam até escapulários falsos. Deus perdoa? O senhor podia perguntar! Deus, para qualquer um jagunço, sendo um inconstante patrão, que às vezes regia ajuda, mas, outras horas, sem espécie nenhuma, desandava de lá ― proteção se acabou, e ― pronto! marretava! Que rezavam. Jõe Bexiguento, mesmo, quis que diversos tomassem parte em novena, numa mal rezada novena, a santo de sua redobrada tenção, e a qual ele nem teve persistência para nos dias medidos completar.
E ― mas ― o Hermógenes? Sobreveja o senhor o meu descrever! ele vinha por ali, à refalsa, socapa de se rir e se divertir no meio dos outros, sem a soberba, sendo em sendo o raposo meco. Naqueles dias ele andava de pé-no-chão, mais com uma calça apertada nas canelas e encurtada, e mesmo muito esmolambado na camisa. Até que de barba grande, parecia um pedidor. E caminhava com os largos passos, mais o muito nas pontas, vinha e ia com um sorrizinho besteante, rodeava por toda a parte. Nem eu no achar mais que ele era o ferrabrás? O que parecia, era que assim estivesse o tempo todo produzindo alguma tramóia.
Estudei uma dúvida. Ao que será que seria o ser daquele homem, tudo? Algum tinha referido que ele era casado, com mulher e filhos. Como podia? Ai-de vai, meu pensamento constante querendo entender a natureza dele, virada diferente de todas, a inocência daquela maldade. A qual me aluava. O Hermógenes, numa casa, em certo lugar, com sua mulher, ele fazia festas em suas crianças pequenas, dava conselho, dava ensino. Daí, saía. Feito lobisomem? Adiante de quem, atrás do que? A cruz o senhor faça, meu senhor! Aí eu acreditei que tivesse de haver mesmo o inferno, um inferno; precisava. E o demônio seria: o inteiro, louco, o dôido completo ― assim irremediável.
Ah, me aluei? O Hermógenes, esquipático, diverso. Comigo eu começava numa espécie, o rôr, vontade de ir para perto, reparar em tudo que fazia, dele escutar suas causas. Aos poucos, o incutido do incerto me acostumando, eu não tirava isso da cabeça. O Hermógenes ― ele dava a pena, dava medo. Mas, ora vez, eu pressentia: que do demónio não se pode ter pena, nenhuma, e a razão está aí. O demónio esbarra manso mansinho, se fazendo de apeado, tanto tristonho, e, o senhor pára próximo ― aí então ele desanda em pulos e prezares de dansa, falando grosso, querendo abraçar e grossas caretas ― boca alargada. Porque ele é ― é dôido sem cura. Todo perigo. E, naqueles dias, eu estava também muito confuso.
Será, o Hermógenes também gosta de mulheres? ― eu careci de saber, perguntei. ― Eh. Aprecêia não. Só se não gosta... ― um disse. ― Quà. Acho que ele gosta demais é só nem dele mesmo, demais, demais... ― algum outro atalhou. Que ele era assim ― eu fiquei em pausas ―: e os companheiros todos sabiam do ser; e achavam então que ato assim era possível natural?! Como que não achavam? Até, por eu ter o assunto, já um vinha: ― Daqui a seis léguas, é a baixada do Brejinho ― lá tem logradouro. Tem fêmeas... Esse que disse era o Dute, me parece; ou foi outro. Mas o Catôcho desafirmou: que tinha estado lá, não viu ar de mulher-da-vida nenhuma, só uma vendinha de roça e uma velha pitando cachimbo, no batente duma porta, pitando cachimbo e trançando peneiras. Que queriam mulheres principalmente a fim, estava certo; eu também. Eu queria, com as faces do corpo, mas também com entender um carinho e melhor-respeito ― sempre a essas do mel eu dei louvor de meu agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos! graças a Deus toda a vida tive estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas bondades. Mas o Lindorífico lembrava um pagode, em algum ao lugarejo, para baixo de lá! do que batucavam, o propuxado das sanfonas, cachaça muita, as mulheres vinham dar umbigadas, tiravam a roupa, cavalheiros levavam damas nas môitas, no escuro do sêbo; outros desafiavam outros para brigar. Para que? Por que não gozar o geral, mas com educação, sem as desordens? Saber aquilo me entristecia. Tem coisas que não são de ruindade em si, mas danam, porque é ao caso de virarem, feito o que não é feito. Feito a garapa que se azéda. Viver é muito perigoso, já disse ao senhor. No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença ― e que devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás! o de macela, o de erva-dôce, o de losna. Oi. Dôr, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.
Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto ― inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Lavar roupa e limpar a casa num navio de guerra

Além das outras tribulações relacionadas a sua maca, você tem de mantê-la limpa e branca como neve. Quem nunca atentou às longas fileiras de imaculadas macas expostas nas trincheiras de um navio de guerra, onde, ao longo do dia, ao menos a parte externa delas toma um ar?
Daí que sejam regularmente designadas algumas manhãs para que façamos a faxina das macas; essas manhãs são chamadas manhãs de esfrega-macas; e furioso é o esfregar que nelas tem lugar.
A operação começa antes de o dia nascer. Toda a marinhagem é convocada, e ao chamado todos comparecem. O convés inteiro é coberto de macas, a popa e proa; considere-se um homem de sorte se encontrar espaço suficiente para nele esticar a sua própria. De joelhos, quinhentos homens esfregam a sujeira com escovas e vassouras; acotovelando-se, comprimindo-se, brigando entre si pelo uso da água ensaboada uns dos outros; enquanto todo o sabão do comissário por eles utilizado cria uma só e indiscriminada espuma.
Por vezes, você descobre que, às escuras, esteve o tempo todo esfregando a maca do vizinho em vez da sua. Mas é tarde demais para começar de novo; pois agora a ordem é que cada homem avance com sua maca para que esta seja amarrada a uma estrutura de cordas de pano em forma de rede e, uma vez içada ao alto, ali seque.
Feito isto, reúna sem demora suas blusas e calças e, no convés já inundado, dê início aos trabalhos de lavanderia. Você não tem qualquer balde ou bacia para si — o próprio navio é um imenso tanque de roupa, onde toda a marujada lava e enxágua, enxágua e lava, até que finalmente se dá a ordem de prender as roupas, para que elas também sejam içadas para secar.
Sobre as três cobertas, então, tem início a zorra, operação de limpeza assim chamada em virtude do estranho nome conferido ao principal instrumento empregado. Trata-se de uma enorme pedra plana com longas cordas amarradas em cada ponta, as quais servem para que a pedra deslize, de um lado para o outro, sobre os conveses molhados e cobertos de areia; a mais desagradável das atividades, digna de um cão, de um escravo nas galés. Nos cantos e nos pontos mais recônditos, entre mastros e canhões, usa-se uma pedra menor, conhecida como devocionário, uma vez que o devoto dela ocupado precisa ficar de joelhos para utilizá-la.
Por fim, ocorre uma grande inundação, e os conveses são implacavelmente surrados com lambazes secos. Depois disso, um instrumento notável — uma espécie de enxada de couro — é usado para puxar e absorver os últimos pingos e filetes de água das tábuas. Sobre o tal rodo, penso em escrever um memorial e lê-lo diante da Academia de Artes e Ciências. É dos mais curiosos instrumentos e tarefas.
Mais ou menos ao tempo em que todas essas operações são concluídas, o sino dobra oito, e todos são convocados ao desjejum sobre o convés alagado e absolutamente desconfortável.
Ora, na condição de marinheiro comum, Jaqueta Branca protesta com veemência contra a religiosa e diária inundação das três cobertas de uma fragata. Em épocas sem sol, as dependências dos marinheiros ficam permanentemente úmidas; de modo que mal se pode sentar sem correr o risco de uma lombalgia. Um velho marinheiro reumático da âncora d’esperança, chegou ao ponto de costurar um pedaço de vela alcatroada no fundilho das calças.
Que os oficiais asseados e aprumados que tanto amam ver um navio de limpeza imaculada, que promovem vigorosa caçada ao homem que por acaso deixa cair uma migalha de bolacha no convés quando o navio oscila com o mar, que todos eles balancem em suas macas com os marinheiros; e logo ficarão enjoados desse encharcar diário dos conveses.
Seria o navio uma bandeja de madeira para ser esfregado todas as manhãs antes do desjejum, mesmo com os termômetros a zero grau, e todos os marinheiros de pés descalços sob a inundação com eritemas? Enquanto isso, o navio traz consigo um médico bem ciente da grande máxima de Boerhaave: “Mantenha os pés secos”. Ele tem uma grande quantidade de pílulas para dar quando você é acometido de febre, em consequência dessas atividades; mas jamais protesta no princípio — como seria seu dever — contra a causa da febre.
Durante as agradáveis noites de vigília, os oficiais a passeio, do alto de suas botas de salto, atravessam os conveses com os pés tão secos quanto os dos israelitas; no raiar do dia, no entanto, volta o roncar das águas, e os pobres marinheiros são quase tragados por elas, como os egípcios no mar Vermelho.
Ah, quantas febres, gripes e calafrios não surgem! Não há forno aconchegante, grelha ou lareira para irmos; não — a única maneira de mantermo-nos aquecidos é alimentar a raiva abrasadora e imprecar contra o costume de todas as manhãs de um navio de guerra serem dedicadas à faxina.
Imagine a cena. Digamos que você vá a bordo de um navio de combate, e nele encontre tudo escrupulosamente limpo; você vê todos os conveses safos e luminosos como as calçadas de Wall Street numa manhã de domingo; não se depara com sinal de dormitório para marinheiros; e maravilha-se ante a mágica que possibilitou tudo isso. Pois leve em conta que, nessa estrutura a um só tempo complexa e desimpedida, praticamente mil mortais têm de dormir, comer, lavar-se, vestir-se, cozinhar e levar a cabo todas as necessidades e funções comuns ao ser humano. O mesmo número de homens em terra firme decerto formaria um vilarejo. É portanto crível que esse extraordinário asseio e, em especial, esse desimpedimento de um navio de guerra seja atingido senão pelos mais rigorosos éditos e um sacrifício radical, no tocante aos marinheiros, dos confortos domésticos da vida? Que fique claro, os próprios marinheiros em geral não reclamam dessas coisas; estão habituados a elas; mas o homem pode se habituar aos mais duros costumes. E é porque se habitua que por vezes não se queixa.
De todos os navios de guerra, os americanos são os mais excessivamente limpos e por isso têm grande reputação; do mesmo modo, sua disciplina geral é a mais arbitrária.
Na Marinha britânica, a tripulação rancha à vontade em mesas que, entre as refeições, são içadas do caminho. Os marinheiros americanos rancham no convés e pegam suas bolachas quebradas, ou “farelos de aspirante”, como aves no entorno de um celeiro.
Mas se esse desimpedimento numa fragata americana é, de todo modo, tão desejável, por que não imitar os turcos? Na Marinha turca não existem caixas de rancho; os marinheiros enrolam seus utensílios num capacho e os deixam sob um canhão. Tampouco têm macas — eles dormem em qualquer lugar do convés em seus próprios “gregos”. Ademais, do que um homem de um navio de guerra mais precisa para se abrigar do que a própria pele? Nela há espaço o bastante; e, se ao menos soubesse como girar a própria espinha como uma vareta de espingarda, seria espaço suficiente para se virar sem perturbar o vizinho.
Entre todos os marinheiros de fragata, é uma máxima que navios muito asseados são como o Tártaro para a tripulação, e talvez se possa afirmar, sem prejuízo da verdade, que, quando se vê um navio em tais condições, algum tipo de tirano se avizinha.
A bordo do Neversink, como noutros navios nacionais, prolongava-se a zorra dos conveses como punição aos homens, em particular quando as manhãs eram brutalmente frias. Esse é um dos castigos que um lugar-tenente de turno pode, livre de qualquer constrangimento, impor à tripulação sem que infrinja o estatuto que reserva unicamente às mãos do capitão o poder de punir.
O horror que os marinheiros dos navios de guerra têm por essas prolongadas zorras sob clima frio e desconfortável — com os pés descalços expostos à surriada das inundações — é ilustrado numa estranha história, bastante disseminada entre eles e curiosamente tingida de suas proverbiais superstições.
O primeiro lugar-tenente de uma chalupa de guerra inglesa, severo disciplinador, estava particularmente preocupado com o asseio do tombadilho. Numa dura manhã de inverno em alto-mar, quando a tripulação já lavara, como sempre, aquela parte da embarcação e guardara as zorras, esse oficial foi ao convés e, depois de inspecioná-lo, ordenou que de novo se trouxessem as zorras e devocionários. Descalçando mais uma vez os sapatos de seus pés congelados e enrolando as barras das calças, a tripulação ajoelhou-se para a tarefa; e, em posição de suplicantes, silenciosamente invocou uma maldição contra o tirano; rogando, uma vez que retornasse à coberta, que nunca mais deixasse a praça-d’armas com vida. As súplicas aparentemente foram atendidas; pois, logo depois de ter sido acometido de um derrame paralisante à mesa do desjejum, o primeiro lugar-tenente foi retirado da praça-d’armas dos oficiais com os pés à frente, morto. Depois de baldeado o cadáver no mar — assim diz a história —, as sentinelas no passadiço deram-lhe as costas.
Para que se faça justiça à parcela humana e sensível do rol dos capitães da Marinha americana, é preciso acrescentar que eles não são tão exigentes, sempre e em quaisquer condições climáticas, com a manutenção da imaculada limpeza dos conveses; tampouco obrigam os homens a esfregarem as tábuas até que brilhem e a polirem as cravilhas de arganéu; mas dão a toda aquela estrutura cheia de ornamento uma bela demão de tinta preta, que é mais adequada à guerra, conserva melhor e dispensa os marinheiros de um aborrecimento perpétuo.

Herman Melville, in Jaqueta Branca