domingo, 20 de março de 2022

1919


Com a exceção da Segunda Guerra Mundial, nada nunca atrapalhou o Dia Nacional do Suicídio. Acontecia todo dia 3 de janeiro desde 1920, embora Shadrack, seu fundador, tivesse sido por muitos anos o único celebrante. Arruinado e permanentemente estupefato com os acontecimentos de 1917, ele voltara a Medallion bonito mas destruído, e até as pessoas mais melindrosas da cidade às vezes se pegavam sonhando como teria sido alguns anos antes, antes de partir para a guerra. Um rapaz que ainda não tinha nem completado vinte anos, a cabeça cheia de nada e a boca relembrando o gosto de batom, Shadrack, em dezembro de 1917, se viu correndo com os companheiros por um campo da França. Foi seu primeiro encontro com os inimigos e não sabia se sua subdivisão estava correndo até eles ou deles. Fazia vários dias que estavam marchando, mantendo-se perto de um rio de margens congeladas. A certa altura eles o cruzaram, e assim que puseram os pés do outro lado o dia foi suspenso por berros e explosões. O fogo de artilharia o cercava por todos os lados, e apesar de saber que estava diante de algo chamado aquilo, ele não conseguia evocar a sensação adequada — a sensação que poderia acomodar aquilo. Esperava ficar apavorado ou animado — sentir alguma coisa muito forte. Na verdade, sentia apenas a ferroada de um prego da bota, que furava a almofada do pé sempre que pisava. O dia estava frio o bastante para tornar sua respiração visível, e por um instante se questionou sobre a pureza e a brancura do próprio fôlego em meio às explosões poeirentas, cinzentas, que o rodeavam. Correu, a baioneta calada, bem no meio da enorme onda de homens que voavam pelo campo. Estremecendo por causa da dor no pé, virou um pouco a cabeça para a direita e viu a cara de um soldado a seu lado sair voando. Antes de sequer registrar o choque, o resto da cabeça do soldado desapareceu sob a tigela de sopa invertida de seu capacete. Mas, teimoso, sem acatar as ordens do cérebro, o corpo do soldado decapitado continuou correndo, com energia e graça, ignorando totalmente o gotejar e o deslizar de tecido cerebral que lhe escorria pelas costas.
Quando Shadrack abriu os olhos, estava recostado em uma cama pequena. À sua frente havia uma bandeja com um prato grande de estanho dividido em três triângulos. Em um deles havia arroz, em outro havia carne e no terceiro havia tomates cozidos. Uma cavidade redonda segurava um copo de líquido esbranquiçado. Shadrack fitava as cores suaves que preenchiam esses triângulos: a brancura grumosa do arroz, os tomates de sangue vibrante, a carne marrom-acinzentada. Toda a repugnância deles era contida no equilíbrio claro dos triângulos — um equilíbrio que o apaziguava, que transferia uma parte de seu balanceamento para ele. Confiante de que o branco, o vermelho e o marrom permaneceriam onde estavam — que não explodiriam ou se lançariam de suas zonas restritas —, ele de repente sentiu fome e procurou as mãos. A princípio, seu olhar foi cauteloso, pois tinha que tomar muito cuidado — qualquer coisa poderia estar em qualquer lugar. Em seguida, notou duas protuberâncias debaixo do lençol bege ao lado do quadril. Com muita prudência, levantou um braço e ficou aliviado de ver a mão acoplada ao punho. Tentou a outra e também a achou. Devagar, encaminhou a mão até o copo e, no momento em que iria esticar os dedos, eles começaram a crescer de um jeito confuso como o pé de feijão do João pela bandeja e a cama inteiras. Com um grito, fechou os olhos e enfiou as enormes mãos crescentes debaixo das cobertas. Depois que saíram de seu campo de visão, pareciam ter voltado ao tamanho normal. Mas o grito havia trazido um enfermeiro.
Soldado? Não vamos ter nenhum problema hoje, não é? Não é, soldado?”
Shadrack ergueu os olhos para o homem meio careca vestido de calça e jaqueta verde de algodão. O cabelo estava partido do lado direito, bem baixo, para que uns vinte ou trinta fios amarelos discretamente cobrissem a nudez da cabeça.
Anda. Pega a colher. Pega, soldado. Ninguém vai te dar comida pra sempre.”
O suor escorreu das axilas de Shadrack pelas laterais do corpo. Não aguentava ver as mãos crescerem de novo e tinha medo da voz no traje verde.
Eu disse pra pegar. Não faz sentido…” O enfermeiro enfiou a mão embaixo da coberta para pegar o pulso de Shadrack e tirar dali sua mão monstruosa. Shadrack a puxou com um solavanco e derrubou a bandeja. Em pânico, ele se apoiou nos joelhos e tentou se desfazer de seus dedos tenebrosos, mas só conseguiu empurrar o enfermeiro para a cama ao lado.
Quando enfiaram Shadrack na camisa de força, ele ficou aliviado e grato, pois as mãos enfim estavam escondidas e restritas ao tamanho que tinham atingido.
Amarrado e sossegado em sua caminha, tentou atar as cordas soltas na mente. Estava desesperado para ver o próprio rosto e associá-lo à palavra “soldado” — a palavra com que o enfermeiro (e os outros que ajudaram a amarrá-lo) o havia chamado. “Soldado” ele imaginava ser alguma coisa lacrada com solda, e se questionava por que olhavam para ele e o chamavam de uma coisa lacrada com solda. Porém, se suas mãos se comportavam como tinham se comportado, o que esperar de seu rosto? Como o medo e a ânsia eram demais para ele, começou a pensar em outras coisas. Isto é, deixou a mente entrar nas bocas das cavernas da memória que escolhesse.
Ele viu uma janela que dava para um rio que sabia ser cheio de peixes. Alguém falava baixinho junto à porta…

A violência inicial de Shadrack havia coincidido com um memorando da equipe executiva do hospital referente à distribuição de pacientes em áreas de alto risco. Havia uma clara necessidade de espaço. A prioridade ou a violência garantiu a baixa de Shadrack, 217 dólares em dinheiro, uma mala cheia de roupas e cópias de documentos que pareciam bastante oficiais.
Quando pôs os pés fora do hospital, os jardins o desarmaram: os arbustos podados, o gramado delimitado, as trilhas sem desvios. Shadrack olhou para os trechos cimentados: cada um deles levava lucidamente a um destino supostamente desejável. Não havia cercas, nem avisos, nem obstáculos entre o concreto e a grama verde, portanto era fácil ignorar a passagem ordenada de pedras e cortar na direção oposta — uma direção própria.
Shadrack ficou parado aos pés da escadinha do hospital observando a cabeça das árvores balançando pesarosa mas inofensivamente, já que os troncos tinham raízes profundas demais na terra para ameaçá-lo. Somente as trilhas o inquietavam. Ele se reequilibrou na outra perna, se perguntando como chegar ao portão sem pisar no concreto. Enquanto tramava seu caminho — onde teria que saltar, onde contornar um monte de arbustos —, uma gargalhada alta o assustou. Dois homens subiam os degraus. Então percebeu que havia muitas pessoas ao redor, e que só agora as via, se não tinham acabado de se materializar. Eram folhas finas, como bonecos de papel flutuando pelas trilhas. Algumas estavam sentadas em cadeiras de rodas, empurradas por outras figuras de papel. Todas pareciam fumar, e os braços e pernas se curvavam à brisa. Um bom vento forte os arrebataria e levaria para longe e talvez aterrissassem entre as copas das árvores.
Shadrack se arriscou. Quatro passos e estava no gramado, rumo ao portão. Manteve a cabeça abaixada para não ver as pessoas de papel se virando e se curvando aqui e ali, e se perdeu no caminho. Ao erguer os olhos, estava junto a um prédio baixo vermelho separado do prédio principal por uma passagem coberta. Surgiu de algum lugar um aroma adocicado que o lembrava de alguma coisa dolorosa. Olhou ao redor à procura do portão e viu que tinha seguido exatamente na direção contrária em seu percurso complexo pelo gramado. Bem à esquerda do prédio baixo havia uma pista de cascalho que parecia levar para além das dependências do hospital. Trotou rapidamente até lá e deixou, por fim, um refúgio de mais de um ano, apenas oito dias dos quais se recordava na íntegra.
Depois de chegar à estrada, seguiu na direção oeste. A longa estadia no hospital o deixara fraco — fraco demais para se equilibrar de pé no acostamento de cascalho da estrada. Arrastou os pés, ficou tonto, parou para respirar, recomeçou, tropeçando e cheio de suor mas se recusando a enxugar as têmporas, ainda com medo de olhar para as mãos. Passageiros de carros quadrados, escuros, fechavam os olhos para o que pensavam ser um bêbado.
O sol já estava bem em cima de sua cabeça quando chegou a uma cidade. Alguns quarteirões de ruas sombreadas e já estava em seu âmago — um centro bonito, silenciosamente regrado.
Exausto, os pés congestionados de dor, sentou-se no meio-fio para tirar os sapatos. Fechou os olhos para não ver as mãos e se atrapalhou com os cadarços dos sapatos pesados de cano alto. O enfermeiro os amarrara em nós duplos, como se faz para crianças, e Shadrack, havia muito desacostumado à manipulação de coisas complicadas, não conseguia desatá-los. Descoordenadas, as unhas de seus dedos puxavam os nós. Lutou contra uma histeria nascente que não era mera ansiedade de libertar os pés doloridos; sua vida dependia da soltura dos nós. De repente, sem levantar as pálpebras, começou a chorar. Vinte e dois anos de idade, fraco, suado, assustado, sem coragem de admitir que nem sabia quem ou o que ele era… sem passado, sem linguagem, sem tribo, sem origem, sem caderneta de endereços, sem pente, sem lápis, sem relógio, sem lenço de bolso, sem tapete, sem cama, sem abridor de lata, sem cartão-postal desbotado, sem sabonete, sem chave, sem bolsa para guardar fumo, sem cueca suja e nada nada nada para fazer… só tinha certeza de uma única coisa: a monstruosidade descontrolada de suas mãos. Chorou em silêncio no meio-fio de uma cidadezinha do Meio-Oeste, se perguntando onde estava a janela, e o rio, e as vozes suaves junto à porta…
Em meio às lágrimas viu os dedos se unindo aos cadarços, primeiro hesitantes, depois ligeiros. Os quatro dedos de cada mão se misturaram ao tecido, se enrolaram e ziguezaguearam para dentro e para fora dos minúsculos ilhós.
Quando a polícia chegou, Shadrack já estava sofrendo de uma dor de cabeça lancinante, que não foi aplacada pelo alívio sentido quando os policiais tiraram suas mãos do que ele imaginava ser um enredamento permanente nos cadarços de seus sapatos. Eles o levaram para a cadeia, ficharam por vadiagem e embriaguez e o trancaram em uma cela. Deitado em um catre, só restava a Shadrack fitar a parede com impotência, de tão paralisante que era a dor na cabeça. Ficou deitado em agonia por bastante tempo e depois se deu conta de que fitava letras pintadas ordenando que fosse se foder. Enquanto examinava aquelas palavras, a dor na cabeça ia diminuindo.
Como o luar se esgueirando sob uma veneziana, uma ideia se insinuou: o desejo antigo de ver o próprio rosto. Procurou um espelho; não havia nenhum. Por fim, tomando o cuidado de manter as mãos às costas, foi até o vaso sanitário e espiou. A água estava desigualmente iluminada pelo sol, então não conseguiu ver nada. Voltando ao catre, pegou o lençol e cobriu a cabeça, deixando a água escura o suficiente para ver seu reflexo. Ali, na água do vaso, viu um rosto preto sério. Um preto tão definitivo, tão inequívoco, que o espantou. Vinha cultivando uma apreensão medrosa de que ele não era real — de que não existia. Mas, quando o negror o saudou com sua presença incontestável, não lhe faltou mais nada. Naquela alegria, se arriscou a soltar uma ponta do lençol e dar uma olhada nas mãos. Estavam paradas. Cortesmente paradas.
Shadrack se levantou e voltou ao catre, onde caiu no primeiro sono de sua nova vida. Um sono mais profundo do que as drogas do hospital; mais profundo do que caroços de ameixa, mais imperturbável do que a asa de um condor; mais tranquilo do que a curvatura dos ovos.
O delegado olhou por entre as barras para o rapaz de cabelo emaranhado. Tinha lido os documentos do presidiário e chamado um fazendeiro. Quando Shadrack despertou, o delegado lhe devolveu os documentos e o acompanhou até a traseira de uma carroça. Shadrack entrou e em menos de três horas estava de volta a Medallion, pois estivera a apenas trinta e cinco quilômetros de sua janela, seu rio e as vozes suaves junto à porta.
Na traseira da carroça, escorado por sacas de abóboras e colinas de jerimuns, Shadrack deu início a uma luta que duraria doze dias, uma luta para ordenar e enfocar experiências. Tinha a ver com a criação de um espaço para o medo como forma de controlá-lo. Conhecia o cheiro da morte e tinha pavor dele, pois não era capaz de prevê-lo. Não era a morte ou morrer o que o amedrontava, mas a imprevisibilidade de ambos. Ao esmiuçar tudo isso, chegou à ideia de que, caso um dia do ano fosse dedicado ao tema, todo mundo poderia tirá-lo do caminho e o restante do ano seria seguro e livre. Foi assim que ele instituiu o Dia Nacional do Suicídio.

No terceiro dia do Ano-Novo, ele atravessou o Fundão pela Carpenter’s Road com uma campana e uma corda de carrasco, conclamando o povo a se reunir. Dizendo-lhes que essa era a única chance que tinham de se matar ou matar uns aos outros.
A princípio, a população da cidade ficou assustada: eles sabiam que Shadrack era louco, mas isso não queria dizer que não tinha nenhuma noção ou, até mais importante, que não tinha nenhum poder. Seus olhos eram tão selvagens, seu cabelo tão comprido e embaraçado, a voz tão cheia de autoridade e estrondo que causou pânico no primeiro, ou Inaugural, Dia Nacional do Suicídio em 1920. O seguinte, em 1921, foi menos assustador, mas ainda preocupante. As pessoas o tinham visto por um ano entre um e outro. Ele vivia em um barraco à beira do rio que antes era de seu avô, falecido havia muito tempo. Às terças e sextas-feiras, vendia o peixe que tinha conseguido pescar de manhã, no restante da semana ficava bêbado, ruidoso, obsceno, engraçado e escandaloso. Mas nunca tocava em ninguém, nunca brigava, nunca acariciava. Depois que as pessoas entenderam os limites e a natureza de sua loucura, conseguiram encaixá-lo, por assim dizer, no contexto mais geral.
Depois, nos Dias Nacionais do Suicídio subsequentes, os adultos olhavam de trás das cortinas enquanto ele tocava a campana; alguns vagabundos aceleravam o passo, e as crianças pequenas berravam e corriam. Os adolescentes perebentos tentavam instigá-lo (embora ele fosse apenas quatro ou cinco anos mais velho do que eles), mas não por muito tempo, pois suas imprecações eram dolorosamente pessoais.
À medida que o tempo passava, as pessoas prestavam menos atenção nesse dia 3 de janeiro, ou melhor, achavam que agiam assim, embora não tivessem atitudes ou opiniões de uma forma ou de outra sobre o desfile solitário anual de Shadrack. Na verdade, tinham simplesmente parado de comentar sobre o feriado porque o haviam assimilado em seus pensamentos, em sua linguagem, em suas vidas.
Alguém disse a uma amiga, “Você demorou à beça para ter o bebê. Quanto tempo você passou em trabalho de parto?”.
E a amiga respondeu, “Uns três dias. As dores começaram no Dia do Suicídio e continuaram até o domingo depois. Nasceu no domingo. Meus meninos todos são meninos de domingo”.
Um noivo disse à noiva, “Vamos depois do Ano-Novo, em vez de antes. Vou receber na véspera do Ano-Novo”.
E a amada respondeu, “Tudo bem, mas que não seja no Dia do Suicídio. Não quero ter de ouvir campana durante o casamento”.
A avó de alguém disse que suas galinhas sempre começavam a botar ovos com duas gemas logo depois do Dia do Suicídio.
O reverendo Deal adotou o feriado, declarando que os que tinham a sensatez de evitar a conclamação de Shadrack eram os mesmos que insistiam em morrer de tanto beber ou morrer de tanto correr atrás de mulheres. “Seria melhor ir com o Shad e poupar a Ovelha do transtorno com a redenção.”
Aos poucos, sem alarde, o Dia do Suicídio se tornou parte da trama da vida no Fundão de Medallion, Ohio.

Toni Morrison, in Sula

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