A
primeira vez que ouvi falar de Zé Limeira foi quando fechávamos o
número 1 do Versus, o jornal mais bonito (e certamente estava
entre os de melhor qualidade) que a esquerda já teve, no Brasil.
Era
final de 1975. O jornal foi lançado poucos dias depois do
assassinato de Vladimir Herzog, o clima era tenso. Mas Versus
foi lançado como “um jornal de ideias e cultura”. Assim mesmo
algumas pessoas tiveram, se não medo, receio de que haveria
repressão. Não houve.
Uma
das matérias do número 1, de autoria de Mauro Barbosa de Almeida,
revelava para muitos de nós um poeta inédito, irreverente, gozador
e cativante.
Era
um negro analfabeto nascido no final do século XIX, em Teixeira
(Paraíba), que morreu em 1955. O também poeta Orlando Tejo foi o
grande responsável pelo registro da poesia de Zé Limeira, cantador
bom de viola, voz potente, que deixava perdidos os que ousavam
desafiá-lo, soltando palavras que não existiam em nenhum
dicionário, mas que o povo achava bonitas e aplaudia. Mas não eram
só palavras inexistentes que ele usava, eram situações
inexistentes também, juntando personalidades e fatos célebres que
se passaram em séculos muito diferentes. Jesus Cristo, Getúlio
Vargas, Napoleão Bonaparte, Tomé de Souza e outros vultos
históricos aparecem às vezes convivendo nos mesmos versos, às
vezes em situações absurdas, como Jesus Cristo “sentando praça
na polícia”.
Orlando
Tejo conheceu Zé Limeira e o ouviu pela primeira vez em 1940.
Registrou seus versos e publicou o livro “Zé Limeira, poeta do
absurdo”, cuja última edição, se não me engano, é do ano 2000.
É possível encontrar esse livro em sebos, e quem tiver oportunidade
não deve perder: adquira que vale a pena. Aliás, uma lembrança:
muita gente acha que Zé Limeira não existiu, que é uma lenda
criada por Orlando Tejo, pois não existem fotos dele.
Bom,
eu que sempre apreciei cantadores de feira nordestinos, os cordéis,
depois que li Zé Limeira, passei a achar todos eles secundários. O
negro analfabeto paraibano não tem quem o iguale! Querem uma amostra
dos versos dele? Lá vai.
A
virgem Maria estava
Brigando
com São José:
Você
vendeu a jumenta
Me
deixou andando a pé
Desta
maneira eu termino
Voltando
pra Nazaré!
Nisso
gritou São José
Maria,
deixa de asneira!
Vou
comprar outra jumenta
Do
jeitinho da primeira,
Quando
ouviram uma zuada
No
descer duma ladeira.
Era
um caminhão de feira
Que
vinha da Galileia.
São
José disse eu vou ver
Se
tem canto na boleia
Que
possa levar nós três
Até
perto da Judeia!
São
José deu com a mão,
O
motorista parou.
Tem
três canto pra nós três?
Jesus
foi quem perguntou.
Disse
o motorista tem,
Jesus
respondeu eu vou!
E
foram subindo os três.
Disse
o motorista: para!
A
gasolina subiu
A
passagem é muito cara.
Vocês
estarão pensando
Que
meu carro é pau-de-arara?
São
José puxou da faca
Pra
furar os pneus.
Jesus
já muito amarelo
Disse
assim quando desceu:
Valha-me
Nossa Senhora,
Que
diabo fizemos eu?!
Mouzar Benedito, in Blog da Boitempo, em 30/10/2012
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