O
rei me vê como um traço verde rasgando a paisagem. Ou como um
pedaço de pano retorcido. Sobre um papel pardo, um risco. Qualquer
rei me vê assim, e nenhum percebe bem as dobras e ondulações,
nenhum sabe que sou profundo verde. Essencial e denso verde. Para o
rei posso ser estorvo, caso perca uma batalha às minhas cercanias,
ou posso ser promessa de mais ouro, caso encontre novas formas de
lucrar com a minha existência. E foi assim que, sobre as minhas
margens, o rei ordenou que se erguesse uma ponte. Acima de mim, o
céu. Abaixo de mim, a pulsação da terra impelindo meu caminho.
Para
erguer uma estrutura que servisse de passagem e ligamento, foram
necessários braços fortes, a tração das pernas de homens e
animais, todos juntos na mesma canga. Foi preciso a conjunção de
carnes e forças e, sim, muitos nomes que servissem de cimento. Jörg
não tinha pai nem mãe e estava na frente de trabalho a serviço da
ponte e do rei, ao lado dos tios. Era um rapaz forte, e os músculos
de suas pernas, braços e costas se retesavam quando se fazia
necessário rolar as toras de madeira que serviriam de arcabouço
para o desejo do rei.
O
rei, para ser rei, precisa ser, necessariamente, um homem incomum. É
o que se costuma dizer e acreditar. Esse a que me refiro era neto de
Henry, o Negro, filho de Henry, o Orgulhoso, e ele mesmo um Henry,
rosto e corpo continuado dos seus ancestrais, o mesmo levantar de
sobrancelhas quando se mostrava curioso, o mesmo esgar que contraía
o quadrante superior esquerdo dos lábios quando algo o irritava, a
mesma tendência para a retenção de líquidos que se alojam nas
pernas, logo abaixo dos joelhos e nos tornozelos.
Esse
rei, em outro ponto da história que não este, em que nos deparamos
com Jörg e seus tios cingidos por cordas feito mulas, encontrará, a
caminho da Terra Santa, um leão em luta com um dragão. É de fato
incomum presenciar batalhas entre bestas tão memoráveis, mas, qual
um são Miguel em peleja com o diabo, Henry, filho de Henry e neto de
Henry, se coloca ao lado do leão e o auxilia a vencer. Precisamente
por isso entrará para a história como Henry, o Leão. O leão, por
sua vez, cão domesticado, fiel ao favor real em sua batalha, seguirá
Henry sem coleira ou grilhões que indiquem sua submissão. O mundo é
um pasto de maravilhas para quem tiver olhos de ver e alma para crer.
Eu
em nada creio, sou um rio. Eu vou e volto, conheço o chão e o céu,
compartilho a língua comum a todas as águas. Atravesso o tempo.
Morro e renasço. Engulo e regurgito. Sei dos animais tristes que são
os homens.
Jörg,
por sua vez, Jorge sem nenhum dragão que o notabilizasse, comia as
batatas que o velho monge Hans oferecia. Jörg e seus tios não raro
se alimentavam das sobras do mosteiro quando iam auxiliar os
religiosos em trabalhos que exigiam mais corpo do que fé, e esses
monges, em particular, eram detentores dos segredos da construção
de pontes. O mosteiro que se erguia às minhas margens naquela
ocasião não tinha nenhuma imponência. Era um assentamento simples
de pedras sobre o sangue dos homens, seja o sangue das mãos que as
empilharam umas sobre as outras, seja o sangue das costas machucadas
pelo cilício.
Sobre
o cilício, sabe-se que João Batista, o pregador do deserto, primo
de Jesus, fez uso dele, assim como Thomas More, o filósofo mártir,
que, por baixo da camisa de seda muito alva, usava uma camisa de
cilício para mortificação da carne e elevação do espírito,
assim como o velho irmão Hans, quando não soube distinguir, a
mirada azulada e turva, a mente confusa, se o corpo de Jörg era
corpo de homem ou de mulher. Nem o tocou, é verdade, porém a
atrapalhação em si exigiu o pagamento da carne, como sói ser.
O
desejo do rei era que a ponte, mais que passagem entre uma margem e
outra, possibilitasse um trânsito mais seguro para as pessoas e
injetasse ânimo para o povoamento da cidade. Estes verbos são parte
querida do vocabulário dos governantes: injetar, transitar,
possibilitar. O rei sabe, porém, que nem todo desejo que habita o
coração humano floresce no mundo, neste mundo de poeira e
assassinatos, de saques e contendas, o que não impede que o desejo
se transforme em braços, em cordas, em toras de madeira, em pernas
distendidas, em gritos, em suor escorrendo.
Mas
nem tudo um rei pode saber, por mais extraordinário que seja o seu
retrato. Um rei, no final das contas, é um homem cujos dentes também
apodrecem e cujas pernas pesam com seu inchaço. Um rei caga e
vomita. Um rei não muito raramente fica cansado e tem pesadelos que,
quase sempre, coloca na conta de traições e perfídias que lhe
tramam pelas costas.
Mas,
calma, não nos apressemos: Henry, o Leão, ainda demora a entrar em
contenda com Frederick Barbarossa, e não é agora que ele é
despojado de seus domínios e mandado em exílio para a Inglaterra.
E, a bem da verdade, isso pouco nos interessa. Há uma ponte sendo
construída, e sobre sua estrutura se equilibra um rapaz.
O
céu da manhã de sábado não promete chuva, diz um monge, e passa,
segue seu caminho, muito embora eu saiba da chuva que está por vir.
A ponte em vias de conclusão não se figura como algo grandioso, um
tabuleiro simples sobre um cavalete, mas eficiente em sua função.
Uma mulher, ao longe, escarra no chão e se encolhe por baixo de um
xale grosseiro. Jörg come um resto de pão velho e nada mais. Corta
o dedo em uma aresta formada na caneca e um dos tios, o mais velho, o
repreende:
Você
está distraído, Jörg.
O
garoto não responde, faz uma careta, e o tio continua a provocar:
Está
me afrontando, menino? Não sabe responder? Olha que te parto em
dois.
Não
é nada, responde Jörg a contragosto, e essas são suas últimas
palavras.
Tempestades
são rios, você sabe. Toda água é, a linha azul que caminha nos
mapas, o trajeto do sangue no corpo. Quando a tempestade encontra
Jörg no alto do tabuleiro, algo acontece, e o menino se deixa
derrubar sobre o meu lençol violento e revolto pelos ventos. Pode
não parecer, mas as minhas cheias são verdadeiramente ferozes.
Sinto o corpo dele simultaneamente duro e macio atravessando minha
pele, sua carne tenra e jovem que conheço desde que estava no ventre
da mãe. Jörg, muito embora bom nadador, não faz nenhum movimento
de resistência que possa, quem sabe, até salvá-lo.
Ao
tio mais velho, que o espicaçara ainda de manhãzinha, parece que
durante toda a queda estivesse já paralisado, os olhos como que de
vidro, numa abertura incomum, muito embora o outro tio, o mais novo e
esguio, que também está próximo da cena, não tenha visto senão o
corpo despencando e se perdendo no meio da água, sem que nada nem
ninguém pudesse fazer algo sob a grossa pancada de chuva. O que sei
é que seu coração parou antes mesmo que eu fechasse sua laringe,
encharcasse seus pulmões.
Os
homens, as mulheres e crianças que passeiam às minhas margens, que
me atravessam de um lado a outro brincando nos lugares de pouca
fundura, apreciando a beleza do céu bávaro sobre a cidade de
Munique, como a turista vestida à francesa, a saia branca com duas
listras azul-marinho, blusa também listrada, o chapéu de palha cor
de tabaco graciosamente pendido para o lado, os pés em sapatilhas
delicadas que em dado momento ela descalça e passa a carregar numa
das mãos enquanto a outra segura a mão de um rapaz jovem de queixo
proeminente, mas ainda assim de certa beleza, não sabem nada sobre
Jörg nem sobre aqueles que ergueram essa e as outras pontes, e menos
ainda que o vai e vem dos rios atravessa a história, que ela, a
história, está sempre em movimento, que não existe nada estagnado.
Desconhecem que tudo é fluxo e que dentro de mim há outras cidades,
muitas da mesma cidade; que, abaixo da ponte, a ponte que Jörg
ajudou a construir a mando de um rei há muito falecido, existe outra
ponte; ignoram que, nas margens abaixo do rio em que refrescam os
pés, outras pessoas, as pessoas da água, vivem sua vida, levantam
suas pedras, fazem compras, piqueniques, beijam seus filhos antes que
peguem a condução para ir à escola, derrubam reis, inventam
máquinas, morrem de fome, de peste ou de frio, e são em quase tudo
iguais a eles, que vivem fora do rio, nos muitos tempos que se
desdobram nas margens da superfície. Quando o Allianz Arena
estremece com um gol do Bayern, as pessoas da água sentem ondulações
sob seus pés. Quando é primavera e as crianças da terra correm
alegremente sobre a relva do Jardim Inglês, nas muitas cidades
espelhadas é possível sentir uma brisa muito leve a agitar as
folhas das árvores. Quando as coisas se tornam violentas, o
desequilíbrio é mútuo.
Porém,
minha condição não é exclusiva. Não se trata de um privilégio
porque venho dos Alpes, como um braço do Danúbio, paisagem tão
bela e paradisíaca estampada em um calendário engordurado numa
parede de uma cidade distante e quente do hemisfério Sul. Na
verdade, todos os rios abrigam sua gente da água, todos os rios
abrigam todos os tempos. Mas isso nenhum rei, nem mesmo um que fosse
aliado de um leão, poderia saber. Tampouco o casal de turistas em
seu passeio ao fim da tarde. Os povos que habitam as florestas sabem,
mas Jörg só soube quando caiu. E a primeira coisa que viu na margem
abaixo da margem foi outro mosteiro, com outros monges, pessoas,
animais, plantas, tudo igual e diverso. Ele não sabia. Mas soube, e
então morreu.
Jörg
paira por sobre a água. Ele sabe quem vocês são. Suas peles
morenas, seus olhos repuxados, o coração aos saltos. Sabe que estão
assustados como um pássaro na boca de um gato. Sabe que vocês olham
um para o outro como quem procura se agarrar a algo conhecido. Sabe
que é inverno e que vocês sentem frio.
Então
Iñe-e vislumbrou Jörg com os outros fantasmas, como que a esperar
por ela e seu companheiro. E seu corpo todo estremeceu.
Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça
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