Não
sei quase nada da sua infância, vó, e adoraria saber mais. Do meu
lado, posso dizer que não foi fácil ser uma menina preta em um
bairro majoritariamente branco. Nossa família era a única negra do
prédio. Meu pai e outros colegas haviam ganhado um dinheiro em um
bolão da Loteria Esportiva e foi com a parte dele que conseguiu dar
entrada no apartamento térreo da praça Coronel Fernando Prestes,
entre os canais 4 e 5 em Santos. Nosso apartamento era próprio,
apesar das muitas prestações da Caixa Econômica Federal que ainda
precisavam ser pagas.
Foram
várias as vezes em que meus irmãos e eu fomos acusados de algo que
não havíamos feito ou sofrido violências que nem sequer sabíamos
nominar. Lembro de uma em especial, quando eu tinha seis anos de
idade. Eu brincava com as vizinhas na escadaria do prédio, bem ao
lado do nosso apartamento. Enquanto a gente combinava a brincadeira,
uma das meninas brancas questionou:
“Mas
se Djamila é preta, ela não pode brincar com a gente, pode?”
“Ih,
é verdade! Você não pode ser mãe da nossa boneca.”
Eu
não retruquei, tinha só seis anos de idade. Por mais que me
incomodasse muito não poder brincar com elas, o que elas diziam
parecia fazer certo sentido. Minha mãe era negra, meu pai era negro,
meus avós eram negros, eu e meus irmãos também. Na minha cabeça
de criança, aquelas palavras foram cortantes, mas lógicas.
Meu
pai, que tinha escutado tudo, dias depois chegou do trabalho com um
presente para Dara e para mim. Nós tínhamos o hábito de esperá-lo
no portão do prédio e, assim que ele dobrava a esquina, a gente
corria fazendo aviãozinho com os braços para pular no colo dele.
Nesse dia, porém, estávamos em casa. Quando abri a caixa e vi a
pequena boneca marrom, um mundo pareceu se abrir. Lembro até hoje do
cheiro dela e da minha alegria em me exibir pelo prédio. De pegar um
lençol velho, estender embaixo da escadaria e começar a montar a
minha casinha, com a boneca que poderia ser a minha filha. Anos mais
tarde fui entender a magnitude do gesto do meu pai. Imagino o quanto
lhe deve ter doído escutar as palavras daquelas meninas, quantas
memórias podem ter sido acionadas. Sem falar no quanto ele deve ter
andado para encontrar, em 1986, bonecas que se parecessem com suas
filhas.
Quando
pequena eu também me distraía colecionando papéis de carta, e
amava o cheiro deles, a magia que carregavam, a sensação de paz que
aqueles desenhos tão delicados me davam. Adorava trocá-los com as
amigas, sempre invejando a pasta cheia de folhas que elas tinham. Eu
tentava convencer a minha mãe de que eu precisava de mais papéis,
mas ela sempre sublinhava, com firmeza, que era preciso garantir as
compras do mês para os quatro filhos.
Eu
também amava olhar pela janela do meu quarto à noite, tentando ver
as estrelas. Sentia saudade de algo que não sabia nomear. Nas festas
de fim de ano, era pior, essa saudade sem nome aumentava. Minha mãe,
com sua mania de limpeza, passava o dia inteiro faxinando. Lembro até
hoje do cheiro do removedor Varsol no chão de taco. Na véspera do
Natal, dava uma ansiedade gostosa usar roupas novas, sentir o cheiro
das roupas novas, poder tomar um banho mais demorado sem que meu pai
batesse na porta, gritando: “Tá viva aí?”.
Lembro
quando, aos oito anos de idade, ganhei uma boneca chamada “mãezinha”,
que se mexia e falava “mamãe”. Por alguns minutos, ela teve
minha atenção. Porém nada me deixou mais fascinada do que o
carrinho de bombeiro que um dos meus irmãos havia ganhado. As
sirenes, o pisca-pisca e o carro rodando me deixaram hipnotizada. Os
outros meninos do prédio se amontoaram para ver, e percebi que era
melhor eu me manter afastada. A boneca logo perdeu a graça e passado
um tempo já estava sem braço, o que deixava meu pai furioso. “Eu
me mato de trabalhar na estiva para vocês não darem valor às
coisas.”
Esse
sentimento de ter que fazer tudo certo porque meu pai se matava de
trabalhar ou porque caso contrário minha mãe bateria na gente foi
um fantasma por muito tempo. Claro que a culpa não era dos meus
pais, pessoas da classe trabalhadora, que desde cedo precisaram
enfrentar as durezas da vida. Mas esse modelo rígido de “não pode
errar jamais” pode ser muito pesado. Sei que você também foi
educada assim, vó. Se errar, apanha. Se errar, vai ouvir sermão de
três horas e ser privado de tudo. Se repetir, te tiro da escola. Se
não limpar a casa, te dou uma surra. Claro que precisávamos
aprender a ter responsabilidades, mas éramos crianças, íamos errar
— e somos seres humanos, vamos errar. Essa rigidez, porém, acabou
acentuando os problemas de autoestima que o racismo nos causa. Então,
para me proteger, ou eu mentia ou me boicotava.
Lá
em casa, vó, crescemos entendendo que errar era mais um privilégio
de brancos. “Antes eu te bater do que a polícia”, era uma frase
que minha mãe dizia sempre pra gente. O medo da violência policial
faz com que as mães negras não possam permitir que seus filhos
errem — e isso é violento também com elas. Meus colegas brancos
sempre pegavam balas e bombons quando iam às lojas Americanas. Era a
diversão deles. Uma vez, fiz o mesmo. A surra que eu levei me fez
nunca mais repetir a dose. E o pior é que minha mãe tinha razão:
em situações como aquelas, crianças brancas levariam uma leve
advertência, crianças negras, não. Por isso, quando errávamos a
punição era rigorosa — para que não esquecêssemos de como a
sociedade nos trataria. Raramente havia acolhimento, nossa mãe não
tinha tempo e a vida exigia.
Também
tinha essa: “Se você brigar e apanhar, quando chegar em casa vai
apanhar ainda mais”. E a justificativa era a velha frase de sempre:
“Estou te preparando para a vida”. Preparar para a vida, quando
se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para
aprender a lidar com a brutalidade do mundo. É um ciclo que se
propaga impedindo a gente de ser, somente ser. Eu passava horas
fantasiando a vida que eu gostaria de ter, porque aquela com a qual
eu tinha que lidar me causava náuseas.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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