O
vento sopra. Faz frio, mas ela não sente. Rochas afiadas não
machucam seus pés. Seu trabalho é vigiar uma coisa que vem
crescendo há milênios, uma semente plantada nas brasas do coração
do planeta que envolveu sua superfície dura com videiras, seiva,
sangue. Logo abaixo do solo, esperando.
Vai
desabrochar em breve.
Blue
a alimentou de tempo em tempo, conforme necessário. Ela sempre soube
seu propósito: um leão à espera, uma armadilha do tamanho de um
planeta para ativar, sementes plantadas muito antes dos acordos
proibitivos sobre interferências fios abaixo. Blue deve observá-la
eclodir, cumprir seu propósito, depois destruir seu sistema de
raízes e não deixar nenhum vestígio a ser encontrado ou usado pelo
outro lado. Jardim aprendeu, com a lenta paciência das coisas
verdes, como podar agentes inimigos de sua linha do tempo, soltando
joaninhas contra os pulgões deles, libélulas contra as larvas de
mosquito.
Blue
ainda está pensando nas larvas quando vê Red.
O
tempo para.
Blue
não leva nada ao viajar pelos filamentos exceto conhecimento,
propósito, tática, e as cartas de Red. A memória é despejada e
decantada em Jardim, vida a vida a vida, sempre se aprofundando,
engrossando, criando novas raízes e eficiências — mas as cartas
de Red ela guarda no próprio corpo, escondidas sob a língua como
moedas, impressas na ponta dos dedos, entre as linhas de suas palmas.
Ela as pressiona contra os dentes antes de beijar suas vítimas, as
relê ao segurar mais firme o guidão de uma motocicleta, cobre o
queixo de soldados com elas em brigas de bar ou jogos de quartel. Ela
pensa sem pensar, com frequência, em como chamará Red na próxima
carta — esconde suas listas em paisagens oníricas fáceis de
justificar, no verso de folhas de dona-joana, em crisálidas abertas
e pontas de asas. Vermelhão. Sanhaçu-escarlate. Fio Persa. Minha
rosa vermelha.
Ela
olha para Red — treze anos, sozinha, vulnerável, tão
impossivelmente frágil e pequena — e uma carta nasce em sua
garganta como bile.
Eu
queria ser vista.
Ela
a vê e se quebra como uma onda.
Ela
não considera os cenários. Não pensa: será que Jardim me mandou
aqui para me testar, será que Jardim sabe, será que Jardim quer que
eu a veja morrer? Ela não pensa em nada enquanto as raízes
tencionam e se torcem, enquanto o planeta desabrocha uma boca, uma
face, um corpo, uma vastidão silenciosa como o voo de uma coruja na
escuridão total, uma fome com olhos e dentes, forjada para o
silêncio, esperando anos para farejar um conjunto específico de
implantes nanoscópicos, para eclodir e devorar um elemento
vermelho-brilhante dos arredores. Parece um pouco um leão, para
dizer a verdade — juba de cílios azul-pálidos, goela digna de
rugidos cinemáticos, embora nunca vá fazer um som —, exceto pelo
tamanho, pelo número de pernas, pelas asas.
A
coisa surge no chão frio e cortante. Fareja o ar, inclina a cabeça
na direção de Red.
Blue
rasga sua garganta.
Ela
tem dentes muito afiados. Quatro fileiras deles. Suas duas fileiras
de olhos veem lindamente no escuro. Suas seis pernas terminam em
pontas aguçadas, rasgam a criatura sem voz em carne pulsante e
quente. A coisa também a acerta — bom para a história que vai ter
que contar, ela pensará mais tarde, quando puder recuperar o
pensamento, quando puder agir de novo sem ser por uma necessidade
pura e obliterante — e ela sangra em sua forma de lobo, mas não
faz som algum, nada que distraia Red da ausência de epifania, do
vazio que deixou espaço para outro, do momento em que ela se tornou
de Blue.
Blue
come a carcaça, tudo menos os dentes e a vesícula de veneno. Essa
ela rasga cuidadosamente nas pedras, derrama umas poucas gotas no
buraco de onde a coisa saiu. As raízes o consumirão, murcharão e
morrerão; sua história será de que a criatura deu errado, atacou a
ela em vez da presa. Ação inimiga, sem dúvida, que tendo
descoberto o sistema de raízes fez mudanças nele em algum ponto fio
acima.
Um
engano compreensível, mas vergonhoso. Deixou Blue ferida demais para
tentar fazer consertos e, de qualquer modo, havia os tratados — o
confronto direto entre agentes em um ponto tão precário fio abaixo
seria catastrófico para os níveis do Caos.
Suas
palavras caem certeiras como a chuva. Blue lambe seu focinho
ensanguentado, suas patas, seu ombro dilacerado. Tem mais uma coisa
que precisa fazer.
Lentamente,
mantendo sua ferida fora de vista, ela anda até onde Red possa
vê-la. Mantendo distância, é claro, com as palavras passado
protegido no fundo da mente. Ela não parece ferida; tem certeza
disso.
Ela
olha para Red e vê lágrimas em seu rosto.
Ela
sufoca a urgência de correr — para perto ou para longe. Ela
carrega sua fome como uma rosa dos ventos, caminha diretamente para o
sul, para longe do norte ao qual ela aponta. Quando está fora de
vista, ela se enfia em uma caverna rasa e cai, tremendo, muda para a
forma humana, nota suas pernas, sua pele, a ferida se abrindo maior e
mais feia do que antes, provavelmente infectada, precisando de
cuidados. Ela apoia as costas na parede de pedra, fecha os olhos, põe
as palmas das mãos no chão para um apoio extra.
Uma
de suas mãos toca uma carta.
Uma
carta para orgulhar a sra. Leavitt: um bonito papel azul salpicado de
lavanda e pétalas de cardo, em um envelope azul com uma gota de cera
vermelha fechando-o. Não há lacre, nem selo — apenas vermelho,
vermelho como o sangue pingando de seu ombro.
Ela
encara a carta. Então ri, vazia e nua, e soluça, e aperta a carta
contra o coração e não a abre por muito tempo.
Mas
abre. Ela lê. A febre aumenta, o suor goteja em sua testa, mas ela
lê e lê de novo e de novo.
Bem
mais tarde, vem a rastreadora. Ela encontra os dentes da criatura
estripada. Ela arranca os dois maiores caninos, fixa-os em sua boca e
segue em direção à caverna.
Não
há nada lá para ser encontrado, exceto sangue.
Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo
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