domingo, 6 de fevereiro de 2022

Blue está em um lugar alto, à noite

 


O vento sopra. Faz frio, mas ela não sente. Rochas afiadas não machucam seus pés. Seu trabalho é vigiar uma coisa que vem crescendo há milênios, uma semente plantada nas brasas do coração do planeta que envolveu sua superfície dura com videiras, seiva, sangue. Logo abaixo do solo, esperando.
Vai desabrochar em breve.
Blue a alimentou de tempo em tempo, conforme necessário. Ela sempre soube seu propósito: um leão à espera, uma armadilha do tamanho de um planeta para ativar, sementes plantadas muito antes dos acordos proibitivos sobre interferências fios abaixo. Blue deve observá-la eclodir, cumprir seu propósito, depois destruir seu sistema de raízes e não deixar nenhum vestígio a ser encontrado ou usado pelo outro lado. Jardim aprendeu, com a lenta paciência das coisas verdes, como podar agentes inimigos de sua linha do tempo, soltando joaninhas contra os pulgões deles, libélulas contra as larvas de mosquito.
Blue ainda está pensando nas larvas quando vê Red.
O tempo para.
Blue não leva nada ao viajar pelos filamentos exceto conhecimento, propósito, tática, e as cartas de Red. A memória é despejada e decantada em Jardim, vida a vida a vida, sempre se aprofundando, engrossando, criando novas raízes e eficiências — mas as cartas de Red ela guarda no próprio corpo, escondidas sob a língua como moedas, impressas na ponta dos dedos, entre as linhas de suas palmas. Ela as pressiona contra os dentes antes de beijar suas vítimas, as relê ao segurar mais firme o guidão de uma motocicleta, cobre o queixo de soldados com elas em brigas de bar ou jogos de quartel. Ela pensa sem pensar, com frequência, em como chamará Red na próxima carta — esconde suas listas em paisagens oníricas fáceis de justificar, no verso de folhas de dona-joana, em crisálidas abertas e pontas de asas. Vermelhão. Sanhaçu-escarlate. Fio Persa. Minha rosa vermelha.
Ela olha para Red — treze anos, sozinha, vulnerável, tão impossivelmente frágil e pequena — e uma carta nasce em sua garganta como bile.
Eu queria ser vista.
Ela a vê e se quebra como uma onda.
Ela não considera os cenários. Não pensa: será que Jardim me mandou aqui para me testar, será que Jardim sabe, será que Jardim quer que eu a veja morrer? Ela não pensa em nada enquanto as raízes tencionam e se torcem, enquanto o planeta desabrocha uma boca, uma face, um corpo, uma vastidão silenciosa como o voo de uma coruja na escuridão total, uma fome com olhos e dentes, forjada para o silêncio, esperando anos para farejar um conjunto específico de implantes nanoscópicos, para eclodir e devorar um elemento vermelho-brilhante dos arredores. Parece um pouco um leão, para dizer a verdade — juba de cílios azul-pálidos, goela digna de rugidos cinemáticos, embora nunca vá fazer um som —, exceto pelo tamanho, pelo número de pernas, pelas asas.
A coisa surge no chão frio e cortante. Fareja o ar, inclina a cabeça na direção de Red.
Blue rasga sua garganta.
Ela tem dentes muito afiados. Quatro fileiras deles. Suas duas fileiras de olhos veem lindamente no escuro. Suas seis pernas terminam em pontas aguçadas, rasgam a criatura sem voz em carne pulsante e quente. A coisa também a acerta — bom para a história que vai ter que contar, ela pensará mais tarde, quando puder recuperar o pensamento, quando puder agir de novo sem ser por uma necessidade pura e obliterante — e ela sangra em sua forma de lobo, mas não faz som algum, nada que distraia Red da ausência de epifania, do vazio que deixou espaço para outro, do momento em que ela se tornou de Blue.
Blue come a carcaça, tudo menos os dentes e a vesícula de veneno. Essa ela rasga cuidadosamente nas pedras, derrama umas poucas gotas no buraco de onde a coisa saiu. As raízes o consumirão, murcharão e morrerão; sua história será de que a criatura deu errado, atacou a ela em vez da presa. Ação inimiga, sem dúvida, que tendo descoberto o sistema de raízes fez mudanças nele em algum ponto fio acima.
Um engano compreensível, mas vergonhoso. Deixou Blue ferida demais para tentar fazer consertos e, de qualquer modo, havia os tratados — o confronto direto entre agentes em um ponto tão precário fio abaixo seria catastrófico para os níveis do Caos.
Suas palavras caem certeiras como a chuva. Blue lambe seu focinho ensanguentado, suas patas, seu ombro dilacerado. Tem mais uma coisa que precisa fazer.
Lentamente, mantendo sua ferida fora de vista, ela anda até onde Red possa vê-la. Mantendo distância, é claro, com as palavras passado protegido no fundo da mente. Ela não parece ferida; tem certeza disso.
Ela olha para Red e vê lágrimas em seu rosto.
Ela sufoca a urgência de correr — para perto ou para longe. Ela carrega sua fome como uma rosa dos ventos, caminha diretamente para o sul, para longe do norte ao qual ela aponta. Quando está fora de vista, ela se enfia em uma caverna rasa e cai, tremendo, muda para a forma humana, nota suas pernas, sua pele, a ferida se abrindo maior e mais feia do que antes, provavelmente infectada, precisando de cuidados. Ela apoia as costas na parede de pedra, fecha os olhos, põe as palmas das mãos no chão para um apoio extra.
Uma de suas mãos toca uma carta.
Uma carta para orgulhar a sra. Leavitt: um bonito papel azul salpicado de lavanda e pétalas de cardo, em um envelope azul com uma gota de cera vermelha fechando-o. Não há lacre, nem selo — apenas vermelho, vermelho como o sangue pingando de seu ombro.
Ela encara a carta. Então ri, vazia e nua, e soluça, e aperta a carta contra o coração e não a abre por muito tempo.
Mas abre. Ela lê. A febre aumenta, o suor goteja em sua testa, mas ela lê e lê de novo e de novo.
Bem mais tarde, vem a rastreadora. Ela encontra os dentes da criatura estripada. Ela arranca os dois maiores caninos, fixa-os em sua boca e segue em direção à caverna.
Não há nada lá para ser encontrado, exceto sangue.

Amal El-Mohtar e Max Gladstone, in É assim que se perde a guerra do tempo

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