Estela
saiu desvairada pelo caminho que deixava a casa dos marimbus, como se
corresse de um incêndio. Seus filhos choravam e foram amparados por
Santa e a filha, que andavam pela mesma estrada carregando trouxas de
roupa e peixes. O grito da mulher havia sido tão desesperador que
mobilizou boa parte dos moradores das cercanias. Estava vestida com
uma camisola branca feita de um tecido delicado e quase transparente.
Era possível ver os mamilos de seus seios jovens, rijos, por trás
do tecido, movimentando-se agitados ao sabor dos nervos abalados.
Ninguém conseguia entender o que ela dizia e o choro das crianças
havia se tornado mais nítido porque chamavam pela mãe. Chamavam
para que retornasse ao seu lugar, que os amparasse. Os homens
replicaram para as mulheres e a notícia correu de casa em casa e
pela estrada, com a velocidade das más notícias. Salomão estava
morto.
Salu
se deslocou da curta distância de sua casa até a casa de Bibiana
para relatar o que havia lhe chegado. A filha, que estava corrigindo
os cadernos, continuou de cabeça baixa, mas depois retirou os óculos
e pediu à mãe que sentasse. “A senhora está nervosa? Descanse um
pouco, minha mãe”, serviu uma xícara de café e levou para a
sala. “Ele tinha muitos inimigos, minha mãe”, disse retornando
aos cadernos e baixando a cabeça novamente, “mais cedo ou mais
tarde isso iria acontecer”.
A
mãe bebeu um gole do café, “tinha tanto lugar para acontecer,
porque logo nesta fazenda, se ele tinha outras fazendas e vivia aqui
e acolá?”. “Essas coisas não escolhem lugar, não, minha mãe,
acontecem onde têm que acontecer.” Bibiana parecia falar no tom de
voz conformado de uma viúva que ainda não havia completado seu
primeiro ano de luto. “É bom que ela sinta na pele o que eu ainda
sinto”, disse, sem olhar para a mãe.
“O
que é isso, Bibiana? Foi essa a educação que eu e seu pai lhe
demos? Não se deseja mal a ninguém, por pior que possa lhe
parecer.”
“Deveriam
ter queimado a casa com a mulher e as crianças dentro. Assim não
haveria herdeiros para tentar retirar a gente daqui...”
Salu
levantou de súbito e derrubou a cadeira na agitação. Bibiana
ergueu a cabeça para olhar a mãe. Ainda teve tempo para dizer que
poderia deixar a cadeira no chão, que ela mesma colocaria no lugar.
A mãe, velha, que tanta dificuldade passou durante a vida, se sentiu
indignada com a violência do desejo de sua filha. Desferiu um tapa
no seu rosto. Aquela era a segunda vez que batia numa de suas filhas.
Recordou da primeira vez, da surra em Belonísia por causa do beijo
que Bibiana disse ter visto. Agora ela levava a mão à face que
ardia do golpe. Seus olhos de imediato se encheram de lágrimas.
“Não
pensei nunca precisar fazer isso em você depois de velha, Bibiana,
depois de você ter me dado netos. Mas não criei filhos para andarem
pela terra fazendo o mal a ninguém. Não se deseja a morte de
ninguém. Já não basta o que se abateu sobre esta casa? Você quer
mais castigo sobre a gente?” Salu se dirigiu para a porta,
enxugando com as costas das mãos as lágrimas que acabavam de deixar
seus olhos. “Estou cansada, Bibiana. Essa não foi a vida que
desejei, e temo pelos meus netos. Que mundo vamos deixar para eles?”,
perguntou, enquanto ultrapassava o batente da porta.
Bibiana
ficou de pé, mas não levantou a cadeira caída. Quando a mãe
estava suficientemente longe, desabou num choro que só havia se
permitido na noite em que o filho disse que cuidaria dela. Suas mãos
doíam, feridas, e as deixou se agitarem no ar como se aquele
movimento pudesse aliviar seu padecimento. Nem a notícia de que o
homem que acreditava ser o mentor do crime contra Severo estava morto
a deixou aliviada. A ausência que sentia parecia se dilatar à
medida que o tempo passava. Continuava a abrir uma cova profunda em
sua dor. A certeza mais difícil de constatar era que nada, nem mesmo
a posse da terra, o traria de volta.
Belonísia,
que havia saído antes de o sol nascer, retornou ao meio-dia. Trazia
aipim, batata-doce e uma abóbora grande. Colocou tudo em cima da
mesa da cozinha. Domingas, o marido e Zezé estavam na sala, sentados
ao lado da mãe. Quando ouviu Salu dizer o que tinha ocorrido com
Salomão, ficou parada por um tempo, mostrando-se surpresa com a
notícia. Levantou o queixo para o irmão, interrogou com os
movimentos dos lábios e das mãos, queria saber cada detalhe.
Salomão havia aparecido quase degolado, caído numa vereda no meio
da mata, mas não muito distante da margem do rio Santo Antônio. O
cavalo que montava foi visto perto da casa de vidro, pastando as
plantas que cresciam na beira dos marimbus. Disseram que, quando a
mulher saiu e encontrou o cavalo perto de casa, achou estranho. Tião
e Isidoro, que haviam saído para pescar, encontraram o corpo nesse
lugar, na vereda, ao lado de uma cova grande. O grande mistério,
sobre o qual discutiam no momento em que adentrou a casa: a cova. Uns
disseram que surgiu do dia para a noite. Outros disseram que ela foi
crescendo com o passar do tempo. Mas que não parecia feita por mãos
de homem. Como se a terra estivesse cedendo, formando um poço largo
e profundo.
Belonísia
sentiu falta de Bibiana entre os irmãos e quis saber se ela já
sabia. Sim, responderam. Salu estava amargurada pela reação de
Bibiana, mas não quis contar a reação que ela teve. Sentia-se
envergonhada pelo ódio da filha. Belonísia imaginou como deveria
ter sido dolorido para a irmã ter que escutar tudo aquilo, enquanto
procurava respostas para a morte do marido. Por isso, decidiu não
procurá-la naquele instante.
Quando
se afastou para desarrumar a sacola que havia deixado na cozinha,
caiu dura e desacordada, como um pássaro abatido em pleno voo. No
meio do alvoroço que se formou com o mal-estar súbito, o cunhado e
o irmão a carregaram para o quarto de Salu. A mãe começou a rezar
enquanto retirava o lenço que recobria o cabelo de Belonísia.
Domingas descalçou a bota, e desabotoou a calça e a camisa de manga
comprida sujas de terra. Ao despertar, ela não se lembrava de nada.
Não se lembrava da morte de Salomão, nem como havia chegado ao
quarto da mãe. Não recordava a exaustão do trabalho. Era como se
este dia tivesse sumido de seu calendário. Agitou-se querendo
levantar da cama. Salu pediu que continuasse deitada, precisava
descansar. “Deve ter sido o calor”, disse a mãe, entregando-lhe
um copo de água, “Se alimentou antes de sair, Belô?”, insistiu
sem obter resposta, tentando descobrir a origem do mal-estar da
filha. Belonísia parecia distante e cansada. Bebeu a metade do copo
e tornou a deitar com os olhos fixos na palha do teto. Depois caiu
num sono profundo e acordou apenas no dia seguinte.
No
mesmo dia, vieram duas viaturas da polícia com investigadores. A
fazenda ficou sitiada de homens armados colhendo depoimentos de todos
os que haviam encontrado Salomão: dos que residiam pela estrada,
embora ele tivesse sido encontrado numa área desabitada, de mata
fechada. As chuvas dos últimos meses haviam sido regulares, o que
contribuiu para que as folhas crescessem e sombreassem os caminhos.
Lugares antes cercados de árvores secas e com boa visibilidade se
tornaram mata fechada, onde os poucos habituados poderiam se perder
com facilidade. As perguntas não cessavam. Queriam saber sobre
possíveis ameaças que a vítima ou terceiros tivessem comentado com
os subordinados, sobre desafetos entre os trabalhadores e Salomão,
sobre movimentos suspeitos, carros, motocicletas, desconhecidos que
tivessem passado pelas últimas semanas pela fazenda, que tivessem
estudado seus hábitos. Suspeitos que sabiam qual a melhor hora para
executar o crime. Os moradores de Água Negra começaram a se sentir
desconfortáveis. Duvidavam que dentre eles alguém pudesse ter
cometido aquela barbárie.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
Nenhum comentário:
Postar um comentário