Mãe Salu dizia desde sempre que seu
cabelo já tinha muitos fios brancos aos dezoito anos. Deixou de
alisá-lo a ferro e o guardou sob os lenços que a maioria das
mulheres camponesas usava. Você olha para si mesma no espelho que se
apoia no chão contra a parede – porque o barro que a reveste não
segura muita coisa – enquanto coloca os grampos que tira da boca e
rumina sobre o quanto seu cabelo também lhe parece branco. É de
família. Talvez tenha ficado mais branco nas últimas semanas. Foi
perdendo a cor a cada pensamento que tinha com a intenção de
compreender o que havia acontecido. A cada noite de vigília e medo
que foi obrigada a atravessar com a ausência de seu marido. O
companheiro que havia lhe dado muito do que continha em si.
Você atravessa a casa como uma
assombração e por vezes não escuta quando lhe falam. Passa a
madrugada acordada revirando na cama ao lado da filha Ana, trazida
para preencher o vazio que o quarto tinha se tornado. Observa o sono
da criança, os movimentos das pálpebras, talvez esteja sonhando,
até que a mente a leva de novo para a ausência. Quando desiste de
tentar dormir, abre a porta para sentir o sereno e a deixa aberta,
ainda que a sombra do que lhe ocorreu persista a cada movimento da
noite. Recorda a violência ao olhar para a motocicleta que está no
terreiro de casa, ou a cada carro que atravessa a estrada da fazenda,
porque pode carregar o perigo. O pensamento, embotado pelo
desaparecimento abrupto, resiste em apagar aquelas horas de sua vida.
Uma nuvem recobre o sol e a sombra que se projeta na casa é como um
vulto atravessando os cômodos. O som de buzina de qualquer
motocicleta, e que pode atravessar a estrada, comprime como uma mão
a sua garganta. Aquele aperto que você seria incapaz de explicar
para seus alunos. Ouvia aqueles ruídos como um aviso de que o marido
iria retornar. Todos os lugares por onde ele se movimentava estão
carregados de uma eletricidade que só você pode sentir. O cheiro
das roupas intocadas no armário, o travesseiro que agora é o mesmo
em que você deita, impregnado do perfume de seu corpo. Quando
consegue dormir, acorda com a sensação de que despertou de um longo
sonho e hesita em estender a mão para o lado da cama onde ele
deveria estar. Suas lembranças são sabotadas pelo cheiro, pelo
silvo sutil da respiração que julga ouvir, pelo calor que parece
emanar ao seu lado. Quando finalmente resolve estender sua mão, sem
coragem de abrir os olhos, encontra a filha dormindo. Mas sempre que
o sono termina de forma abrupta, os olhos se arregalam e se sente só
ao constatar que continua privada de sua presença. É quando as
lágrimas vêm, incontroláveis.
Sua filha mais nova pergunta quando o pai
irá voltar e você responde que não voltará. Sua filha chora e
mesmo assim você resiste. Se fosse você que estivesse ausente, seu
marido não deixaria as crianças fraquejarem. Ensinaria a prosseguir
encontrando forças no trabalho, na luta que pode ser a vida todos os
dias. Então você afaga a cabeça da menina, deita-a no colo,
promete algo que esteja ao seu alcance, um sorvete ou um saco de
pipoca quando for à cidade. Mas não pode dizer que ele irá voltar,
seria cruel com qualquer um, e mesmo uma menina de pouca idade não
poderia se agarrar a uma promessa que não será cumprida.
Ao amanhecer você se desloca para o
quintal. Acende o fogão a lenha e pensa na caneca esmaltada que
permanecerá no mesmo lugar do armário porque você não consegue
retirá-la, nem mesmo os filhos ousam tocá-la. Também não sabe o
que fazer com as repetições de pensamentos: e se não tivesse
esquecido o documento? E se tivessem seguido para a cidade, o carro
com os criminosos os teria alcançado na estrada? Se não tivesse
retornado há dez anos para Água Negra? Se não tivessem se
levantado contra o que consideravam injustiça com todos? Os muitos
“ses” surgem a todo o momento e a enredam em lianas invisíveis
das quais não se livra facilmente.
Você retornou para a escola, mas algo se
rompeu definitivamente em seu interior. As crianças parecem
descontroladas diante da sua apatia. Nem de longe lembra a professora
que ensinava sobre a história do povo negro, que ensinava
matemática, ciências e fazia as crianças se orgulharem de serem
quilombolas. Que contava e recontava a história de Água Negra e de
antes, muito antes, dos garimpos, das lavouras de cana, dos castigos,
dos sequestros de suas aldeias natais, da travessia pelo oceano de um
continente para outro. As crianças ficavam atentas, não sabiam que
havia uma história tão antiga atrás daquelas vidas esquecidas. Uma
história triste, mas bonita. E passavam a entender porque ainda
sofriam com preconceito no posto de saúde, no mercado ou nos
cartórios da cidade. Onde lhes apontavam dizendo “olha o povo do
mato” ou “negrinhos da roça”. Compreendiam porque tudo aquilo
não havia terminado. Você incutiu naquelas vidas um respeito grande
por suas próprias histórias. Mas agora nem você conseguia mais se
iluminar com a esperança de que a mudança fosse possível, muito
menos acreditava que nada do que aprenderam pudesse fazer diferença
para serenar a revolta que lhe incendiava.
Nas últimas semanas passou a sair de
madrugada. Carregava consigo uma enxada. Não contou a ninguém para
onde ia, nem o que faria. Talvez perambulasse por trilhas e rio
procurando aplacar a dor que não diminuía e parecia corroer-lhe por
inteiro. Retornava antes de o sol nascer, não conseguia nem
constatar se os filhos estavam em casa e dormiam. Sentava numa
cadeira, o cabelo recoberto de grama e terra, as mãos nodosas e
grossas como as do pai, como as do povo que trabalhava na roça.
Adormecia, e naquele breve instante parecia estar em paz com seu
entorno. Acordava com alguma das meninas ou com Inácio perguntando
por que estava coberta de terra. Queriam saber por que estava suja,
tinha barro no rosto, no pescoço, nas mãos e roupa. “Fui mexer no
quintal”, era a resposta. Mas no quintal, nenhuma mudança, nenhum
plantio novo, algumas plantas inclusive morriam porque não estavam
sendo aguadas, nem remexidas, nem fortificadas.
As suas mãos doíam. Latejavam pelo
resto do dia. Colocava-as numa panela com água e gelo, as deixava
submersas. A pele se esgarçava em suas palmas vermelhas, calosas.
Suas mãos sangravam. Você as escondia, nada dizia. Como as chagas
do Senhor dos Passos crucificado. Como as mãos do seu povo. Como as
mãos dos antepassados. Mãos que os ajudaram a sobreviver, que
forjaram o alimento e encantos ao manejar folhas e movimentá-las
pelo corpo necessitado. Mãos que forjaram a defesa e a justiça
quando possível. A mão que o curador deixou na cabeça de seus
filhos.
Com a força de suas mãos dilaceradas
você apenas abria um caminho.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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