quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Rio de Sangue | 10

Mãe Salu dizia desde sempre que seu cabelo já tinha muitos fios brancos aos dezoito anos. Deixou de alisá-lo a ferro e o guardou sob os lenços que a maioria das mulheres camponesas usava. Você olha para si mesma no espelho que se apoia no chão contra a parede – porque o barro que a reveste não segura muita coisa – enquanto coloca os grampos que tira da boca e rumina sobre o quanto seu cabelo também lhe parece branco. É de família. Talvez tenha ficado mais branco nas últimas semanas. Foi perdendo a cor a cada pensamento que tinha com a intenção de compreender o que havia acontecido. A cada noite de vigília e medo que foi obrigada a atravessar com a ausência de seu marido. O companheiro que havia lhe dado muito do que continha em si.
Você atravessa a casa como uma assombração e por vezes não escuta quando lhe falam. Passa a madrugada acordada revirando na cama ao lado da filha Ana, trazida para preencher o vazio que o quarto tinha se tornado. Observa o sono da criança, os movimentos das pálpebras, talvez esteja sonhando, até que a mente a leva de novo para a ausência. Quando desiste de tentar dormir, abre a porta para sentir o sereno e a deixa aberta, ainda que a sombra do que lhe ocorreu persista a cada movimento da noite. Recorda a violência ao olhar para a motocicleta que está no terreiro de casa, ou a cada carro que atravessa a estrada da fazenda, porque pode carregar o perigo. O pensamento, embotado pelo desaparecimento abrupto, resiste em apagar aquelas horas de sua vida. Uma nuvem recobre o sol e a sombra que se projeta na casa é como um vulto atravessando os cômodos. O som de buzina de qualquer motocicleta, e que pode atravessar a estrada, comprime como uma mão a sua garganta. Aquele aperto que você seria incapaz de explicar para seus alunos. Ouvia aqueles ruídos como um aviso de que o marido iria retornar. Todos os lugares por onde ele se movimentava estão carregados de uma eletricidade que só você pode sentir. O cheiro das roupas intocadas no armário, o travesseiro que agora é o mesmo em que você deita, impregnado do perfume de seu corpo. Quando consegue dormir, acorda com a sensação de que despertou de um longo sonho e hesita em estender a mão para o lado da cama onde ele deveria estar. Suas lembranças são sabotadas pelo cheiro, pelo silvo sutil da respiração que julga ouvir, pelo calor que parece emanar ao seu lado. Quando finalmente resolve estender sua mão, sem coragem de abrir os olhos, encontra a filha dormindo. Mas sempre que o sono termina de forma abrupta, os olhos se arregalam e se sente só ao constatar que continua privada de sua presença. É quando as lágrimas vêm, incontroláveis.
Sua filha mais nova pergunta quando o pai irá voltar e você responde que não voltará. Sua filha chora e mesmo assim você resiste. Se fosse você que estivesse ausente, seu marido não deixaria as crianças fraquejarem. Ensinaria a prosseguir encontrando forças no trabalho, na luta que pode ser a vida todos os dias. Então você afaga a cabeça da menina, deita-a no colo, promete algo que esteja ao seu alcance, um sorvete ou um saco de pipoca quando for à cidade. Mas não pode dizer que ele irá voltar, seria cruel com qualquer um, e mesmo uma menina de pouca idade não poderia se agarrar a uma promessa que não será cumprida.
Ao amanhecer você se desloca para o quintal. Acende o fogão a lenha e pensa na caneca esmaltada que permanecerá no mesmo lugar do armário porque você não consegue retirá-la, nem mesmo os filhos ousam tocá-la. Também não sabe o que fazer com as repetições de pensamentos: e se não tivesse esquecido o documento? E se tivessem seguido para a cidade, o carro com os criminosos os teria alcançado na estrada? Se não tivesse retornado há dez anos para Água Negra? Se não tivessem se levantado contra o que consideravam injustiça com todos? Os muitos “ses” surgem a todo o momento e a enredam em lianas invisíveis das quais não se livra facilmente.
Você retornou para a escola, mas algo se rompeu definitivamente em seu interior. As crianças parecem descontroladas diante da sua apatia. Nem de longe lembra a professora que ensinava sobre a história do povo negro, que ensinava matemática, ciências e fazia as crianças se orgulharem de serem quilombolas. Que contava e recontava a história de Água Negra e de antes, muito antes, dos garimpos, das lavouras de cana, dos castigos, dos sequestros de suas aldeias natais, da travessia pelo oceano de um continente para outro. As crianças ficavam atentas, não sabiam que havia uma história tão antiga atrás daquelas vidas esquecidas. Uma história triste, mas bonita. E passavam a entender porque ainda sofriam com preconceito no posto de saúde, no mercado ou nos cartórios da cidade. Onde lhes apontavam dizendo “olha o povo do mato” ou “negrinhos da roça”. Compreendiam porque tudo aquilo não havia terminado. Você incutiu naquelas vidas um respeito grande por suas próprias histórias. Mas agora nem você conseguia mais se iluminar com a esperança de que a mudança fosse possível, muito menos acreditava que nada do que aprenderam pudesse fazer diferença para serenar a revolta que lhe incendiava.
Nas últimas semanas passou a sair de madrugada. Carregava consigo uma enxada. Não contou a ninguém para onde ia, nem o que faria. Talvez perambulasse por trilhas e rio procurando aplacar a dor que não diminuía e parecia corroer-lhe por inteiro. Retornava antes de o sol nascer, não conseguia nem constatar se os filhos estavam em casa e dormiam. Sentava numa cadeira, o cabelo recoberto de grama e terra, as mãos nodosas e grossas como as do pai, como as do povo que trabalhava na roça. Adormecia, e naquele breve instante parecia estar em paz com seu entorno. Acordava com alguma das meninas ou com Inácio perguntando por que estava coberta de terra. Queriam saber por que estava suja, tinha barro no rosto, no pescoço, nas mãos e roupa. “Fui mexer no quintal”, era a resposta. Mas no quintal, nenhuma mudança, nenhum plantio novo, algumas plantas inclusive morriam porque não estavam sendo aguadas, nem remexidas, nem fortificadas.
As suas mãos doíam. Latejavam pelo resto do dia. Colocava-as numa panela com água e gelo, as deixava submersas. A pele se esgarçava em suas palmas vermelhas, calosas. Suas mãos sangravam. Você as escondia, nada dizia. Como as chagas do Senhor dos Passos crucificado. Como as mãos do seu povo. Como as mãos dos antepassados. Mãos que os ajudaram a sobreviver, que forjaram o alimento e encantos ao manejar folhas e movimentá-las pelo corpo necessitado. Mãos que forjaram a defesa e a justiça quando possível. A mão que o curador deixou na cabeça de seus filhos.
Com a força de suas mãos dilaceradas você apenas abria um caminho.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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