No dia seguinte, antes do amanhecer,
ressoavam nas galerias os golpes das picaretas e os gritos de Zorba.
Os operários trabalhavam com frenesi. Só Zorba poderia conduzi-los
assim. Com ele, o trabalho se tornava vinho, canto, amor e todos se
embriagavam. A terra ganhava vida em suas mãos. As pedras, o carvão,
a madeira, os trabalhadores adotavam seu ritmo, uma guerra se
desencadeava nas galerias, sob a luz branca do acetileno e Zorba ia à
frente, lutando corpo-a-corpo. Dava um nome a cada galeria e a cada
filão, dava um rosto às forças sem feições e daí em diante,
lhes era difícil escapar dele.
— Quando sei — dizia ele, — que
aquela é a galeria Canavarro (assim batizara a primeira delas), fico
tranquilo. Conheço-a pelo nome, ela não vai ter a ousadia de me
fazer uma sujeira. Nem a madre superiora, nem a cambeta nem a mijona.
Eu conheço todas elas, digo-lhe, cada qual por seu nome.
Tinha entrado aquele dia na galeria, sem
que ele percebesse.
— Coragem! Coragem! — gritava Zorba
para os trabalhadores, como de costume, quando estava em pleno
entusiasmo. — para a frente, rapazes, vamos dominar a montanha!
Somos homens, hein! Animais ferozes, o bom Deus nos vê e toma susto.
Vocês, os cretenses, eu o macedônico, vamos vencer a montanha, não
é ela que vai nos vencer! A Turquia nós vencemos, hein, então será
que essa montanha de nada vai fazer medo na gente? Para a frente!
Alguém chegou correndo perto de Zorba. À
luz do acetileno, distingui a cara estreita de Mimito.
— Zorba, disse, gaguejando, —
Zorba...
Mas este, voltando-se, viu Mimito e
compreendeu. Levantou a grande mão:
— Suma-se! — falou, — fuja daqui!
— Venho da parte da madame... —
começou o idiota.
— Suma-se daqui, estou dizendo! Estamos
trabalhando! — Mimito correu à toda. Zorba cuspiu, exasperado.
— O dia é para o trabalho — disse. —
o dia é um homem. A noite é para festejar. A noite é uma mulher.
Não se deve misturar tudo!
Nesse momento, eu me aproximei.
— Amigos — disse, — é meio-dia, é
tempo de parar o trabalho para fazer uma boquinha.
Zorba voltou-se, me viu e falou,
carrancudo:
— Com sua permissão, patrão, vá
embora. Vá almoçar. Perdemos doze dias, precisamos recuperar. Bom
apetite!
Saí da galeria e desci para o mar. Abri
o livro que trazia. Tinha fome, mas esquecia-me dela. A meditação é
também uma mina, pensava eu... vamos! E mergulhava nas grandes
galerias do cérebro.
Um livro inquietante sobre as montanhas
cobertas de neve do Tibete: os hábitos amarelos, que concentrando
sua vontade, obrigam o éter a tomar a forma de seus desejos.
Altos cumes, uma atmosfera povoada de
espírito. O inútil zumbido do mundo não chega até lá em cima. O
grande asceta pega seus discípulos, rapazes de dezesseis a dezoito
anos, e à meia-noite os conduz até um lago gelado na montanha. Eles
se despem, quebram o gelo, mergulham as roupas na água gelada,
tornam a vesti-las e as deixam secar no corpo. Novamente as
mergulham, secam-nas e assim fazem sete vezes. Depois voltam ao
mosteiro para o ofício da manhã. Sobem a um cume, a cinco, seis mil
metros de altitude. Sentam-se tranquilos, respiram profunda e
regularmente, o torso nu, e não sentem frio. Seguram, entre as
palmas das mãos, uma caneca de água gelada, olham para ela,
concentram-se, projetam sua força sobre a água gelada, a água
ferve. Depois, preparam o chá.
O grande asceta reúne à sua volta os
discípulos e lhes diz:
“Maldito aquele que não traz em si
a fonte da felicidade!
Maldito aquele que quer agradar aos
outros!
Maldito aquele que não sente que esta
vida e a outra são uma só!”
A noite caíra e eu não conseguia mais
ler. Fechei o livro e olhei para o mar. Tenho, pensei, tenho que me
libertar dos Budas, dos Deuses, das pátrias, das ideias!
De súbito o mar ficara negro. A Lua Nova
caía em direção ao poente. Cães uivavam tristemente ao longe, nos
jardins, e a ravina toda latia.
Zorba apareceu, lambuzado, enlameado, a
camisa em farrapos. Agachou-se perto de mim.
— A coisa andou bem hoje — disse
satisfeito, — fizemos um bom trabalho.
Ouvia as palavras de Zorba sem lhes
entender o sentido. Meu espírito ainda pairava nos longínquos e
misteriosos rochedos abruptos.
— Em que está pensando, patrão? Você
está longe daqui.
Trouxe de volta o meu espírito e
virei-me. Olhei para meu companheiro, abanei a cabeça.
— Zorba — respondi, — você pensa
que é um formidável Simbad o Marinheiro e banca o grão-fino porque
correu o mundo. E, coitado, não viu nada, nada, nada! Aliás eu
também não. O mundo é muito mais vasto do que se pode crer.
Viajamos, percorremos terras e mares, e ainda nem pusemos o nariz
fora da soleira da nossa casa.
Zorba franziu os lábios, mas nada disse.
Resmungou somente, como um cão fiel, quando lhe batem.
— Há montanhas — prossegui, —
muito altas, imensas, cobertas de mosteiros. E nesses mosteiros vivem
monges de hábitos amarelos. Ficam sentados, pernas cruzadas, um mês,
dois meses, seis meses, e apenas pensam em uma única coisa. Uma só,
entende? Não duas, uma! Não pensam, como nós, na mulher e na
linhita ou nos livros e na linhita: concentram seu espírito sobre
uma única e mesma coisa, e realizam milagres. É assim que acontecem
os milagres. Você viu, Zorba, que ao expor uma lupa ao sol, você
reúne todos os raios num mesmo ponto? Esse ponto logo pega fogo. Por
quê? Porque a força do sol não se dispersou, ela se concentrou
toda nesse único ponto. Assim, o espírito do homem. A gente faz
milagres concentrando o espírito numa única e mesma coisa. Você
compreende, Zorba?
Zorba tinha a respiração curta. Por um
instante, moveu-se como querendo fugir. Mas conteve-se.
— Continue, resmungou com uma voz
estrangulada.
Porém, de súbito, endireitou-se.
— Cale-se! Cale-se! — gritou. —
porque me diz tudo isso, patrão? Porque é que me envenena o
coração? Eu estava bem aqui, porque vem me perturbar? Eu tinha
fome, e o bom Deus ou o Diabo (que me enforquem, se eu vejo a
diferença) me jogou um osso, que eu lambia. E balançava o rabo,
gritando: Obrigado! Obrigado! Agora...
Bateu com o pé, virou-me as costas, fez
um movimento em direção ao barracão, mas ainda fervia. E parou.
— Pff! O belo osso... — bramiu. —
uma cantora velha e suja! Uma barcaça velha e suja.
Tomou um punhado de seixos que jogou ao
mar.
— Mas quem é — exclamou, — quem é
que nos atira os ossos?
Esperou um pouco, e não ouvindo nenhuma
resposta, enervou-se.
— Você não diz nada, patrão? —
gritou. — se sabe, vá falando para eu também saber o nome dele; e
não se incomode, vou tratá-lo decentemente. Mas assim, ao acaso,
para que lado ir? Eu vou é me danar todo.
— Estou com fome. Vá tratar do jantar.
Comamos primeiro!
— A gente não pode passar ao menos uma
noite sem comer, patrão? Eu tinha um tio monge que nos dias de
semana passava a água e sal. Nos domingos e dias santos juntava um
pouco de farelo. Pois bem, viveu cento e vinte anos.
— Viveu cento e vinte anos, Zorba,
porque era um crente. Tinha achado seu Deus, não sentia nenhuma
preocupação. Mas, nós, Zorba, nós não temos um Deus para nos
alimentar; então, acenda o fogo, estão aqui umas douradas. Faça
uma sopa quente, grossa, com bastante cebola e pimenta, como nós
gostamos. Depois veremos.
— Que é que veremos? — fez Zorba,
irritado. — quando a pança estiver cheia, a gente esquece todas
essas coisas.
— É isso mesmo que eu quero! É este o
valor do alimento, Zorba. Ande logo, façamos uma sopa de peixe, meu
velho, senão nossa cabeça vai estourar!
Mas Zorba nem se mexia. Ficou parado,
imóvel, olhando para mim.
— Ouça, patrão — disse ele, — eu
conheço seus projetos. Olhe, ainda há pouco, quando falava comigo,
eu tive uma espécie de clarão, eu vi tudo!
— E quais são os meus projetos, Zorba?
— perguntei intrigado.
— Você quer é construir um mosteiro,
está na cara! Um mosteiro onde vai pôr, em lugar de monges, alguns
arranha papéis da marca de sua senhoria, que passarão o tempo a
rabiscar, dia e noite. E depois, como nos santos que a gente vê nas
imagens, vão sair de sua boca fitas impressas. Adivinhei, hein!
Baixei a cabeça, tristonho. Antigos
sonhos da mocidade, grandes asas que perderam as plumas; ingênuos,
generosos, nobres anseios... construir uma comunidade espiritual,
encerrar-me nela com uma dezena de companheiros — músicos,
pintores, poetas... — trabalhar o dia todo, só nos encontramos à
noite, para comer, cantar juntos, ler, propor-nos as grandes
questões, demolir as velhas respostas. Até já redigira o
regulamento da comunidade. Tinha mesmo encontrado a sede, em
São-João-o-Caçador, numa garganta do Himeto...
— Adivinhei — disse zorba, todo
contente, vendo-me silencioso.
— Pois bem, então vou lhe pedir um
favor, Santo Higumeno! Nesse mosteiro você vai me pôr de porteiro,
para eu fazer contrabando, e deixar passar de vez em quando certas
coisas extravagantes: mulheres, bandolins, garrafões de raki,
leitõezinhos assados... tudo isso para você não desperdiçar a
vida só com tolices!
Riu-se, e lá se foi, decidido, para o
barracão. Corri atrás dele.
Limpou os peixes sem dizer palavra. Eu
trouxe lenha e acendi o fogo.
Pronta a sopa, pegamos as colheres e nos
pusemos a comer na mesma panela.
Nem um nem outro falava. Nada havíamos
comido o dia inteiro e engolíamos vorazmente. Bebemos vinho e
reencontramos a alegria.
Zorba abriu a boca:
— Seria gozado, patrão, ver surgir
agora a Bubulina! Só faltava ela. E quer que eu lhe diga, patrão,
cá entre nós, estou roxo por ela, palavra!
— Agora você nem pergunta quem lhe
manda esse osso?
— Por que vai se chatear com isso,
patrão? É uma pulga num palheiro. Agarre o osso e não se importe
com a mão que joga. Será que ele está gostoso? Tem ainda um pouco
de carne? Está é a questão. O resto...
— A comida fez o seu milagre! —
disse, batendo no ombro de Zorba. — o corpo faminto se acalmou?
Então a alma que perguntava acalmou-se também. Pegue o santuri!
Mas quando Zorba ia se levantando,
ouviram-se na praia passinhos apressados e rudes. As narinas peludas
de Zorba palpitaram.
— Quando se fala no lobo, vê-se sua
cauda! — disse em voz baixa, batendo nas coxas. — lá vem ela! A
cadela farejou no ar o cheiro de Zorba e vem por aí.
— Eu me vou — disse, levantando-me. —
isso me aborrece. Vou dar uma volta. Arrume-se.
— Boa noite, patrão!
— E não se esqueça, Zorba! Você lhe
prometeu casamento, não me faça mentir.
Zorba suspirou.
— Casar outra vez, patrão? Que chato!
O perfume de sabonete se aproximava.
— Coragem, Zorba!
Saí precipitadamente. Já ouvia a velha
sereia, lá fora, ofegante.
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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