quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Quem é que nos atira os ossos?

No dia seguinte, antes do amanhecer, ressoavam nas galerias os golpes das picaretas e os gritos de Zorba. Os operários trabalhavam com frenesi. Só Zorba poderia conduzi-los assim. Com ele, o trabalho se tornava vinho, canto, amor e todos se embriagavam. A terra ganhava vida em suas mãos. As pedras, o carvão, a madeira, os trabalhadores adotavam seu ritmo, uma guerra se desencadeava nas galerias, sob a luz branca do acetileno e Zorba ia à frente, lutando corpo-a-corpo. Dava um nome a cada galeria e a cada filão, dava um rosto às forças sem feições e daí em diante, lhes era difícil escapar dele.
Quando sei — dizia ele, — que aquela é a galeria Canavarro (assim batizara a primeira delas), fico tranquilo. Conheço-a pelo nome, ela não vai ter a ousadia de me fazer uma sujeira. Nem a madre superiora, nem a cambeta nem a mijona. Eu conheço todas elas, digo-lhe, cada qual por seu nome.
Tinha entrado aquele dia na galeria, sem que ele percebesse.
Coragem! Coragem! — gritava Zorba para os trabalhadores, como de costume, quando estava em pleno entusiasmo. — para a frente, rapazes, vamos dominar a montanha! Somos homens, hein! Animais ferozes, o bom Deus nos vê e toma susto. Vocês, os cretenses, eu o macedônico, vamos vencer a montanha, não é ela que vai nos vencer! A Turquia nós vencemos, hein, então será que essa montanha de nada vai fazer medo na gente? Para a frente!
Alguém chegou correndo perto de Zorba. À luz do acetileno, distingui a cara estreita de Mimito.
Zorba, disse, gaguejando, — Zorba...
Mas este, voltando-se, viu Mimito e compreendeu. Levantou a grande mão:
Suma-se! — falou, — fuja daqui!
Venho da parte da madame... — começou o idiota.
Suma-se daqui, estou dizendo! Estamos trabalhando! — Mimito correu à toda. Zorba cuspiu, exasperado.
O dia é para o trabalho — disse. — o dia é um homem. A noite é para festejar. A noite é uma mulher. Não se deve misturar tudo!
Nesse momento, eu me aproximei.
Amigos — disse, — é meio-dia, é tempo de parar o trabalho para fazer uma boquinha.
Zorba voltou-se, me viu e falou, carrancudo:
Com sua permissão, patrão, vá embora. Vá almoçar. Perdemos doze dias, precisamos recuperar. Bom apetite!
Saí da galeria e desci para o mar. Abri o livro que trazia. Tinha fome, mas esquecia-me dela. A meditação é também uma mina, pensava eu... vamos! E mergulhava nas grandes galerias do cérebro.
Um livro inquietante sobre as montanhas cobertas de neve do Tibete: os hábitos amarelos, que concentrando sua vontade, obrigam o éter a tomar a forma de seus desejos.
Altos cumes, uma atmosfera povoada de espírito. O inútil zumbido do mundo não chega até lá em cima. O grande asceta pega seus discípulos, rapazes de dezesseis a dezoito anos, e à meia-noite os conduz até um lago gelado na montanha. Eles se despem, quebram o gelo, mergulham as roupas na água gelada, tornam a vesti-las e as deixam secar no corpo. Novamente as mergulham, secam-nas e assim fazem sete vezes. Depois voltam ao mosteiro para o ofício da manhã. Sobem a um cume, a cinco, seis mil metros de altitude. Sentam-se tranquilos, respiram profunda e regularmente, o torso nu, e não sentem frio. Seguram, entre as palmas das mãos, uma caneca de água gelada, olham para ela, concentram-se, projetam sua força sobre a água gelada, a água ferve. Depois, preparam o chá.
O grande asceta reúne à sua volta os discípulos e lhes diz:

Maldito aquele que não traz em si a fonte da felicidade!
Maldito aquele que quer agradar aos outros!
Maldito aquele que não sente que esta vida e a outra são uma só!

A noite caíra e eu não conseguia mais ler. Fechei o livro e olhei para o mar. Tenho, pensei, tenho que me libertar dos Budas, dos Deuses, das pátrias, das ideias!
De súbito o mar ficara negro. A Lua Nova caía em direção ao poente. Cães uivavam tristemente ao longe, nos jardins, e a ravina toda latia.
Zorba apareceu, lambuzado, enlameado, a camisa em farrapos. Agachou-se perto de mim.
A coisa andou bem hoje — disse satisfeito, — fizemos um bom trabalho.
Ouvia as palavras de Zorba sem lhes entender o sentido. Meu espírito ainda pairava nos longínquos e misteriosos rochedos abruptos.
Em que está pensando, patrão? Você está longe daqui.
Trouxe de volta o meu espírito e virei-me. Olhei para meu companheiro, abanei a cabeça.
Zorba — respondi, — você pensa que é um formidável Simbad o Marinheiro e banca o grão-fino porque correu o mundo. E, coitado, não viu nada, nada, nada! Aliás eu também não. O mundo é muito mais vasto do que se pode crer. Viajamos, percorremos terras e mares, e ainda nem pusemos o nariz fora da soleira da nossa casa.
Zorba franziu os lábios, mas nada disse. Resmungou somente, como um cão fiel, quando lhe batem.
Há montanhas — prossegui, — muito altas, imensas, cobertas de mosteiros. E nesses mosteiros vivem monges de hábitos amarelos. Ficam sentados, pernas cruzadas, um mês, dois meses, seis meses, e apenas pensam em uma única coisa. Uma só, entende? Não duas, uma! Não pensam, como nós, na mulher e na linhita ou nos livros e na linhita: concentram seu espírito sobre uma única e mesma coisa, e realizam milagres. É assim que acontecem os milagres. Você viu, Zorba, que ao expor uma lupa ao sol, você reúne todos os raios num mesmo ponto? Esse ponto logo pega fogo. Por quê? Porque a força do sol não se dispersou, ela se concentrou toda nesse único ponto. Assim, o espírito do homem. A gente faz milagres concentrando o espírito numa única e mesma coisa. Você compreende, Zorba?
Zorba tinha a respiração curta. Por um instante, moveu-se como querendo fugir. Mas conteve-se.
Continue, resmungou com uma voz estrangulada.
Porém, de súbito, endireitou-se.
Cale-se! Cale-se! — gritou. — porque me diz tudo isso, patrão? Porque é que me envenena o coração? Eu estava bem aqui, porque vem me perturbar? Eu tinha fome, e o bom Deus ou o Diabo (que me enforquem, se eu vejo a diferença) me jogou um osso, que eu lambia. E balançava o rabo, gritando: Obrigado! Obrigado! Agora...
Bateu com o pé, virou-me as costas, fez um movimento em direção ao barracão, mas ainda fervia. E parou.
Pff! O belo osso... — bramiu. — uma cantora velha e suja! Uma barcaça velha e suja.
Tomou um punhado de seixos que jogou ao mar.
Mas quem é — exclamou, — quem é que nos atira os ossos?
Esperou um pouco, e não ouvindo nenhuma resposta, enervou-se.
Você não diz nada, patrão? — gritou. — se sabe, vá falando para eu também saber o nome dele; e não se incomode, vou tratá-lo decentemente. Mas assim, ao acaso, para que lado ir? Eu vou é me danar todo.
Estou com fome. Vá tratar do jantar. Comamos primeiro!
A gente não pode passar ao menos uma noite sem comer, patrão? Eu tinha um tio monge que nos dias de semana passava a água e sal. Nos domingos e dias santos juntava um pouco de farelo. Pois bem, viveu cento e vinte anos.
Viveu cento e vinte anos, Zorba, porque era um crente. Tinha achado seu Deus, não sentia nenhuma preocupação. Mas, nós, Zorba, nós não temos um Deus para nos alimentar; então, acenda o fogo, estão aqui umas douradas. Faça uma sopa quente, grossa, com bastante cebola e pimenta, como nós gostamos. Depois veremos.
Que é que veremos? — fez Zorba, irritado. — quando a pança estiver cheia, a gente esquece todas essas coisas.
É isso mesmo que eu quero! É este o valor do alimento, Zorba. Ande logo, façamos uma sopa de peixe, meu velho, senão nossa cabeça vai estourar!
Mas Zorba nem se mexia. Ficou parado, imóvel, olhando para mim.
Ouça, patrão — disse ele, — eu conheço seus projetos. Olhe, ainda há pouco, quando falava comigo, eu tive uma espécie de clarão, eu vi tudo!
E quais são os meus projetos, Zorba? — perguntei intrigado.
Você quer é construir um mosteiro, está na cara! Um mosteiro onde vai pôr, em lugar de monges, alguns arranha papéis da marca de sua senhoria, que passarão o tempo a rabiscar, dia e noite. E depois, como nos santos que a gente vê nas imagens, vão sair de sua boca fitas impressas. Adivinhei, hein!
Baixei a cabeça, tristonho. Antigos sonhos da mocidade, grandes asas que perderam as plumas; ingênuos, generosos, nobres anseios... construir uma comunidade espiritual, encerrar-me nela com uma dezena de companheiros — músicos, pintores, poetas... — trabalhar o dia todo, só nos encontramos à noite, para comer, cantar juntos, ler, propor-nos as grandes questões, demolir as velhas respostas. Até já redigira o regulamento da comunidade. Tinha mesmo encontrado a sede, em São-João-o-Caçador, numa garganta do Himeto...
Adivinhei — disse zorba, todo contente, vendo-me silencioso.
Pois bem, então vou lhe pedir um favor, Santo Higumeno! Nesse mosteiro você vai me pôr de porteiro, para eu fazer contrabando, e deixar passar de vez em quando certas coisas extravagantes: mulheres, bandolins, garrafões de raki, leitõezinhos assados... tudo isso para você não desperdiçar a vida só com tolices!
Riu-se, e lá se foi, decidido, para o barracão. Corri atrás dele.
Limpou os peixes sem dizer palavra. Eu trouxe lenha e acendi o fogo.
Pronta a sopa, pegamos as colheres e nos pusemos a comer na mesma panela.
Nem um nem outro falava. Nada havíamos comido o dia inteiro e engolíamos vorazmente. Bebemos vinho e reencontramos a alegria.
Zorba abriu a boca:
Seria gozado, patrão, ver surgir agora a Bubulina! Só faltava ela. E quer que eu lhe diga, patrão, cá entre nós, estou roxo por ela, palavra!
Agora você nem pergunta quem lhe manda esse osso?
Por que vai se chatear com isso, patrão? É uma pulga num palheiro. Agarre o osso e não se importe com a mão que joga. Será que ele está gostoso? Tem ainda um pouco de carne? Está é a questão. O resto...
A comida fez o seu milagre! — disse, batendo no ombro de Zorba. — o corpo faminto se acalmou? Então a alma que perguntava acalmou-se também. Pegue o santuri!
Mas quando Zorba ia se levantando, ouviram-se na praia passinhos apressados e rudes. As narinas peludas de Zorba palpitaram.
Quando se fala no lobo, vê-se sua cauda! — disse em voz baixa, batendo nas coxas. — lá vem ela! A cadela farejou no ar o cheiro de Zorba e vem por aí.
Eu me vou — disse, levantando-me. — isso me aborrece. Vou dar uma volta. Arrume-se.
Boa noite, patrão!
E não se esqueça, Zorba! Você lhe prometeu casamento, não me faça mentir.
Zorba suspirou.
Casar outra vez, patrão? Que chato!
O perfume de sabonete se aproximava.
Coragem, Zorba!
Saí precipitadamente. Já ouvia a velha sereia, lá fora, ofegante.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

Nenhum comentário:

Postar um comentário