terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Ponto de vista

Imagine o conto “Angústia” de Tchékhov narrado na primeira pessoa. Um velho nos contando que seu filho acabou de morrer. Nós nos sentiríamos constrangidos, desconfortáveis, até mesmo enfadados, e reagiríamos exatamente como os passageiros do cocheiro reagem na história. Mas a voz imparcial de Tchékhov imbui o velho de dignidade. Nós absorvemos a compaixão do autor por ele e ficamos profundamente comovidos, se não com a morte do filho do velho, certamente com o velho falando com sua égua.
Acho que é porque somos todos muito inseguros.
Quer dizer, se eu só apresentasse a você essa mulher sobre a qual eu estou escrevendo agora…
Sou uma mulher solteira de quase sessenta anos. Trabalho no consultório de um médico. Volto para casa de ônibus. Todo sábado, lavo minhas roupas na lavanderia, depois faço compras no supermercado Lucky, compro o San Francisco Chronicle de domingo e volto para casa.” Você diria: “Ah, tenha a santa paciência”.
Mas o meu conto abre com “Todo sábado, depois de lavar suas roupas na lavanderia e fazer compras no mercado, ela comprava o Chronicle de domingo”. Você vai dar atenção a todos os detalhezinhos enfadonhos, obsessivos e compulsivos da vida dessa mulher, Henrietta, só porque ele está escrito na terceira pessoa. Vai pensar, bom, se o narrador acha que há alguma coisa nessa criatura melancólica sobre a qual vale a pena escrever, então deve haver mesmo. E vai continuar a ler para ver o que acontece.
Só que não acontece nada. Na verdade, a história ainda nem foi escrita. O que eu espero conseguir fazer é, por meio da utilização de detalhes intricados, tornar essa mulher tão verossímil que você não tenha como deixar de se compadecer dela.
A maioria dos escritores usa acessórios e cenários retirados de sua própria vida. Por exemplo, a minha Henrietta come toda noite seu jantarzinho magro sobre um jogo americano azul, usando belíssimos talheres italianos de inox. Um detalhe estranho, que pode parecer incoerente com essa mulher que corta cupons de desconto de toalhas de papel Brawny, mas que desperta a curiosidade do leitor. Pelo menos eu espero que desperte.
Não creio que eu vá dar nenhuma explicação para isso no conto. Eu mesma como com talheres elegantes desse tipo. Ano passado eu encomendei seis jogos de talheres do catálogo de Natal do Museum of Modern Art. Bem caros, cem dólares, mas valiam. Eu tenho seis pratos e seis cadeiras. Talvez eu possa dar um jantar para seis pessoas, pensei na época. Só que, na verdade, eram cem dólares por seis peças. Dois garfos, duas facas, duas colheres. Um jogo de talheres. Fiquei com vergonha de devolver o jogo; pensei: quem sabe o ano que vem eu compro outro?
Henrietta come com seus talheres bonitos e toma vinho californiano numa taça. Come salada numa tigela de madeira e comida congelada de baixa caloria num prato raso. Enquanto come, lê a seção “Mundo” do Chronicle, onde todos os artigos parecem ter sido escritos pela mesma primeira pessoa.
Henrietta mal pode esperar pela segunda-feira. Está apaixonada pelo dr. B., o nefrologista. Muitas secretárias/enfermeiras se apaixonam pelos “seus” médicos. É uma espécie de síndrome de Della Street.
O dr. B. é baseado no nefrologista para o qual trabalhei. Eu certamente não estava apaixonada por ele. Às vezes brincava dizendo que nós tínhamos uma relação de amor e ódio. Eu o achava tão detestável que isso devia me fazer lembrar o ponto a que relacionamentos amorosos às vezes chegam.
Já Shirley, a minha antecessora, era apaixonada por ele. Ela me mostrou todos os presentes de aniversário que tinha lhe dado. A jardineira com a trepadeira e a pequena bicicleta de latão. O espelho decorado com um coala em vidro fosco. O conjunto de canetas. Ela disse que ele tinha adorado todos os presentes, menos a capa de banco de bicicleta de pele de carneiro felpuda. Ela teve que trocá-la por luvas de ciclista.
Na minha história, o dr. B. ri de Henrietta por causa da capa felpuda, é muito debochado e cruel, como sem dúvida nenhuma era capaz de ser. Na verdade, esse vai ser o clímax do conto, quando Henrietta se dá conta do desprezo que ele sente por ela, de como é patético o amor que ela sente.
No dia em que comecei a trabalhar lá, encomendei aventais de papel. Shirley usava aventais de tecido: “Xadrez azul para os meninos, rosas cor-de-rosa para as meninas”. (Muitos dos nossos pacientes eram tão velhos que usavam andadores.) Todo fim de semana, ela levava os aventais sujos para casa no ônibus e não só os lavava como engomava e passava a ferro. A minha Henrietta vai fazer isso também… passar a ferro aos domingos, depois de fazer faxina no apartamento.
Claro que boa parte da minha história é sobre os hábitos de Henrietta. Hábitos. Não é nem que eles em si sejam tão ruins, é que já duraram tempo demais. Todo sábado, ano após ano.
Todo domingo, Henrietta lê a seção rosa do jornal. O horóscopo primeiro, sempre na página 16, o hábito do jornal. Geralmente as estrelas têm coisas picantes a dizer para Henrietta. “Lua cheia, escorpiana sexy, e você sabe o que isso quer dizer! Prepare-se para arder!”
Aos domingos, depois de fazer faxina e passar a ferro, Henrietta prepara alguma coisa especial para o jantar. Um frango assado, com recheio instantâneo e molho de frutas vermelhas. Purê de ervilha. Uma barra de chocolate Forever Yours de sobremesa.
Depois de lavar a louça, ela assiste ao programa de notícias 60 Minutes. Não é que ela se interesse particularmente pelo programa. Ela gosta mesmo é da equipe de apresentadores. Diana Sawyer, tão bonita e bem-educada, e os homens são todos sensatos, confiáveis e solidários. Ela gosta quando eles se mostram preocupados e balançam a cabeça ou quando é uma matéria engraçada e eles sorriem e balançam a cabeça. Gosta principalmente das imagens do enorme relógio. Do ponteiro dos minutos e do tique-tique-taque do tempo.
Depois ela assiste à série Assassinato por escrito, da qual não gosta, mas não tem mais nada passando.
Estou tendo dificuldade de escrever sobre o domingo. De captar a longa sensação de vazio dos domingos. Nada de correio, roncos distantes de cortadores de grama, o desamparo.
E de descrever a ansiedade de Henrietta pela segunda de manhã. O tique-tique dos pedais da bicicleta dele e o clique quando ele tranca a porta da sua sala para trocar de roupa e vestir o jaleco azul.
O fim de semana foi bom?”, ela pergunta. Ele nunca responde. Nunca diz oi nem tchau.
À noite ela segura a porta aberta para ele, quando ele está saindo a pé puxando a bicicleta.
Até amanhã! Vai pela sombra!”, ela diz, sorrindo.
Que raios isso quer dizer, ir pela sombra? Pelo amor de Deus, para de dizer isso.”
Mas, por mais que ele seja grosseiro com ela, Henrietta acredita que exista um vínculo entre eles. Ele tem um pé torto e manca muito, enquanto ela tem escoliose, uma curvatura na coluna. Uma corcunda, na verdade. Ela é tímida e insegura, mas entende o que o faz ser tão cáustico. Uma vez ele disse que ela tinha as duas qualificações necessárias para ser enfermeira… era “burra e servil”.
Depois de Assassinato por escrito, Henrietta toma um banho, paparicando a si mesma com sais de banho de perfume floral.
Assiste ao noticiário enquanto passa creme no rosto e nas mãos. Já botou água no fogo para fazer chá. Gosta de ver o boletim meteorológico. Os pequenos sóis sobre Nebraska e Dakota do Norte. Nuvens de chuva sobre Flórida e Louisiana.
Recostada na cama, ela beberica seu chazinho de ervas Sleepytime. Sente falta do antigo cobertor elétrico, que tinha um seletor de temperatura com as opções baixa, média ou alta. O cobertor novo era anunciado como o Cobertor Elétrico Inteligente. Ele sabe que não está frio e, então, não fica quente. Ela queria que ele ficasse quente e confortável. Ele é inteligente demais para o gosto dela! Ela ri alto. O som assusta um pouco no quarto pequeno.
Ela desliga a televisão e toma um gole de chá, ouvindo o barulho dos carros que entram e saem do posto de gasolina Arco do outro lado da rua. De vez em quando um carro para em frente à cabine telefônica com uma freada brusca, cantando pneu. Uma porta bate com força e logo o carro arranca e vai embora.
Ela ouve um carro se aproximando devagar da cabine telefônica. Um som alto de jazz vem de dentro do carro. Henrietta apaga a luz e levanta a persiana que fica ao lado da sua cama, só um pouquinho. A janela está embaçada. O rádio do carro toca Lester Young. O homem que está falando ao telefone segura o fone com o queixo. Seca a testa com um lenço. Eu me apoio no peitoril frio da janela e fico observando o homem. Ouço o saxofone melodioso tocar “Polka Dots and Moonbeams”. No vidro embaçado, escrevo alguma coisa. O quê? O meu nome? O nome de um homem? Henrietta? Amor? Seja o que for, eu apago rápido, antes que alguém veja.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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