sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Oralidade e sonoridade da linguagem rosiana

Oralidade

Ao autor da presente introdução falta convivência com o povo do interior brasileiro e, especialmente, da região que serve de cenário à maioria dessas estórias para que possa tentar uma distinção da contribuição popular lato sensu e da nitidamente regional; por isso adota o termo acima, que lhe parece determinar com bastante exatidão uma das principais coordenadas da linguagem rosiana.
Suas páginas porejam modismos e fórmulas que estamos habituados a ouvir na boca de pessoas do povo e que, em seu frusto vigor, dão à fala popular sabor e energia deliciosos: “Nosso pai nada não dizia.”; “Do que eu mesmo me alembro”; “Nossa casa, no tempo, era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua”; “perto e longe da sua família dele”; “avisado que nem Noé”; “A gente, firmes, sem mover o passo”.
Os exemplos poderiam ser multiplicados. É precisamente o formigar de tais rodeios que dá a leitores menos avisados a ideia de que o autor se propõe a mera reprodução da linguagem popular. Com essa ideia metida na cabeça, logo vão implicar com o primeiro neologismo e apontar em triunfo aquele “destom” como exemplo de insucesso.
É desconhecer a própria essência dessa arte tão provocadoramente original. A predileção do autor por fórmulas populares de uso geral não o impede de se deleitar com insólitas locuções individuais nem de inventar outras que, golpeando em cheio o leitor, lhe possam inculcar uma percepção nova.
Tem toda a aparência popular e regional o uso do artigo definido à frente dos adjetivos indefinidos, adotado pelo autor — como as demais práticas de estilo oral — mesmo em trechos em que ele fala por conta própria: “As muitas pessoas”; “o parente nenhum”; “a alguma alegria”; “o certo solerte contentamento”; “a alguma recomendação”; “pelas certas pessoas”; “a tanta importância”; “as todas manhãs”; “a muita criatura”. Essa praxe paradoxal, oriunda talvez do desejo de aumentar a massa sonora e o peso da locução, nota-se também no caso de expressões onde normalmente a indefinição se patenteia pela ausência de determinantes: “iam dar na gente a tremenda vaia!”; “O gebo, pernas tresentortadas e moles, quase de não andar direito, mas o capaz de deslizar ligeiro”.
O leitor citadino, especialmente carioca, encontrará o mesmo sabor regional no uso do subjuntivo com valor de condicional — “Nem olhasse mais a paisagem?”; “nem fosse possível”; “constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação” — ou de indicativo, com matiz dubitativo: “só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele [brejão]”; “Por certo esse Herculinão Socó desmerecesse a mínima simpatia humana”; “e tão apartado em si se conduzia ele (...) que jamais quase a referisse pelo nome”.
Observando a fala de pessoas de poucas letras, ou de todo não alfabetizadas, podemos notar quão frequentemente elas deixam a frase inacabada, como que suspensa, completando o sentido com o silêncio da pausa. Em Guimarães Rosa, o vezo, de tão frequente, ganha foros de categoria sintática: “queriam-lhe como quem”; “No que num engano.”; “Sabiam o até-que-ponto”; “Aquilo era quando as onças.”; “O que foi quando subitamente”; “Brejeirinha de alegria ante todas, feliz como se, se, se; menina só ave.”; “Esse moço, pois, para ele sendo igual matéria o futuro que o passado?”. Dentro do contexto, todas essas frases — e muitas semelhantes — palpitam com o frescor da emoção. Um jovem crítico, Roberto Schwarz, em sua percuciente análise da linguagem de Guimarães Rosa, chega a ver em tais sentenças inacabadas a chave de toda a expressão do autor: “Podemos afirmar mesmo, dado encontrarmos frases irredutíveis ao esquema comum, serem estas as que devem orientar o nosso modo de ler, por realizarem mais radicalmente a dicção do livro. Através de umas tantas orações sem fio gramatical definível, fica instaurado um universo linguístico em que mesmo as proposições de lógica perfeita passam a pedir uma leitura diversa (...).” Especialmente o verbo de cópula ganha força em ser omitido quando substituído por interrupção do fluxo sonoro: “Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos?”; “O estilo espavorido.”; “Atordoados, pois.”; “A gente, nada. Ali, formados, soldados mesmos, mudando de cor, de amargor.”; “O pasmatório.” E, em nível literário: “Tia Liduína, que já fina música e imagem.”
Caracteriza ainda o modo de falar das pessoas simples certo rebuscamento, a adoção de formas da linguagem escrita consideradas elegantes e não inteiramente assimiladas. É o que explica o aparecimento do gerúndio em orações relativas que depois o sujeito falante não sabe como acabar: “Seo Fifino (...) noticiou: que tendo chegado certo sujeito, um positivo, com carta.”; “Seus sabedores informavam: que a marca sendo de grande fazendeiro.” O particípio passado pode também assumir esse efeito desorganizador do gerúndio: “Vim ver quem. Aquele homem que chegado.”; “acomodar os hóspedes, que esperados”. Por expressivo, o modismo é adotado pelo próprio narrador: “Dava para se sentir o peso da [arma] de fogo, no cinturão, que usado baixo”.
Efeitos enérgicos são tirados de outras irregularidades sintáticas, igualmente característicos do estilo oral: da regência imprópria (“E prometia-lhe o Tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear”); da concordância pelo sentido ( “e a gente fica quase presos, alojados na cozinha”) e deste anacoluto expressivo que abre a undécima estória: “O espelho, são muitos”.

Sonoridade

Essas citações devem ter feito entrever uma das qualidades paradoxais do estilo de Guimarães Rosa: suas páginas exigem leitura atenta e meditada, e, ao mesmo tempo, podem ser lidas em voz alta ou, pelo menos, com a colaboração ininterrupta da imaginação auditiva. Só assim poderão ser apreciados in totum e valorizados seus esforços originalíssimos de “transposição total para o plano auditivo de uma representação puramente visual” (Oswaldino Marques).
Há frases do nosso autor, precisamente das mais carregadas de significação, que exigem notação musical: “Infância é coisa, coisa?”; “Porque eu desconheci meus Pais — eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu; eu?”
A aliteração serve-lhe de subsídio pitoresco ou acompanhamento musical, marcadora de ritmo ou de monotonia, sinal de gravidade ou de graça: “Miúdo, moído.”; “aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano”; “leigos, ledos, lépidos”; “Desconto (...) o em que me tive na mocidade: desmandos, desordens e despraças.”; “Podia também ser de outra essência — a mandada, manchada, malfadada.”; “conforme confere e confirmava”. Em suas acrobacias verbais ressurgem as figuras da velha retórica: a homofonia: “ferramos fera briga”; o homoteleuto: “não conseguindo juntar o prestígio ao fastígio”; o poliptoto: “Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve.”; a figura etymologica: “as figurantes figuras, mas personagens personificantes”.
A rima sentenciosa é um adjutório caracterizador (em “Luas-de-mel”): “Eu ponho a mesa e pago a despesa.”; “cachorro, gato e espalhafato”; “Só em paz, com Deus, sossegado. Sensato, sincero e honrado.”; “Herói é no que dói!”.
Usa com o mesmo intento, ou como simples intermezzo lúdico, palavras pomposas e grandiloquentes, que ganham graça pelo emprego pernóstico: “Só vivo no supracitado.”; “os Noivos (...) satisfatórios”; “aquele senhor (...) provisoriamente impoluto”. Há muitos outros exemplos, sobretudo ao longo de “Partida do audaz navegante”, onde o autor confirma implicitamente a ampla contribuição da linguagem infantil para seus processos de inovação mais ousados.
Com patente alegria sensual ele deixa arrebentar-se pelo batucar das onomatopéias: “Aí, o povaréu fez vêvêvê”; “o a-tchim-pum-pum dos foguetes”; “trupitar” de cavalos; “catastrapes!”; “chiquetichique”, todos exemplos encontráveis em “— Tarantão, meu patrão”, onde a reprodução imitativa começa no próprio título.
O prolongamento das palavras por meio de sufixos altissonantes — furibundância, circunspectância, esplendição, blasfemífero, ardilidade — ou pela ousada repetição de sílabas — sussussurrar, mumumudos, nesse interintintim — é praticado com intuito de intensificação semântica.
Assinale-se mais uma fonte de sonoridades sugestivas e classificadoras: os expressivos nomes próprios com que Guimarães Rosa gosta de brindar-nos, enfileirando-os às vezes em saborosas enumerações rabelaisianas. Nenhum outro autor nosso armazena tantos apelidos, alcunhas, epítetos, corruptelas de nomes e sobrenomes pitorescos e pedantes. Só em Primeiras estórias encontramos os quatro irmãos Dagobé: Damastor, Doricão, Dismundo e Derval, além de Tãozão, Mão-na-Lata e Zé Centeralfe. E ainda, a sinistra tríade formada pela Mula-Marmela, Mumbungo e Retrupé; e Nhinhinha e a Nhatiaga; e Vagalume, de seu verdadeiro nome (!) João Dosmeuspés Felizardo: e Curucutu, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé, o Gorro-Pintado... todo um catálogo bem brasileiro de extravagância denominativa.

Paulo Rónai, in Os vastos espaços (Prefácio de Primeiras estórias, de Guimarães Rosa)

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