terça-feira, 11 de janeiro de 2022

O ermitão de uma fragata em meio à turba

A alusão ao poeta Lemsford em capítulo anterior me leva a tratar de nossos amigos em comum, Nord e Williams, os quais, com o próprio Lemsford, Jack Chase e meus camaradas de gávea, compreendem praticamente as únicas pessoas a bordo da fragata com quem eu tinha relações sem qualquer reserva. Pois, pouco depois de embarcar, percebi que não poderia ser íntimo de todos. Uma proximidade indiscriminada com toda a marujada leva a irritações inúmeras e atritos, que não raro terminam com chibatadas no passadiço. Embora estivesse havia mais de um ano na fragata, existia um grupo grande de homens que me era absolutamente estranho, cujos nomes ignorava e que dificilmente seria capaz de reconhecer se os encontrasse por acaso nas ruas.
Nos quartinhos em alto-mar, durante a primeira parte da noite, o convés principal mostra-se geralmente apinhado com suas multidões de pedestres, passeando de um lado para o outro ladeados pelos canhões como fossem pessoas procurando ar fresco na Broadway. Nessas ocasiões, é curioso ver os homens cumprimentando-se com meneios ao reconhecimento uns dos outros (é possível que uma semana tenha se passado desde seu último contato); trocando palavras amistosas com amigos; marcando apressadamente algum encontro para o dia seguinte sobre os mastros, ou passando por grupos inteiros sem se dignar à menor saudação. A bem da verdade, comparativamente falando, não era eu o único a ter senão poucos conhecidos a bordo, embora certamente levasse minha meticulosidade a níveis excepcionais.
Meu amigo Nord era, arrisco dizer, figura do mais absoluto interesse; e, se o mistério inclui aventura, era certamente muito aventureiro. Antes de conseguir ser apresentado a ele por meio de Lemsford, muitas vezes tive a oportunidade de observar sua figura alta, magra, aprumada, pavoneando-se como um Dom Quixote em meio aos pigmeus da guarda de popa, à qual pertencia. De início, julguei-o excessivamente reservado e taciturno; o semblante saturnino mostrava-se invariavelmente carrancudo; e seus modos denotavam antipatia quase repulsiva. Em suma, parecia ser seu desejo que entendêssemos que sua lista de amigos de fragata estava já fechada, repleta e completa; sem lugar para quem quer que fosse. Porém, observando que Lemsford era o único marinheiro com quem Nord se relacionava, tive a nobreza de conter meu ressentimento em relação a sua frieza e não permiti que ele perdesse para sempre a oportunidade de entrar em contato com alguém de minha capital importância. Ademais, notei em seu olhar que se tratava de um conhecedor de bons livros; apostaria minha vida que ele compreendia o verdadeiro sentido da prosa de Montaigne. Percebi que Nord era um profundo pensador; mais do que suspeitava que estivera preso ao moinho das adversidades. Por tudo isso, meu coração lhe guardava profunda simpatia; estava determinado a conhecê-lo.
Por fim, obtive sucesso; aconteceu durante um quarto profundamente silencioso, à meia-noite, quando o vi caminhando a sós no poço, enquanto a maioria dos homens cochilava sobre os reparos das caronadas.
Naquela noite, esquadrinhamos toda a pradaria de nossas leituras; mergulhamos no mais íntimo dos autores para trazer-lhes à tona os corações; e naquela noite Jaqueta Branca aprendeu mais do que jamais aprendera numa única noite desde então.
O homem era um portento. Ele me espantava — tanto quanto Coleridge o fizera com os soldados entre os quais se alistara. O que teria levado um homem como aquele a embarcar numa fragata? As razões me eram insondáveis. Da mesma forma, era um mistério como ele conseguia manter a dignidade, tal como mantinha, em meio àquela turba. Ele não era marinheiro; tão ignorante de um navio quanto os homens o são das nascentes do rio Níger. Os oficiais, porém, respeitavam-no; e a marujada o temia. Isso se notava pelo fato de invariavelmente declinar de quaisquer funções especiais que lhe fossem atribuídas; e ter a sorte de jamais se expor ou sujeitar-se à reprimenda. Sem dúvida, sua postura diante do problema era compartilhada por outros marinheiros; e desde o início decidiu se portar de forma tal que jamais corresse o risco de ser açoitado. E deve ter sido isso — além de qualquer dor incomunicável que nele porventura houvesse — que fez de Nord um recluso vira-mundos, mesmo cercado pelo tumulto de um navio de guerra. Provavelmente sua maca não balançava havia muito no convés quando constatou que, para garantir-se livre daquilo que o amedrontava, precisava estar disposto a tornar-se, de um modo geral, um misantropo, expatriando-se socialmente de muitas coisas que lhe teriam tornado a vida mais suportável. Não obstante, muitos devem ter sido os acontecimentos que o amedrontaram com o pensamento de que, por mais que se isolasse e enterrasse, a improbabilidade de ser submetido àquilo que mais temia jamais atingiria a infalibilidade do impossível.
Em meu contato com Nord, ele jamais fez alusão a sua vida pregressa — assunto sobre o qual a maioria dos desgarrados de estirpe numa fragata é bastante prolixa, relatando aventuras na mesa de jogo, a indiferença com que perderam fortunas inteiras numa única rodada, suas esmolas generosas e gratificações a carregadores e parentes pobres, e, acima de tudo, indiscrições de juventude e as donzelas de coração partido que deixaram para trás. Nord não contava quaisquer histórias do gênero. No que toca a seu passado, este era cerrado e trancado como os cofres de dinheiro em espécie do Banco da Inglaterra. Pois, a contar com tudo que dele escapava, nenhum de nós poderia cravar que tivesse qualquer existência anterior àquele momento. De qualquer forma, era uma figura do mais absoluto interesse.
Meu outro amigo, Williams, era um típico ianque do Maine, mascate e, de ofício, professor. Desfiava todo tipo de história sobre pequenos divertimentos interioranos e arrolava uma infindável lista de namoradas. Era honesto, esperto, engenhoso, cheio de alegria e bom humor — um sorridente filósofo. Era uma inestimável ajuda contra o tédio; assim, visando a estender as vantagens de sua companhia ao saturnino Nord, apresentei-os; na mesma noite, porém, este ignorou-o por completo, quando partimos de entre canhões para uma caminhada no convés principal.

Herman Melville, in Jaqueta Branca

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