A gente nasce com alma de caçador? Acho
que sim. Caça é desafio. Pegar o que não pode ser pego, que corre
mais, que voa nas alturas dos céus, que se esconde no fundo dos
rios... Se não pode ser pego, como é que é pego? Aí entra a
inteligência, a artimanha, o engano. O caçador é um enganador. O
passarinho, é só chegar perto que ele bate as asas e voa. Bachelard
lamentou-se dizendo que nós, seres humanos, perdemos a confiança
dos pássaros. O Chico até cantou para advertir a passarada: “Ei,
quero-quero, oi, tico-tico, anu, pardal, chapim, xô, cotovia, some,
rolinha, anda, andorinha, te esconde, bem-te-vi, voa, bicudo, voa,
sanhaço, vai, juriti, bico calado, muito cuidado que o homem vem aí,
o homem vem ai, o homem vem aí...” .
Mas eu era menino. Não sabia dessas
coisas. Queria um passarinho pra mim, tinha de ser na gaiola, outro
jeito não havia, queria cuidar dele e dizer “o meu passarinho...”
.
Era um desafio: pegar o passarinho que
não se deixa ser pego. Primeiro o homem aprendeu a jogar pedras. Uma
pedra que se lança é uma mão que voa. Depois imaginou uma
armadilha: uma arapuca com bambus e embira. Quem inventou a arapuca
era muito inteligente. Feita a arapuca, que é uma caixa para prender
o passarinho, há dois problemas. Primeiro: como convencer o
passarinho a entrar debaixo da arapuca? Aprendi do bruxo D. Juan que
o caçador não é aquele que sabe fazer a armadilha. É aquele que
sabe o hábito da caça. Um dos hábitos de um passarinho —
rolinhas, canários-da-terra — é comer quirera. É o seu ponto
fraco. A arapuca sozinha sem quirera jamais pegaria um passarinho.
Ponho quirera dentro da arapuca e um pouco em volta da arapuca, para
o passarinho ver. Mas não basta atrair o passarinho e convencê-lo a
entrar debaixo da arapuca. Ela precisa cair para prendê-lo. Para
isso há uma artimanha: a arapuca fica de boca aberta graças a uma
forquilha e um trançado de pauzinhos no chão. Um desses pauzinhos é
fatal. Se o passarinho o tomar como poleiro e pisar nele, a arapuca
cai e o passarinho fica preso. Pois o bobinho sobe no pauzinho pra
comer a quirera e a arapuca cai. Era uma vez um passarinho que voava.
Isso acontece tanto na vida da gente... O desejo é o nosso ponto
fraco, calcanhar de Aquiles. Agora o menino pode pegar na sua mão o
passarinho que não podia ser pego. É um triunfo da inteligência.
Tudo na caça é isso: artifícios técnicos para pegar o que não
quer ser pego. Redes, anzóis, covos, visgos, flechas, fundas,
zarabatanas, estilingues, espingardas. Pois eu estava com o meu
primeiro estilingue. Estilingue é um aperfeiçoamento do ato de
jogar pedras: mais pontaria, mais força, maior alcance. A construção
de um estilingue passa por várias fases. A primeira delas é a busca
de um gancho, que deve ser um Y perfeito, simétrico, não muito
aberto, não muito fechado. Essa busca demora dias, de jabuticabeira
em jabuticabeira. A seguir, é preciso tirar a casca do gancho e
alisar as pontas. Segunda fase: encontrar duas borrachas boas — o
que se conseguia indo às borracharias (hoje se compram as borrachas
nas farmácias). Terceira fase: visitar um sapateiro pedindo-lhe para
cortar um courinho para estilingue. Nenhum sapateiro achava ruim.
Eles também já haviam sido meninos. Fase final: amarrar as duas
borrachas nas pontas do gancho e no courinho. Está pronto o
estilingue. Tudo isso se fazia por conta própria, sem intervenção
de pai ou de mãe, sem dinheiro, só com as mãos, os olhos, um
canivete Corneta e pensamento. Parte da brincadeira era construir o
brinquedo. Com o brinquedo na mão vem a segunda fase: a caça. Fui
para o quintal da minha casa, cheio de árvores. Pus-me à procura.
Vi uma rolinha pousada num pé de laranja-lima. Longe, uns quinze
metros de distância. Não havia possibilidade de acertar, porque a
pedra, para ir até a rolinha, teria de ser lançada numa curva, uma
parábola. Apontei o estilingue. Disparei. A pedra fez a curva. E o
impossível aconteceu: acertou. A rolinha caiu. Fiquei horrorizado.
Eu não queria matá-la. Eu estava só brincando de caçador. Corri
até ela. Ela se debatia no chão, agonizante. Tive a impressão de
que ela me olhava. Ela morreu. Eu a enterrei. Essa lembrança me faz
pensar numa experiência semelhante que Albert Schweitzer teve com os
estilingues. Parece que, no mundo inteiro, os meninos nascem
caçadores. Ele relata um incidente acontecido quando tinha sete ou
oito anos de idade. Um amigo mais velho ensinou-o a fazer
estilingues. Por pura brincadeira. Mas chegou o momento terrível, o
momento de caçar. O amigo convidou-o a ir para o bosque matar alguns
pássaros. Pequeno, sem jeito de dizer não, ele foi. Chegaram a uma
árvore ainda sem folhas onde pássaros estavam cantando. Então o
amigo parou, pôs uma pedra no estilingue e se preparou para o tiro.
Aterrorizado, ele não tinha coragem de fazer nada. Mas nesse momento
os sinos da igreja começaram a tocar, ele se encheu de coragem e
espantou os pássaros. Eu nunca mais usei o estilingue para matar
passarinhos. Mas é divertido usá-los para treinar pontaria em latas
vazias.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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