Fazer cócegas num chimpanzé jovem é
muito parecido com fazer cócegas numa criança. O símio tem os
mesmos pontos sensíveis: sob as axilas, na lateral do corpo, na
barriga. Ele abre bem a boca, fica com os lábios relaxados, arfa
audivelmente com o mesmo ritmo familiar de inalação e exalação do
riso humano. A impressionante semelhança faz com que seja difícil
você não rir também.
O símio mostra também a mesma
ambivalência de uma criança. Ele empurra seus dedos para longe,
protegendo os pontos vulneráveis enquanto tenta escapar da cócega,
mas assim que você para ele volta e quer mais, pondo a barriga bem
na sua frente. Dessa vez, basta apontar o dedo, sem nem mesmo
tocá-lo, e ele terá outro ataque de riso.
Riso? Espere aí! Um cientista de verdade
deve evitar todo e qualquer antropomorfismo, e é por isso que
colegas intransigentes nos pedem para mudar nossa terminologia. Por
que não chamar a reação do primata de algo neutro, como, digamos,
vocalização ofegante? Eu ouvi colegas cautelosos falarem sobre
comportamento “semelhante a risos”. Dessa forma, evitamos toda e
qualquer confusão entre o ser humano e o animal.
O termo “antropomorfismo”, que
significa “forma humana”, vem do filósofo grego Xenófanes, que
protestou no século v a.C. contra a poesia de Homero porque ela
descrevia os deuses como se parecessem humanos. Xenófanes
ridicularizou essa suposição, dizendo que, se os cavalos tivessem
mãos, eles “desenhariam seus deuses como cavalos”. Hoje o termo
ganhou um significado mais amplo e costuma ser usado para censurar a
atribuição de características e experiências semelhantes às
humanas a outras espécies. Assim, os animais não fazem “sexo”,
mas se empenham em comportamentos de reprodução. Eles não têm
“amigos”, apenas parceiros de afiliação preferidos. Tendo em
vista que nossa espécie é ainda mais parcial em relação às
distinções intelectuais, aplicamos essas castrações linguísticas
com mais vigor no domínio cognitivo. Ao reduzir tudo o que os
animais fazem ao instinto ou ao aprendizado simples, mantemos a
cognição humana em seu pedestal. Se você pensar de outra forma,
está sujeito a ser ridicularizado.
Para entender essa resistência,
precisamos voltar a outro grego antigo: Aristóteles. O grande
filósofo colocou todas as criaturas vivas em uma scala naturae
vertical, que vai dos seres humanos (mais próximos dos deuses) a
outros mamíferos, e pássaros, peixes, insetos e moluscos ficam
perto do fim da fila. Fazer comparações ao longo dessa imensa
escada tem sido um passatempo científico popular, mas parece que
tudo o que aprendemos com elas é como medir outras espécies por
nossos próprios padrões.
Mas qual é a probabilidade de que a
imensa riqueza da natureza se encaixe numa única dimensão? Não é
de esperar que cada animal tenha sua própria vida mental,
inteligência e emoções próprias, adaptadas aos seus próprios
sentidos e à sua história natural? Por que a vida mental de um
peixe e a de uma ave seriam a mesma? Ou veja-se o caso de predadores
e presas: é óbvio que os predadores têm um repertório emocional
diferente do das espécies que precisam constantemente olhar por cima
do ombro. Os predadores exalam uma autoconfiança fria (exceto quando
encontram alguém a sua altura), enquanto os animais que servem de
presas conhecem cinquenta tons de medo. Vivem aterrorizados e
assustam-se a cada movimento, som ou cheiro inesperados. É por isso
que os cavalos disparam, e os cachorros não. Nós evoluímos de
coletores de frutas que viviam em árvores — daí olhos frontais,
visão de cores e mãos que agarram —, mas, pelo nosso tamanho e
nossas habilidades especiais, temos a postura de um predador. É
provavelmente por isso que nos damos tão bem com nossos animais de
estimação preferidos, que são dois carnívoros peludos.
Na faculdade, eu tinha uma gatinha preta
e branca chamada Plexie. Cerca de uma vez por mês, eu punha Plexie
numa sacola, com a cabeça para fora, e a levava de bicicleta para
brincar com seu melhor amigo, um cãozinho de pernas curtas. Os dois
brincavam juntos desde que eram pequenos e continuaram fazendo isso
adultos. Eles subiam e desciam correndo as escadas de uma grande casa
de estudantes, surpreendiam-se mutuamente a cada virada, a óbvia
alegria deles era contagiante. Faziam isso durante horas, até
ficarem exaustos. Cães e gatos muitas vezes se dão bem porque ambos
estão ansiosos para perseguir e pegar objetos em movimento. Eles
também são mamíferos, o que os ajuda a se relacionar conosco.
Outros mamíferos reconhecem nossas emoções e nós reconhecemos as
deles. É essa conexão empática que atrai os seres humanos para
gatos domésticos (600 milhões estimados em todo o mundo) e cães
(500 milhões), em vez de, digamos, iguanas ou peixes. Com essa
conexão homem-animal, no entanto, vem nossa tendência de projetar
sentimentos e experiências nos animais, muitas vezes de forma
acrítica.
Podemos dizer que o nosso cão está
“orgulhoso” de uma fita que ganhou numa exposição ou que nosso
gato está “envergonhado” por não ter conseguido dar um salto.
Vamos a hotéis de praia para nadar com golfinhos, convencidos de que
os animais devem adorar essa atividade tanto quanto nós. Nos últimos
tempos, as pessoas acreditaram na alegação de que Koko, a gorila
que aprendera a linguagem manual dos sinais na Califórnia, se
preocupava com a mudança climática, ou que os chimpanzés têm
religião. Assim que ouço essas sugestões, meus músculos da face
se contraem numa carranca e peço provas. O antropomorfismo gratuito
é evidentemente inútil. Sim, os golfinhos têm rostos sorridentes,
mas como se trata de uma parte imutável de seu semblante, isso não
nos diz nada sobre como eles se sentem. E um cachorro carregando uma
fita pode simplesmente apreciar toda a atenção e as guloseimas que
aparecem em seu caminho.
No entanto, quando pesquisadores de campo
experientes, que acompanham símios todos os dias na floresta
tropical, me falam da preocupação que os chimpanzés demonstram em
relação a um companheiro ferido, trazendo comida ou diminuindo o
ritmo de caminhada, não sou avesso a especulações sobre empatia. E
quando eles relatam que os orangotangos machos adultos nas copas das
árvores anunciam em que direção eles viajarão na manhã seguinte,
não me importo com a sugestão de que eles planejem com
antecedência. Tendo em vista tudo o que sabemos a partir de
experimentos controlados em cativeiro, essas especulações não são
disparatadas. Mas, mesmo nesses casos, abundam as acusações de
antropomorfismo.
O argumento do antropomorfismo está
enraizado na ideia de excepcionalidade humana. Reflete o desejo de
separar os seres humanos e negar nossa animalidade. Isso continua
sendo habitual nas ciências humanas e em grande parte das ciências
sociais, que prosperam sobre a noção de que a mente humana é de
alguma forma invenção nossa. No entanto, eu mesmo considero a
rejeição da similaridade entre os seres humanos e outros animais um
problema maior que essa simples suposição. Apelidei essa rejeição
de antroponegação. Ela se interpõe no caminho de uma
avaliação franca de quem somos como espécie. Nossos cérebros têm
a mesma estrutura básica que os de outros mamíferos: não temos
partes novas e usamos os mesmos neurotransmissores antigos. Na
verdade, os cérebros são tão semelhantes em todos os casos que,
para tratar as fobias humanas, estudamos o medo na amígdala do rato.
Cães treinados para permanecer imóveis num scanner cerebral mostram
atividade no núcleo caudado quando esperam uma salsicha da mesma
forma que essa região se ilumina em executivos que recebem a
promessa de um bônus. Em vez de tratar os processos mentais como uma
caixa-preta, como gerações anteriores de cientistas fizeram,
estamos agora arrombando a caixa para revelar um fundo compartilhado.
A neurociência moderna torna impossível manter um dualismo nítido
entre seres humanos e animais.
Isso não significa que o planejamento
dos orangotangos seja parecido com o que acontece quando eu anuncio
um exame em sala de aula e os alunos se preparam para ele, mas bem lá
no fundo há continuidade entre os dois processos. Uma continuidade
ainda maior aplica-se aos traços emocionais. Uma vez que a nossa
compreensão das emoções é parcialmente intuitiva, a continuidade
é difícil de explicar com base puramente em dados e teoria. É
importante ter uma exposição íntima aos animais, como a que os
donos de animais de estimação desfrutam todos os dias. Daí minha
simples e não científica recomendação para qualquer estudioso que
duvide da profundidade das emoções dos animais: arranje um
cachorro.
O antropomorfismo não é tão ruim
quanto as pessoas pensam. Com espécies como os grandes símios, na
verdade, ele é lógico. A teoria evolucionista quase o impõe, pois
conhecemos os símios como “antropoides”, que significa
“semelhante a humanos”. Devemos esse termo a Carl Lineu, o
biólogo sueco do século XVIII que baseou sua classificação na
anatomia, mas poderia facilmente ter tido por base o comportamento. A
visão mais simples e mais parcimoniosa é que, se duas espécies
relacionadas agem de maneira semelhante em circunstâncias
semelhantes, elas devem ser motivadas de modo semelhante. Não
hesitamos em fazer essa suposição ao comparar espécies
relacionadas como cavalos e zebras, ou lobos e cães, então por que
variar as regras para seres humanos e símios?
Felizmente, os tempos estão mudando. As
ciências naturais têm enfraquecido permanentemente a divisão entre
humanos e animais popular na cultura e na religião ocidentais. Hoje,
muitas vezes partimos do extremo oposto, assumindo a continuidade e
transferindo o ônus da prova para aqueles que insistem numa divisão.
Cabe a eles nos convencer. Quem quiser argumentar que um macaco com
cócegas, que quase engasga com suas gargalhadas roucas, deve se
encontrar num estado mental diferente de uma criança humana com
cócegas tem um trabalho duro pela frente.
Frans de Waal, in O último abraço da matriarca
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