quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Janela da alma | Quando os primatas riem e sorriem


Fazer cócegas num chimpanzé jovem é muito parecido com fazer cócegas numa criança. O símio tem os mesmos pontos sensíveis: sob as axilas, na lateral do corpo, na barriga. Ele abre bem a boca, fica com os lábios relaxados, arfa audivelmente com o mesmo ritmo familiar de inalação e exalação do riso humano. A impressionante semelhança faz com que seja difícil você não rir também.
O símio mostra também a mesma ambivalência de uma criança. Ele empurra seus dedos para longe, protegendo os pontos vulneráveis enquanto tenta escapar da cócega, mas assim que você para ele volta e quer mais, pondo a barriga bem na sua frente. Dessa vez, basta apontar o dedo, sem nem mesmo tocá-lo, e ele terá outro ataque de riso.
Riso? Espere aí! Um cientista de verdade deve evitar todo e qualquer antropomorfismo, e é por isso que colegas intransigentes nos pedem para mudar nossa terminologia. Por que não chamar a reação do primata de algo neutro, como, digamos, vocalização ofegante? Eu ouvi colegas cautelosos falarem sobre comportamento “semelhante a risos”. Dessa forma, evitamos toda e qualquer confusão entre o ser humano e o animal.
O termo “antropomorfismo”, que significa “forma humana”, vem do filósofo grego Xenófanes, que protestou no século v a.C. contra a poesia de Homero porque ela descrevia os deuses como se parecessem humanos. Xenófanes ridicularizou essa suposição, dizendo que, se os cavalos tivessem mãos, eles “desenhariam seus deuses como cavalos”. Hoje o termo ganhou um significado mais amplo e costuma ser usado para censurar a atribuição de características e experiências semelhantes às humanas a outras espécies. Assim, os animais não fazem “sexo”, mas se empenham em comportamentos de reprodução. Eles não têm “amigos”, apenas parceiros de afiliação preferidos. Tendo em vista que nossa espécie é ainda mais parcial em relação às distinções intelectuais, aplicamos essas castrações linguísticas com mais vigor no domínio cognitivo. Ao reduzir tudo o que os animais fazem ao instinto ou ao aprendizado simples, mantemos a cognição humana em seu pedestal. Se você pensar de outra forma, está sujeito a ser ridicularizado.
Para entender essa resistência, precisamos voltar a outro grego antigo: Aristóteles. O grande filósofo colocou todas as criaturas vivas em uma scala naturae vertical, que vai dos seres humanos (mais próximos dos deuses) a outros mamíferos, e pássaros, peixes, insetos e moluscos ficam perto do fim da fila. Fazer comparações ao longo dessa imensa escada tem sido um passatempo científico popular, mas parece que tudo o que aprendemos com elas é como medir outras espécies por nossos próprios padrões.
Mas qual é a probabilidade de que a imensa riqueza da natureza se encaixe numa única dimensão? Não é de esperar que cada animal tenha sua própria vida mental, inteligência e emoções próprias, adaptadas aos seus próprios sentidos e à sua história natural? Por que a vida mental de um peixe e a de uma ave seriam a mesma? Ou veja-se o caso de predadores e presas: é óbvio que os predadores têm um repertório emocional diferente do das espécies que precisam constantemente olhar por cima do ombro. Os predadores exalam uma autoconfiança fria (exceto quando encontram alguém a sua altura), enquanto os animais que servem de presas conhecem cinquenta tons de medo. Vivem aterrorizados e assustam-se a cada movimento, som ou cheiro inesperados. É por isso que os cavalos disparam, e os cachorros não. Nós evoluímos de coletores de frutas que viviam em árvores — daí olhos frontais, visão de cores e mãos que agarram —, mas, pelo nosso tamanho e nossas habilidades especiais, temos a postura de um predador. É provavelmente por isso que nos damos tão bem com nossos animais de estimação preferidos, que são dois carnívoros peludos.
Na faculdade, eu tinha uma gatinha preta e branca chamada Plexie. Cerca de uma vez por mês, eu punha Plexie numa sacola, com a cabeça para fora, e a levava de bicicleta para brincar com seu melhor amigo, um cãozinho de pernas curtas. Os dois brincavam juntos desde que eram pequenos e continuaram fazendo isso adultos. Eles subiam e desciam correndo as escadas de uma grande casa de estudantes, surpreendiam-se mutuamente a cada virada, a óbvia alegria deles era contagiante. Faziam isso durante horas, até ficarem exaustos. Cães e gatos muitas vezes se dão bem porque ambos estão ansiosos para perseguir e pegar objetos em movimento. Eles também são mamíferos, o que os ajuda a se relacionar conosco. Outros mamíferos reconhecem nossas emoções e nós reconhecemos as deles. É essa conexão empática que atrai os seres humanos para gatos domésticos (600 milhões estimados em todo o mundo) e cães (500 milhões), em vez de, digamos, iguanas ou peixes. Com essa conexão homem-animal, no entanto, vem nossa tendência de projetar sentimentos e experiências nos animais, muitas vezes de forma acrítica.
Podemos dizer que o nosso cão está “orgulhoso” de uma fita que ganhou numa exposição ou que nosso gato está “envergonhado” por não ter conseguido dar um salto. Vamos a hotéis de praia para nadar com golfinhos, convencidos de que os animais devem adorar essa atividade tanto quanto nós. Nos últimos tempos, as pessoas acreditaram na alegação de que Koko, a gorila que aprendera a linguagem manual dos sinais na Califórnia, se preocupava com a mudança climática, ou que os chimpanzés têm religião. Assim que ouço essas sugestões, meus músculos da face se contraem numa carranca e peço provas. O antropomorfismo gratuito é evidentemente inútil. Sim, os golfinhos têm rostos sorridentes, mas como se trata de uma parte imutável de seu semblante, isso não nos diz nada sobre como eles se sentem. E um cachorro carregando uma fita pode simplesmente apreciar toda a atenção e as guloseimas que aparecem em seu caminho.
No entanto, quando pesquisadores de campo experientes, que acompanham símios todos os dias na floresta tropical, me falam da preocupação que os chimpanzés demonstram em relação a um companheiro ferido, trazendo comida ou diminuindo o ritmo de caminhada, não sou avesso a especulações sobre empatia. E quando eles relatam que os orangotangos machos adultos nas copas das árvores anunciam em que direção eles viajarão na manhã seguinte, não me importo com a sugestão de que eles planejem com antecedência. Tendo em vista tudo o que sabemos a partir de experimentos controlados em cativeiro, essas especulações não são disparatadas. Mas, mesmo nesses casos, abundam as acusações de antropomorfismo.
O argumento do antropomorfismo está enraizado na ideia de excepcionalidade humana. Reflete o desejo de separar os seres humanos e negar nossa animalidade. Isso continua sendo habitual nas ciências humanas e em grande parte das ciências sociais, que prosperam sobre a noção de que a mente humana é de alguma forma invenção nossa. No entanto, eu mesmo considero a rejeição da similaridade entre os seres humanos e outros animais um problema maior que essa simples suposição. Apelidei essa rejeição de antroponegação. Ela se interpõe no caminho de uma avaliação franca de quem somos como espécie. Nossos cérebros têm a mesma estrutura básica que os de outros mamíferos: não temos partes novas e usamos os mesmos neurotransmissores antigos. Na verdade, os cérebros são tão semelhantes em todos os casos que, para tratar as fobias humanas, estudamos o medo na amígdala do rato. Cães treinados para permanecer imóveis num scanner cerebral mostram atividade no núcleo caudado quando esperam uma salsicha da mesma forma que essa região se ilumina em executivos que recebem a promessa de um bônus. Em vez de tratar os processos mentais como uma caixa-preta, como gerações anteriores de cientistas fizeram, estamos agora arrombando a caixa para revelar um fundo compartilhado. A neurociência moderna torna impossível manter um dualismo nítido entre seres humanos e animais.
Isso não significa que o planejamento dos orangotangos seja parecido com o que acontece quando eu anuncio um exame em sala de aula e os alunos se preparam para ele, mas bem lá no fundo há continuidade entre os dois processos. Uma continuidade ainda maior aplica-se aos traços emocionais. Uma vez que a nossa compreensão das emoções é parcialmente intuitiva, a continuidade é difícil de explicar com base puramente em dados e teoria. É importante ter uma exposição íntima aos animais, como a que os donos de animais de estimação desfrutam todos os dias. Daí minha simples e não científica recomendação para qualquer estudioso que duvide da profundidade das emoções dos animais: arranje um cachorro.
O antropomorfismo não é tão ruim quanto as pessoas pensam. Com espécies como os grandes símios, na verdade, ele é lógico. A teoria evolucionista quase o impõe, pois conhecemos os símios como “antropoides”, que significa “semelhante a humanos”. Devemos esse termo a Carl Lineu, o biólogo sueco do século XVIII que baseou sua classificação na anatomia, mas poderia facilmente ter tido por base o comportamento. A visão mais simples e mais parcimoniosa é que, se duas espécies relacionadas agem de maneira semelhante em circunstâncias semelhantes, elas devem ser motivadas de modo semelhante. Não hesitamos em fazer essa suposição ao comparar espécies relacionadas como cavalos e zebras, ou lobos e cães, então por que variar as regras para seres humanos e símios?
Felizmente, os tempos estão mudando. As ciências naturais têm enfraquecido permanentemente a divisão entre humanos e animais popular na cultura e na religião ocidentais. Hoje, muitas vezes partimos do extremo oposto, assumindo a continuidade e transferindo o ônus da prova para aqueles que insistem numa divisão. Cabe a eles nos convencer. Quem quiser argumentar que um macaco com cócegas, que quase engasga com suas gargalhadas roucas, deve se encontrar num estado mental diferente de uma criança humana com cócegas tem um trabalho duro pela frente.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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