quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Otorrinolaringololinda

Sete anos.
E um “foi mal, eu preciso ficar sozinha”.
Shit happens.
Chorou, chorou.
Passou umas poucas horas sem comer, gastou uns quatro rolos de papel higiênico, passou uns dias na horizontal.
Na terça-feira, foi trabalhar, porque sabia que dor de corno não assina ponto. E porque tinha uma consulta médica às 17h20, daquelas que se marcam com dois meses de antecedência (e amor nenhum vale mais do que consulta com médicos de agenda lotada – aprendam, crianças).
Achou que ia chegar decente, porque lavou o rosto antes de sair do trabalho. Mas não contava com o Ne-Yo cantando que estava “so done with wishing she was still here” no rádio.
Chegou todo inchado, todo cheio de mágoas na borda dos olhos.
Deu a carteirinha do plano de saúde, sentou no sofá entre duas senhoras que não pareciam queridas, abriu uma revista Caras que tinha na capa o décimo quinto casamento de um empresário rico grisalho com a décima quinta moça loira de vinte e cinco anos.
Antes que acabasse de admirar tantos vestidos justos nos glúteos superproduzidos de tantas subcelebridades, ouviu seu nome pronunciado por uma voz boa de mulher.
Subiu os degraus e viu à porta aquela imagem. Uma mulher que o fez perder o rumo por alguns segundos. Aquela pele morena e aqueles olhos azuis não cabiam naquele jaleco branco. Que loucura. Cadê a vigilância sanitária? Cadê a Agência Reguladora das Médicas Exuberantes? Isso é Brasil.
Entrou, se explicou, mostrou exames, prestou suas queixas, blá-blá-blá.
A médica sorriu, disse pra ele sentar na cadeira dos exames. Ele encolheu a barriga, sentou esticadinho.
Não sei pra quê.
Ela começou a ver a goela, a enfiar ferrinho no nariz, a tirar cera do ouvido. Um festival de horrores.
Ele ficou um pouco frustrado. Esperava um clima, uma chance de dizer “mas a cor dos seus olhos é mesmo incrível”. Mas foi ela que disse que a cor das amígdalas dele era satisfatória.
Voltaram para a mesa, ela pediu mais uns 247 exames, receitou uns remedinhos milagrosos por enquanto. Ligou para a secretária, falou pra marcar retorno.
Ele pensou em ficar decepcionado.
Ela se levantou, ele também.
Apertou sua mão, agradeceu e disse “até a próxima”.
Enquanto assinava a papelada do convênio, sentia algo de bom que não entendia direito.
Entregou o papel para o manobrista, pagou uma pequena fortuna e ficou esperando.
De repente, entendeu. Entendeu o que aquela consulta, aquela mulher e aquele vazio significavam.
Não era sobre aquela mulher. Nem sobre a outra. Não era sobre cera no ouvido ou sobre desculpas esfarrapadas. Nem sobre chances de elogiar o óbvio nem sobre hipóteses de arrependimentos.
Era sobre ter, depois de tantos anos, visto uma mulher. Visto uma mulher com os olhos que se redescobriram livres, ainda que de forma involuntária.
Era sobre sentir que estava vivo. Era sobre sentir que, pouco a pouco, a vida ia seguir.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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