Ninguém se espante com o diálogo que
mantive com um bebê de quinze dias de existência. Hoje, a
comunicação não conhece fronteiras espaciais ou etárias. O bebê
não fala o português de Portugal nem o português brasileiro,
ensinado pelo saudoso professor Stanislaw Ponte Preta. Mas fala a seu
modo, desde que se saiba interrogá-lo, e eu, não é por me gabar,
tenho meus macetes. Perguntei-lhe de saída:
— Então, satisfeita de vir ao mundo?
Respondeu-me com rabugem, em termos que
traduzirei assim:
— Como posso estar satisfeita, se ainda
bem não cheguei a este lugar, já me televisionaram e estão me
entrevistando?
— É a era
tecnológico-aldeiglobal-consumística, minha querida. Desde o
primeiro minuto de vida extrauterina você participa da sociedade
eletrônico-difusoro-cósmica ilimitada.
— É, estou vendo mas não acho graça
nenhuma.
— Não é para achar graça nem
desgraça, é para se integrar, entende? Você tem de aderir ao
processo. O processo é irreversível. Melhor você não dar uma de
contestadora, e entrar na jogada.
— Mas eu nem tive tempo de contestar,
me botaram diante das câmeras, fechei os olhos para não me ofuscar
com aquelas luzes, chorei em sinal de protesto, riram de mim, e
agora, pelo que vejo, estou em todas.
— De fato. Seu índice de publicidade é
dos mais altos. Em duas semanas você varou o Brasil, fez
concorrência a Elizabeth Taylor, aos terroristas palestinos e aos
não palestinos, governos que caem, governos que sobem, técnicas de
exorcismo…
— E daí? Pensa que o meu Ibope me dá
prazer?
— Ibope não dá prazer. Dá
dividendos. Você tem o futuro garantido, se for sempre dócil às
exigências do sistema. Não deve bobear. Esteja sempre perto de uma
objetiva, um gravador, uma passarela.
— Preferia viver a vida, com a sensação
de ter uma vida realmente minha.
— Quem tem isso hoje em dia,
meus-encantos? Só os loucos, isso mesmo, apenas certos loucos, não
marcados pela psicose de governar o mundo. Loucos mansos, vamos dizer
assim. São raros, a maioria é agitada, e não só recebe a
influência da comunicação delirante, como, por sua vez, influi
sobre esta, aumentando-lhe o delírio. De sorte que é bom você
renunciar ao ideal individualista e anacrônico. Vida particular da
gente já era. Agora vivemos a vida dos outros, em bloco, ou melhor,
a de ninguém.
— De qualquer maneira, os direitos da
criança… O direito de mamar sem virar manchete, de fazer cocozinho
à vontade sem ser objeto de curiosidade geral, como se eu pudesse
fazê-lo de pérolas. Isso não está mais em vigor?
— Depende. Há criança e criança.
Umas nascem destinadas à obscuridade total e permanente, senão
mesmo a coisa mais negativa, que é não viver. Nascem para não
conhecer a vida. Em pouco tempo voltam para o outro lado, onde, ao
que se sabe, ainda há o aproveitamento industrial do ser. Você até
que é dos bebês privilegiados. Centenas de milhares, ou milhões,
de espectadores debruçam-se diante dos seus cueiros, pela
circunstância feliz de que você é extensão da glória de sua
mãezinha.
— Vou pedir a ela para me esconder.
— Ela não pode fazer isso. Compreenda
o seu papel, ó flor reclamante. Não se pode fazer nada nesta
situação, a não ser exigir que as fotos saiam caprichadas, mesmo
porque se não saírem será preciso tirar outras. Sua imagem é mais
importante do que você. E você não se pertence; você é a sua
imagem multiplicada, em cor e som. Cresça como puder, mas apareça.
Aparecer é ser, em nosso tempo. Bem, vou me despedir, já estão
chegando outras equipes que naturalmente vão pedir a você que
estreie na próxima novela das vinte e duas horas. Trate de se
preparar para tudo. Sucesso, hem? E tchauzinho, mon amour de
bebê.
Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica
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