Blue vê o nome que escolheu para si
refletido em todo lugar ao redor: blocos de gelo lambidos pela lua,
oceano denso de gelo flutuante, líquido transformado em vidro. Ela
masca um pedaço de biscoito seco no convés enquanto a tripulação
do navio dorme, espana as migalhas de suas luvas e as observa caírem
no breu salpicado de branco das águas.
O nome do veleiro é A rainha de
Ferryland, e carrega uma tripulação de caçadores sedentos por
empilhar escalpos no porão, famintos pelo que pele e carne e gordura
poderão comprar na baixa estação. O interesse de Blue está parte
no óleo, mas principalmente na instalação de novas tecnologias a
vapor: há uma série de resultados a alcançar, um ponto a partir do
qual derrubar a indústria, um leme com o qual conduzir esses navios
por entre a cruz de um fracasso e a espada de outro, a um curso que
leva para Jardim.
Sete filamentos se enredam no colapso ou
na sobrevivência desta pescaria — insignificante aos olhos de
alguns, imensurável aos de outros. Em alguns dias, Blue se pergunta
por que alguém sequer se incomodou em criar números tão pequenos;
outros dias, ela supõe que até o infinito precisa começar em algum
ponto.
Esses dias raramente acontecem quando
está em uma missão.
Quem pode dizer o que Blue pensa durante
uma missão, quando missões são frequentemente vidas inteiras,
quando a história criada para que ela empunhe um gancho de caçador
leva anos? Tantos papéis, vestidos, festas, calças, intimidades
envolvidas em conseguir uma cabine e se agasalhar em roupas disformes
para se proteger do inverno do Novo Mundo.
O horizonte pisca e a manhã boceja sobre
ele. Caçadores avançam pelas laterais do veleiro, Blue entre eles:
remam pelo gelo, ferramentas à mão, rindo, cantando, acertando
crânios e cortando peles.
Blue já carregou três peles a bordo
quando uma grande e impetuosa foca atrai sua atenção: ela levanta a
cabeça ameaçadoramente por meio segundo antes de disparar para a
água. Blue é mais rápida. O crânio da foca se quebra como um ovo
sob seu porrete. Ela se agacha ao lado do animal para inspecionar a
peliça.
A visão a atinge como um hakapik. Ali,
na pele coberta de gelo, manchada e marcada como papel artesanal
barato, pontos e salpicos se transformam em uma palavra que ela
consegue ler: “Blue”.
Sua mão não treme enquanto ela arranca
o couro. Sua respiração está tranquila. Ela vinha mantendo as
luvas majoritariamente limpas, mas agora as mancha de vermelho,
vermelho como certo nome.
Enterrado nas profundezas das vísceras
brilhantes está um pedaço de bacalhau seco, não digerido,
arranhado e sulcado com linguagem. Ela mal percebe que se acomodou
sobre o gelo, pernas cruzadas, confortável, como se fosse uma xícara
de chá, e não tripas de foca, soltando um vapor escuro e fragrante
ao seu lado.
Ela vai guardar a peliça. O bacalhau,
vai esmagar até virar pó, espalhar sobre algum biscoito
rançosamente amanteigado e comer no jantar; o corpo, ela vai
descartar do jeito habitual.
Quando a rastreadora chega, forte e
rápida em seu encalço, tudo o que resta é uma mancha
vermelho-escura na neve azul. De quatro, ela lambe e chupa e mastiga
até que toda a cor desapareça.
Amal El-Mohtar e Max Gadstone, in É assim que se perde a guerra do tempo
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