Quando acabei de ler a carta de Zorba,
fiquei indeciso uns bons momentos. Não sabia se devia zangar-me, rir
ou admirar este bom homem primitivo que, partindo a casca da vida —
lógica, moral, honestidade — atinge a substância. Todas as
pequenas virtudes, tão úteis, lhe faltam. Só lhe restou uma
virtude incômoda, difícil e perigosa, que o impele
irresistivelmente para o extremo limite, o abismo.
Este operário ignorante, quando escreve,
quebra as pernas, no seu ardor impaciente. Exatamente como os
primeiros homens que se despojam das suas peles de macaco, ou como os
grandes filósofos, os problemas fundamentais os dominam. Ele os
sente como necessidades urgentes e imediatas. Como a criança, vê
todas as coisas pela primeira vez. Espanta-se e interroga sem cessar.
Tudo lhe parece milagroso e, cada manhã, quando abre os olhos e vê
as árvores, o mar, as pedras, um pássaro, fica de boca aberta.
Que prodígio é este? Grita ele. Que
mistérios são estes que se chamam: árvore, mar, pedra, pássaro?
Um dia, eu me lembro, quando caminhávamos
para a aldeia, encontramos um velhinho montado numa mula. Zorba
arregalou os olhos redondos para o animal. Deviam ser tão grandes a
chama e a intensidade do seu olhar que o camponês gritou apavorado:
— Pelo amor de Deus, não lhe ponha um
mal olhado!
E fez o sinal da cruz.
Virei-me para Zorba:
— Que fez você ao velho para ele
gritar assim? — perguntei.
— Eu? Não lhe fiz nada! Olhei para a
mula, só. Você não se admira, patrão?
— De que?
— Bem, de que haja mulas na terra.
Um outro dia, enquanto lia, deitado na
praia, Zorba veio senta-se em frente a mim, pôs o santuri nos
joelhos e começou a tocar.
Levantei os olhos e o encarei. Pouco a
pouco sua fisionomia mudou, uma alegria selvagem apoderou-se dele,
esticou o longo pescoço enrugado e começou a cantar: árias
macedônicas, canções cléfticas, gritos selvagens, a garganta
humana retornava aos tempos pré-históricos onde o grito era uma
grande síntese condensando tudo o que hoje chamamos: música, poesia
e pensamento. “Akh! Akh!” Gritou Zorba do fundo de suas entranhas
e toda a casca fina que chamamos civilização ruiu, dando passagem à
fera imortal, ao Deus peludo, ao terrível gorila.
Linhitas, perdas e lucros, Madame
Hortência e projetos de futuro, tudo desaparecia. O grito levava
tudo, não precisávamos de mais nada. Imóveis ambos nesta costa
solitária de Creta, guardávamos no peito todo o amargor e toda a
doçura da vida; amargor e doçura não existiam mais, o sol se
deslocava, a noite chegou, a grande ursa dançava em torno do eixo
imóvel do céu, a lua subia e olhava espantada dois bichinhos que
cantavam na areia e não tinham medo de ninguém.
— Eh, meu velho, o homem é um animal
feroz — disse de repente Zorba, excitado pelo canto, — largue
seus livros, você não tem vergonha? O homem é um animal selvagem,
e as feras, essas não leem.
Calou-se um momento e se pôs a rir:
— Você sabe — disse ele, — como o
bom Deus fabricou o homem? Sabe quais foram às primeiras palavras
que a peste do homem dirigiu a Deus?
— Não. Como quer que eu saiba? Não
estava lá.
— Pois eu estava! — gritou Zorba, os
olhos brilhantes.
— Então diga!
Meio levado pelo arrebatamento, meio
zombeteiro, pôs-se a forjar o relato fabuloso da criação do homem.
— Pois bem, ouça, patrão! Uma manhã
o bom Deus acorda um bocado aborrecido. “que espécie de Deus sou
eu? Não tenho nem ao menos homens para me louvarem ou jurarem pelo
meu nome e me ajudarem a passar o tempo! Estou farto de viver só
como uma velha coruja”. Cospe nas mãos, arregaça as mangas, põe
os óculos, toma um punhado de terra, cospe em cima, fazendo lama,
amassa-o bastante, confecciona um homenzinho e põe ao sol.
Ao fim de sete dias, retira-o. estava
cozido. O bom Deus olha-o e começa a rir: “O Diabo me carregue,
diz ele, mas é um porco em pé nas patas traseiras! Não era
absolutamente o que eu queria fazer. Enganei-me redondamente.”
Pega-o pela pele do pescoço e lhe dá um
pontapé. “Vá! Suma daqui! Você tem agora é que fazer outros
porquinhos, a terra é sua. Vá embora! Um, dois, para a frente,
marche!”
Mas, meu caro, absolutamente ele não era
um porco. Usava chapéu de feltro, casaco jogado negligentemente nos
ombros, calça com vinco e chinelas com pompons vermelhos. E mais
ainda, trazia no cinto — foi certamente o Diabo que lhe deu — um
punhal bem afiado, com estas palavras gravadas: “Hei de tirar-lhe a
pele.”
Era um homem. O bom Deus estende a mão
para que o outro a beije, mas o homem torce os bigodes e diz:
— Vamos, meu velho, sai daí para eu
passar!
Zorba parou, vendo-me torcer de rir, e
franziu a testa.
— Não se ria — disse, — foi assim
que se passou!
— Mas, como é que você sabe?
— É assim que eu sinto e é assim que
eu teria feito, eu também no lugar de Adão. Dou minha cabeça a
cortar que Adão não devia ter feito de outro modo. E não se fie em
tudo o que os livros contam, é em mim que você deve crer!
Estendeu a enorme pata sem esperar
resposta e recomeçou a tocar o santuri.
Segurava ainda a carta perfumada de Zorba
com o coração atravessado por uma flecha e revivia todos esses
dias, ricos de substância humana, que passara perto dele. A seu
lado, o tempo tomava um novo sabor. Não era mais uma sucessão
matemática de acontecimentos, nem, para mim, um problema filosófico
insolúvel.
Era areia quente, finamente peneirada, e
eu a sentia escorrer ternamente entre meus dedos.
— Bendito seja Zorba! — murmurei, —
deu um corpo bem-amado e quente às noções abstratas que tiritavam
dentro de mim. Quando ele não está presente, recomeço a tiritar.
Tomei uma folha de papel, chamei um
trabalhador e mandei um telegrama urgente:
“Venha imediatamente.”
Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego
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