Quando amanheceu, havia muitas nuvens e o
céu era um algodoal espesso e morno. Vagava acima da terra, entre o
milharal, acima do rio, sem que fosse possível ver o meu reflexo no
espelho d’água. O ar estava pesado e foi ficando difícil me
mover, até que, tomada pelo estupor, fiquei completamente imóvel
ante o inesperado. Assim como chegou de repente, todo o peso se
dissipou com o sopro da terra, como um rasgo afastando a vileza que
havia deixado o ar dilatado e opressivo. Um grito atravessou o espaço
como um sabre afiado. Tudo foi se tingindo de vermelho e segui o
rastro do rio de sangue que corria, não se sabia de onde.
A fonte do rio era Severo, o senhor que
mobilizava os trabalhadores de Água Negra, caído na terra com oito
furos feitos a bala. O grito era de Bibiana, prostrada ao chão com a
cabeça do marido no colo. O rio era sangue e lágrima, caudaloso e
lento, como uma corrente de lama avançando pelas casas e chamando o
povo para se unir ou fugir da fazenda. Nos momentos de forte emoção
meu horizonte se embota, transbordo para os lados, não consigo
reunir o que me compõe. Se ainda pudesse montar um cavalo... mas
ninguém se recorda de Santa Rita Pescadeira. Não há curador nem
casa de jarê. Aos poucos vão desaprendendo, porque há muita
mudança na vida de todos.
Fui tomada por uma profunda tristeza ao
ver aquelas duas vidas, desamparadas diante do que lhes haviam feito.
Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao
ver os homens derramando sangue para destruir sonhos. Vi senhores
enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo
por roubarem um diamante. Acudi uma mulher que incendiou seu próprio
corpo por não querer ser mais cativa de seu senhor. Mulheres que
retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem
escravos. Que davam a liberdade aos que seriam cativos, e muitas
delas morreram também por isso. Mulheres que enlouqueceram porque as
separaram dos filhos que seriam vendidos. Vi um senhor cruel deitar
com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como
se quisesse expurgar o mal que o fazia cair. Outro fez do corpo de
seu escravo um reparo para o barco imprestável em que navegava.
Entrava água na embarcação. O barco chegou ao seu destino com o
homem afogado. Vi homens e mulheres venderem seus pedaços de terra
por uma saca de feijão ou uma arroba de carne, porque não
suportavam mais a fome da seca. Severo morreu porque pelejava pela
terra de seu povo. Lutava pelo livramento da gente que passou a vida
cativa. Queria apenas que reconhecessem o direito das famílias que
estavam há muito tempo naquele lugar, onde seus filhos e netos
haviam nascido. Onde enterraram seus umbigos, no largo de terra dos
quintais das casas. Onde construíram casas e cercas.
Me desfiz numa fina chuva que aguou as
vidas que pelejavam para salvar Severo, no meio do nada. Entrei por
sua boca para lavar o sangue que esvaía. Me dividi nos ombros,
cabeças e costas dos que rodeavam marido e mulher no chão. Vi uma
carruagem de fogo correr pela estrada. Levaram Severo para a cidade,
mas não houve tempo para salvar. Em Água Negra correu um rio de
sangue.
Belonísia retirou o lenço da cabeça e
abraçou as que choravam, chamando pelo pai e pela mãe. No desespero
para salvar Severo, deixaram as crianças se aproximar e ver o que
havia acontecido. Foi Tonha que, num arroubo de proteção, reuniu as
meninas e as levou para casa. Salustiana acendeu velas, fez preces
para os santos e encantados, pediu para que salvassem Severo. Tudo o
que restou foi o silêncio. Do céu não se escutava nem chuva nem
vento. Abraçou o neto Inácio com força e pediu que não perdesse a
fé. Tudo havia escapado. Algumas pessoas correram para dar a notícia
aos pais e irmãos de Severo. Vi Hermelina desabar no chão como uma
galinha degolada. Nem meu sopro foi capaz de lhe devolver a
consciência.
Quando Bibiana retornou com a roupa suja
de sangue, a mãe percebeu que algo havia se rompido dentro da filha,
para todo o sempre. Fez com que retirasse as vestes marcadas de
violência e vestisse algo para o velório do genro. Nem tentou fazer
com que comesse algo. Viu que seus olhos vagavam atravessando
qualquer coisa ou pessoa que se colocasse em seu horizonte. Belonísia
teve vontade de abraçar a irmã, mas parecia estar desaparecendo
como a voz que ecoou algum dia. Não conseguia raciocinar. Dava-se
inteira aos sobrinhos, tentando compensar a dor que entrevia como uma
luz fraca transbordando dos seus olhos.
Velaram Severo na casa que ele próprio
ajudou a levantar. Bibiana permaneceu ao lado, sem arredar o pé por
um minuto, como um pau d’arco sem vergar ao corte do machado.
Fizeram discursos exaltando as qualidades de Severo. Louvaram a luta
e a consciência que havia trazido ao povo da fazenda. Alguns juraram
vingança. Naquele caminho, Severo havia feito desafetos entre os
moradores que não concordavam com suas manifestações. Mesmo esses
compareceram para velar sua morte.
Fazia tempo que não enterravam ninguém
na Viração. O portão estava fechado por determinação de Salomão,
o dono que sucedeu a família Peixoto. Alguém se lembrou de
perguntar a Bibiana onde ela queria que o corpo fosse levado. Queria
que o marido fosse para a Viração, para descer ao lado de Zeca
Chapéu Grande. Os irmãos e Zezé carregaram o corpo pelo caminho de
terra. Belonísia seguiu atrás unida aos sobrinhos. Hermelina
caminhava amparada por Servó e pelas filhas.
O pequeno portão estava cerrado com
corrente e cadeado. Pararam a marcha para decidir o que fazer.
Bibiana, que passou quase todo velório sem falar, pediu que o
cemitério da Viração fosse aberto, num tom de voz que muitos não
conseguiram escutar. Seguiram o que julgavam ter ouvido. Foram muitas
mãos agitadas sacudindo o portão velho, como muitos antepassados
haviam agitado o corpo para fugir dos castigos e grilhões do
cativeiro. O portão tombou no chão como uma corrente se desfazendo
no ar.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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