terça-feira, 23 de novembro de 2021

Rio de Sangue | 2

Quando amanheceu, havia muitas nuvens e o céu era um algodoal espesso e morno. Vagava acima da terra, entre o milharal, acima do rio, sem que fosse possível ver o meu reflexo no espelho d’água. O ar estava pesado e foi ficando difícil me mover, até que, tomada pelo estupor, fiquei completamente imóvel ante o inesperado. Assim como chegou de repente, todo o peso se dissipou com o sopro da terra, como um rasgo afastando a vileza que havia deixado o ar dilatado e opressivo. Um grito atravessou o espaço como um sabre afiado. Tudo foi se tingindo de vermelho e segui o rastro do rio de sangue que corria, não se sabia de onde.
A fonte do rio era Severo, o senhor que mobilizava os trabalhadores de Água Negra, caído na terra com oito furos feitos a bala. O grito era de Bibiana, prostrada ao chão com a cabeça do marido no colo. O rio era sangue e lágrima, caudaloso e lento, como uma corrente de lama avançando pelas casas e chamando o povo para se unir ou fugir da fazenda. Nos momentos de forte emoção meu horizonte se embota, transbordo para os lados, não consigo reunir o que me compõe. Se ainda pudesse montar um cavalo... mas ninguém se recorda de Santa Rita Pescadeira. Não há curador nem casa de jarê. Aos poucos vão desaprendendo, porque há muita mudança na vida de todos.
Fui tomada por uma profunda tristeza ao ver aquelas duas vidas, desamparadas diante do que lhes haviam feito. Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao ver os homens derramando sangue para destruir sonhos. Vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Acudi uma mulher que incendiou seu próprio corpo por não querer ser mais cativa de seu senhor. Mulheres que retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem escravos. Que davam a liberdade aos que seriam cativos, e muitas delas morreram também por isso. Mulheres que enlouqueceram porque as separaram dos filhos que seriam vendidos. Vi um senhor cruel deitar com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como se quisesse expurgar o mal que o fazia cair. Outro fez do corpo de seu escravo um reparo para o barco imprestável em que navegava. Entrava água na embarcação. O barco chegou ao seu destino com o homem afogado. Vi homens e mulheres venderem seus pedaços de terra por uma saca de feijão ou uma arroba de carne, porque não suportavam mais a fome da seca. Severo morreu porque pelejava pela terra de seu povo. Lutava pelo livramento da gente que passou a vida cativa. Queria apenas que reconhecessem o direito das famílias que estavam há muito tempo naquele lugar, onde seus filhos e netos haviam nascido. Onde enterraram seus umbigos, no largo de terra dos quintais das casas. Onde construíram casas e cercas.
Me desfiz numa fina chuva que aguou as vidas que pelejavam para salvar Severo, no meio do nada. Entrei por sua boca para lavar o sangue que esvaía. Me dividi nos ombros, cabeças e costas dos que rodeavam marido e mulher no chão. Vi uma carruagem de fogo correr pela estrada. Levaram Severo para a cidade, mas não houve tempo para salvar. Em Água Negra correu um rio de sangue.
Belonísia retirou o lenço da cabeça e abraçou as que choravam, chamando pelo pai e pela mãe. No desespero para salvar Severo, deixaram as crianças se aproximar e ver o que havia acontecido. Foi Tonha que, num arroubo de proteção, reuniu as meninas e as levou para casa. Salustiana acendeu velas, fez preces para os santos e encantados, pediu para que salvassem Severo. Tudo o que restou foi o silêncio. Do céu não se escutava nem chuva nem vento. Abraçou o neto Inácio com força e pediu que não perdesse a fé. Tudo havia escapado. Algumas pessoas correram para dar a notícia aos pais e irmãos de Severo. Vi Hermelina desabar no chão como uma galinha degolada. Nem meu sopro foi capaz de lhe devolver a consciência.
Quando Bibiana retornou com a roupa suja de sangue, a mãe percebeu que algo havia se rompido dentro da filha, para todo o sempre. Fez com que retirasse as vestes marcadas de violência e vestisse algo para o velório do genro. Nem tentou fazer com que comesse algo. Viu que seus olhos vagavam atravessando qualquer coisa ou pessoa que se colocasse em seu horizonte. Belonísia teve vontade de abraçar a irmã, mas parecia estar desaparecendo como a voz que ecoou algum dia. Não conseguia raciocinar. Dava-se inteira aos sobrinhos, tentando compensar a dor que entrevia como uma luz fraca transbordando dos seus olhos.
Velaram Severo na casa que ele próprio ajudou a levantar. Bibiana permaneceu ao lado, sem arredar o pé por um minuto, como um pau d’arco sem vergar ao corte do machado. Fizeram discursos exaltando as qualidades de Severo. Louvaram a luta e a consciência que havia trazido ao povo da fazenda. Alguns juraram vingança. Naquele caminho, Severo havia feito desafetos entre os moradores que não concordavam com suas manifestações. Mesmo esses compareceram para velar sua morte.
Fazia tempo que não enterravam ninguém na Viração. O portão estava fechado por determinação de Salomão, o dono que sucedeu a família Peixoto. Alguém se lembrou de perguntar a Bibiana onde ela queria que o corpo fosse levado. Queria que o marido fosse para a Viração, para descer ao lado de Zeca Chapéu Grande. Os irmãos e Zezé carregaram o corpo pelo caminho de terra. Belonísia seguiu atrás unida aos sobrinhos. Hermelina caminhava amparada por Servó e pelas filhas.
O pequeno portão estava cerrado com corrente e cadeado. Pararam a marcha para decidir o que fazer. Bibiana, que passou quase todo velório sem falar, pediu que o cemitério da Viração fosse aberto, num tom de voz que muitos não conseguiram escutar. Seguiram o que julgavam ter ouvido. Foram muitas mãos agitadas sacudindo o portão velho, como muitos antepassados haviam agitado o corpo para fugir dos castigos e grilhões do cativeiro. O portão tombou no chão como uma corrente se desfazendo no ar.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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