Meu cavalo morreu e não tenho mais
montaria para caminhar como devo, da forma que um encantado deve se
apresentar entre os homens, como deve aparecer por esse mundo. Desde
então, passei a vagar sem rumo, arrodeando aqui, arrodeando acolá,
procurando um corpo que pudesse me acolher. Meu cavalo era uma mulher
chamada Miúda, mas quando me apossava de sua carne seu nome era
Santa Rita Pescadeira. Foi nela que cavalguei por tempo, não conto o
tempo, mas montei o corpo de Miúda, solitária. Sou muito mais
antiga que os cem anos de Miúda. Antes dela, me abriguei em muitos
corpos, desde que a gente adentrou matas e rios, adentrou serras e
lagoas, desde que a cobiça cavou buracos profundos e o povo se
embrenhou no chão como tatus, buscando a pedra brilhante. O diamante
se tornou um enorme feitiço, maldito, porque tudo que é bonito
carrega em si a maldição. Vi homens fazerem tratos de sangue,
cortando sua carne com os punhais afiados, marcando suas mãos, suas
frontes, suas casas, seus objetos de trabalho, suas peneiras de
cascalhos e bateias. Vi homens enlouquecerem sem dormir, varando
noite e dia no rio Serrano, nas serras, nos garimpos, entocados na
escuridão para ver o brilho mudar de lugar. O diamante tem feitiço
e no breu podemos ver seu reflexo, de fazer cegar uma coruja, quando
anda de um lugar para outro, como um espírito saindo de uma serra,
cruzando o céu, e descendo num monte ou num rio, na forma de uma luz
que chamava a atenção mesmo distante. Os homens enlouqueciam assim,
esperando o amanhecer e abrindo fendas no chão onde achavam ter
visto a luz entrar, para não encontrar nada. Enlouqueciam sem comer
ou tomar banho. Morriam dentro dos buracos ou de tentar apanhar as
pedras das mãos dos que haviam encontrado. Morriam de fome, porque
toda a energia de seus corpos e mentes era para apanhar o diamante.
Carregavam as famílias para os mesmos caminhos de loucura e muitos
endoidavam, do dia para a noite, sem sinal ou aviso. Vinham dar suas
obrigações aos encantados nas casas de jarê, a Mineiro e
Sete-Serra, matavam bichos, derramavam sangue para poder encontrar o
brilho. Não queriam guardar as pedras, não queriam admirar sua luz,
queriam encher seus picuás para poder ter uma casa ou a liberdade.
Às vezes, um ou outro encontrava seu bambúrrio, comprava sua
liberdade, montava seu negócio. Alguns viravam donos de escravos, e
davam adeus à servidão e à busca que lacerava suas mãos e suas
almas. Mas a maioria só encontrava a quimera e a loucura, o
assombro, o desassossego, a dor e a violência. Vergava sob a própria
ilusão, derrotado, acocorado num amontoado de cascalhos.
Meu povo seguiu rumando de um canto para
outro, procurando trabalho. Procurando terra e morada. Um lugar onde
pudesse plantar e colher. Onde tivesse uma tapera para chamar de
casa. Os donos já não podiam ter mais escravos, por causa da lei,
mas precisavam deles. Então, foi assim que passaram a chamar os
escravos de trabalhadores e moradores. Não poderiam arriscar
fingindo que nada mudou porque os homens da lei poderiam criar caso.
Passaram a lembrar para seus trabalhadores como eram bons, porque
davam abrigo aos pretos sem casa, que andavam de terra em terra
procurando onde morar. Como eram bons, porque não havia mais chicote
para castigar o povo. Como eram bons, por permitirem que plantassem
seu próprio arroz e feijão, o quiabo e a abóbora. A batata-doce do
café da manhã. “Mas vocês precisam pagar esse pedaço de chão
onde plantam seu sustento, o prato que comem, porque saco vazio não
fica em pé. Então, vocês trabalham nas minhas roças e, com o
tempo que sobrar, cuidam do que é de vocês. Ah, mas não pode
construir casa de tijolo, nem colocar telha de cerâmica. Vocês são
trabalhadores, não podem ter casa igual a dono. Podem ir embora
quando quiserem, mas pensem bem, está difícil morada em outro
canto.”
Me embrenhei entre o povo que os donos da
terra chamavam de trabalhador, e morador. Era o mesmo povo que me
carregou nas costas quando eram escravos das minas, das lavouras de
cana, ou apenas os escravos de Nosso Senhor Bom Jesus. Me acolhia num
corpo, acolhia em outro, quando tinha abundância de água nessas
terras. Mas o diamante não nos trouxe sorte nem bambúrrio. O
diamante trouxe a ilusão porque, quando instalaram as dragas, os
rios foram se enchendo da areia que jorrava das grutas. Os rios foram
ficando sujos e rasos. Sem abastança de água para pescar já não
tinham porque pedir nada a Santa Rita Pescadeira. Ah, chegou a luz
elétrica e quem pôde comprou sua geladeira. Esses peixes miúdos
que restaram por aqui não matam mais a fome de ninguém. Envergonham
até quem pesca.
Então, ninguém atinava a aprender as
cantigas da encantada. Até ficaram surpresos quando apareci, certa
vez. Me olharam e riram como se fosse uma assombração. Miúda
roçava, mas sua paixão era pescar. Era acordar de madrugada e
seguir sozinha para a beira do rio. Levava os filhos, mas quando eles
foram embora, Miúda pescou sem eles. Dormia na beira do rio sem medo
de onça nem de cobra. Eu era a sua encantada, que domava seu corpo
sem assombro. Protegia meu cavalo. Meu cavalo que dançava atirando a
rede, no meio da casa do curador Zeca Chapéu Grande. Meu cavalo não
usava sapatos porque seus pés eram as minhas raízes e me firmavam
na terra. Seus braços eram minhas nadadeiras e me moviam na água.
Montei o meu cavalo por anos, que nem posso contar. Mas agora, sem
corpo pra me apossar, vago pela terra.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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