domingo, 21 de novembro de 2021

Prato ilustrando Shapur II

Prato de prata do Irã | 309-379 D.C.


O poema sinfônico Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss, é conhecido por muita gente por ter sido usado na trilha sonora do filme 2001: Uma odisseia no espaço. Contudo, poucos de nós sabemos o que Zaratustra falava de verdade ou quem foi ele. Isso é um tanto surpreendente, porque Zaratustra — ou, como é mais conhecido, Zoroastro — foi o fundador de uma das maiores religiões do mundo. Durante séculos, junto com o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, o zoroastrismo foi uma das quatro religiões dominantes do Oriente Médio. Era a mais antiga das quatro — a primeira de todas as religiões baseadas em textos — e teve profunda influência nas outras três. Ainda existem comunidades zoroastristas dignas de nota espalhadas pelo mundo inteiro, especialmente no Irã, onde essa religião nasceu. Na verdade, a república islâmica hoje reserva cadeiras no parlamento para judeus, cristãos e zoroastristas. Há dois mil anos, o zoroastrismo era a religião estatal do Irã. Na época, o país era a superpotência do Oriente Médio.
O objeto mostrado aqui é uma visualização dramática de poder e fé naquele império iraniano. É um prato de prata do século IV, que parece mostrar o rei em uma expedição de caça. Na verdade, o rei está protegendo o mundo do caos.
Na Roma daquela época, o cristianismo acabara de se tornar a religião oficial. Quase ao mesmo tempo, no Irã, a dinastia Sassânida construiu um Estado altamente centralizado, no qual a autoridade secular e a autoridade religiosa se interligavam. Em seu auge, esse império iraniano estendia-se do Eufrates ao Indo — em termos modernos, da Síria ao Paquistão. Durante séculos, equiparou-se a Roma — e rivalizou com ela — na longa luta para controlar o Oriente Médio. O rei sassânida que aparece caçando nesse prato de prata é Shapur II, que governou com retumbante sucesso durante setenta anos, de 309 a 379.
Trata-se de um prato raso e redondo, feito com prata da melhor qualidade, e, ao movê-lo, percebe-se que há detalhes em ouro. O rei está sentado, confiante, em sua montaria e usa uma grande coroa com algo no topo que lembra um globo alado. Atrás dele fitas esvoaçam na prata, dando a impressão de movimento. Tudo em seus trajes é rico — os brincos pendentes, a túnica de manga comprida com ombreiras bordadas com esmero, as calças bastante enfeitadas e os sapatos com fitas. É uma imagem cerimonial de riqueza e poder minuciosamente trabalhada.
Tudo isso pode parecer bastante previsível: os reis sempre se mostraram exageradamente vestidos, dominando animais. Entretanto, neste caso há mais do que uma simples exibição convencional de destreza e privilégio. Os reis sassânidas não eram apenas governantes seculares — eram agentes de deus, e os títulos oficiais de Shapur destacam sua função religiosa: “O bom venerador de Deus, Shapur, o rei do Irã e do não Irã, da divina raça de Deus, o Rei dos Reis.” O deus, nesse caso, é obviamente o deus do zoroastrismo, a religião do Estado. O historiador Tom Holland nos conta quem foi o grande profeta e poeta Zoroastro:

Zoroastro é o primeiríssimo profeta no sentido que descreveríamos Moisés ou Maomé como profetas. Ninguém sabe ao certo quando ou se de fato ele viveu, mas, se realmente existiu, é provável que tenha vivido nas estepes da Ásia Central, por volta do ano 1000 a.C. Aos poucos, no desenrolar dos séculos e, depois, dos milênios, seus ensinamentos passaram a formar o núcleo do que poderíamos provavelmente chamar de Igreja zoroastrista. Com o passar do tempo, ela se tornou a religião do povo iraniano, e, dessa forma, do império sassânida quando este se estabeleceu.
Os ensinamentos de Zoroastro soariam muito familiares a qualquer um que tenha sido criado como judeu, cristão ou muçulmano. Zoroastro foi o primeiro profeta a ensinar que o universo é um campo de batalha entre forças rivais do bem e do mal. Foi o primeiro a ensinar que o tempo não gira em um ciclo infinito, mas tem um fim — que haverá o fim dos dias; o dia do julgamento. Todas essas noções entraram na corrente abraâmica dominante do judaísmo, do cristianismo e do islamismo.

É quando se vê o animal que o rei cavalga no prato de prata que se leva um choque. Não se trata de um cavalo, mas de um veado macho adulto com chifres plenamente desenvolvidos. O rei monta o animal sem sela ou estribos, segurando-o pelos chifres com a mão esquerda enquanto com a direita lhe enfia uma espada no pescoço — o sangue jorra, e na base do prato vemos o mesmo veado nos estertores da morte. Essa imagem é uma fantasia, desde a grande coroa no topo, que sem dúvida cairia se ele estivesse de fato cavalgando, até a ideia de matar a própria montaria no momento em que ela dá um salto.
Então o que está acontecendo aqui? No Oriente Médio, cenas de caça eram muito usadas para representar o poder real ao longo dos séculos. Reis assírios, bem protegidos em seus carros de batalha, são mostrados matando bravamente leões a uma distância segura. Shapur faz outra coisa. Aqui está o monarca em combate individual com o animal, arriscando a vida não por estouvada fanfarronice, mas em benefício dos súditos. Como governante protetor, nós o vemos matar certos tipos de animais, as feras que ameaçam os súditos: grandes felinos que atacam o gado e as aves domésticas, javalis e veados que destroem plantações e pastos. Imagens como esta são, portanto, metáforas visuais do poder real concebido em termos zoroastristas. Ao matar o veado, o rei-caçador impõe a ordem divina ao caos demoníaco. Shapur, atuando como agente do supremo deus zoroastrista da bondade, derrotará as forças do mal primitivo para cumprir seu papel central de rei.
Guitty Azarpay, professora de Arte Asiática da Universidade da Califórnia, em Berkeley, destaca o duplo papel do rei:

É tanto uma imagem secular — porque a caça, é claro, era praticada pela maioria das pessoas, pela maioria dos países, especialmente no Irã — quanto uma expressão da ideologia zoroastrista da época. O homem é a arma de Deus contra as trevas e o mal e serve à vitória final do criador seguindo o princípio da moderação e levando uma vida segundo as prescrições do bom modo de falar, das boas palavras e das boas ações. Dessa forma, o zoroastrista devoto pode esperar o melhor da existência nesta vida e, espiritualmente, o melhor paraíso na próxima. O melhor rei é aquele que, como chefe de Estado e guardião da religião, cria a justiça e a ordem, é um supremo guerreiro e um caçador heroico.

Este prato destina-se, sem a menor dúvida, não apenas a ser visto, mas a ser alardeado. É um objeto pomposo e caro, feito de uma única e pesada peça de prata, e as figuras em alto-relevo foram marteladas pela parte de trás. As várias texturas da superfície foram lindamente executadas pelo artesão, que escolheu diferentes tipos de pontilhado para a carne do animal e para a roupa do rei. E os elementos principais da cena — a coroa e a roupa do rei, a cabeça, a cauda e os cascos dos veados — são destacados em ouro. Quando a peça era exibida na bruxuleante luz de vela de um banquete, o ouro dava vida à cena, chamando a atenção para o conflito central entre o rei e o animal. Era assim que Shapur queria ser visto, como queria que seu reino fosse compreendido. Pratos de prata como este foram abundantemente usados pelos reis sassânidas, que os enviavam como presentes diplomáticos para todas as partes da Ásia.
Além de enviar pratos de prata com imagens simbólicas, Shapur despachava missionários zoroastristas. Era uma identificação entre fé e Estado que acabaria se revelando muito perigosa, sobretudo depois que a dinastia Sassânida foi varrida do mapa e os exércitos do Islã conquistaram o Irã. Tom Holland explica:

O zoroastrismo tinha de fato pregado suas cores no mastro sassânida. Definira-se através do império e da monarquia. E, quando ambos desmoronaram, o zoroastrismo ficou mutilado. Apesar de, com o passar do tempo, ter sido aceito que o zoroastrismo fosse tolerado, o islã jamais o tratou com a dose de respeito que dispensava a cristãos ou judeus. Outro problema grave era que os cristãos — mesmo os que tinham sido subjugados pelos muçulmanos — podiam olhar para impérios cristãos independentes, para reinos cristãos independentes, e saber que no mundo ainda existia algo chamado cristianismo. Aos zoroastristas não restou essa opção: todos os lugares que tinham seguido o zoroastrismo foram conquistados pelo islã. Hoje, mesmo na terra de seu nascimento, o Irã, os zoroastristas são uma reduzidíssima minoria.

Contudo, se os zoroastristas hoje são relativamente pouco numerosos, uma parte central de seus ensinamentos sobre o eterno conflito entre o bem e o mal e sobre o fim do mundo ainda se revela com muita força. A política do Oriente Médio continua assombrada e em certa medida influenciada pela crença em um eventual apocalipse e no triunfo da justiça — ideia que o judaísmo, o cristianismo e o islamismo herdaram do zoroastrismo. E, quando políticos em Teerã falam do grande satã e políticos de Washington denunciam o império do mal, somos tentados a lembrar que “assim falou Zaratustra”.

Neil MacGregor, in A história do mundo em 100 objetos

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