terça-feira, 16 de novembro de 2021

O quarto do mistério

Era um fascínio andar por aqueles espaços enormes, agora quase desertos. Mas o que mais me fascinava era um quarto proibido, trancado o tempo todo, onde ninguém entrava. Em outros tempos, quando a casa estivera cheia de filhos e de empregadas, todos os quartos eram quartos normais, simplesmente. Mas aconteceu o que sempre acontece: os filhos se casaram, os tempos de vacas magras chegaram, foram-se as empregadas, morreram os pais, só ficaram quatro filhas solteironas e um filho solteirão. Sem uso, aquele quarto foi transformado em depósito de coisas velhas, onde não entrava nem vassoura nem espanador, porque não era preciso.
Era proibido entrar nele e a chave enorme ficava escondida. Eu compreendo a proibição. Para as tias, o quartão era o lugar das coisas feias, da poeira que se acumulava, das teias de aranha. Menino não devia brincar num lugar como aquele.
Mas para mim era o quartão do mistério. Se não houvesse mistério, a chave não ficaria escondida nem haveria a proibição de entrar. O quarto proibido é sempre aquele em que a gente quer entrar. A história dos homens é marcada pela transgressão das proibições.
Parece que a transgressão do proibido é um dos impulsos mais profundos da alma humana. “Esforçamo-nos para o proibido”, dizia Nietzsche. A proibição espicaça o desejo, obrigando-nos assim a transgredi-la. Toda transgressão do proibido é uma revolta contra o monopólio do objeto do desejo por um outro. Prometeu rouba o fogo dos deuses. Adão e Eva comem o fruto proibido. Santo Agostinho roubava peras azedas do vizinho. A mulher do Barba Azul não se contentou com os 99 quartos e as 99 chaves: foi logo para o centésimo quarto com a centésima chave, o único quarto onde ela não tinha permissão para entrar. Assim somos nós, seres fascinados pelo mistério e pelo proibido.
Para entrar no Quarto do Mistério era preciso roubar a chave. Era uma daquelas chaves grandes e pretas que agora se compram nos antiquários. Pois eu roubava a chave e, silenciosamente, entrava no quarto e me trancava lá dentro. Pelo silêncio as tias imaginavam que eu deveria estar longe, no jardim ou na rua. Mal sabiam...
O quartão do mistério era um lugar encantado. Até mesmo aquilo que as tias consideravam horror ajudava a compor a cena: a poeira acumulada sobre os móveis, as teias de aranha, o cheiro de mofo — tudo dizia que ali o tempo havia parado. O que era confirmado por um enorme relógio redondo, dependurado na parede: ao contrário do carrilhão da varanda (varanda, em Minas, era a sala de jantar), que tocava a cada quarto de hora, o relojão redondo estava parado desde sempre. Ele marcava o tempo da eternidade.
Tudo era mágico. Os objetos emergiam de um mundo de sonhos. As duas cítaras, com incrustações de madrepérola: por quanto tempo teriam estado naquele limbo de silêncio? E as paletas de pintura? Estavam cobertas com tinta dura. Qual teria sido o último toque do pincel, antes da morte? A interrupção devia ter sido repentina, pois as bisnagas de tinta endurecida ainda estavam pela metade. Já não serviam para nada, mas ainda se podia sentir o seu perfume. Um gramofone, discos velhos, revistas maravilhosas, canastras que haviam cruzado o oceano, bolsas, óculos Trotzki, instrumentos de medicina que não mais se usavam, álbuns de retratos amarelados de homens de colarinho engomado e mulheres de anquinhas.
Pilhas da revista Em Guarda, sobre a guerra, que eram distribuídas como propaganda pelos americanos. Lembro-me de uma reportagem: “Sargento Kelly, herói singelo”. Naquele tempo os heróis eram puros. Uma porta se abria para a rampa que levava ao sótão. No sótão, mais canastras, cheias de cartas. Uma delas era dirigida ao meu bisavó, que era tido como entendido em coisas de saúde. Era uma consulta. O missivista se queixava de que uma das suas escravas já tinha perdido “duas barrigadas”. Queria saber o que fazer para não perder as “crias”.
Era um cemitério de objetos mortos. Ninguém os usaria mais. Poderiam ter sido jogados fora. Sua falta não seria sentida. Por que não o foram? Por que não jogamos fora objetos que nunca mais usaremos? Talvez porque os amamos. As crianças não continuam a ter ternura por um ursinho velho? Os objetos abandonados são “partes arrancadas de nós”. Talvez não os joguemos fora por medo de estar jogando fora um pedaço de nós mesmos... Como se disséssemos aos objetos abandonados: “Nós continuamos a amá-los...”.
O encanto do proibido, o encanto dos objetos obsoletos, o encanto da solidão: lá eu estava escondido, longe do olhar dos adultos. Eles não sabiam. Era bom estar longe deles, embora fossem gentis. O Quarto do Mistério era o espaço simbólico da minha liberdade.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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