Indomável, Severo caminhou por estradas,
levantou sua voz em discursos, enfrentou os novos donos e o chefe dos
trabalhadores. Mudando a si em meio ao movimento que parecia crescer
em nossas vidas, foi moldando Água Negra, fazendo-a se transformar
num lugar diferente. Enquanto Zeca Chapéu Grande viveu, respeitou o
seu desejo de não confrontar os que lhe haviam dado abrigo.
Questionar o domínio das terras da fazenda seria um gesto de
ingratidão. Por isso mesmo, Severo percebeu que não poderia
discutir com meu pai, seu tio e sogro, seria um desrespeito por tudo
o que ele significava para o nosso povo. Zeca Chapéu Grande havia
mantido os moradores da fazenda unidos, foi liderança do povo por
anos, e, sem permitir que se fizessem maus-tratos a nenhum
trabalhador da fazenda, muitas vezes interveio, sem afrontar Sutério,
para impedir injustiças maiores que as que já existiam. Graças às
suas crenças, havia vigorado uma ordem própria, o que nos ajudou a
atravessar o tempo até ao presente.
Sua morte deixou um vazio entre os
moradores da fazenda e, por fim, a venda das terras transformou tudo
de maneira repentina. As notícias que nos chegavam eram de que a
fazenda havia sido vendida a um preço minguado, porque nossa
presença a havia desvalorizado. O novo dono fazia uma movimentação
contrária à nossa morada, talvez porque soubesse que, pelo tempo
que tínhamos ali, a justiça nos reservava algum direito. Aos
poucos, foi chegando, primeiro como um benfeitor, dizendo que nada
iria mudar. Se mostrava solidário, levando um ou outro para a cidade
em seu carro se precisava de médico, propagando aos quatro ventos
como era bom com seus trabalhadores. Depois montou um barracão de
mantimentos, resolveu criar porcos e quem estivesse disposto a
trabalhar teria direito a salário, que as pessoas nunca receberam de
fato. Os dias de trabalho eram pagos com a retirada de mercadorias e,
ao sair de lá, os moradores terminavam deixando uma dívida maior do
que o pagamento que tinham a receber.
Nesse campo desigual, Severo levantou sua
voz contra as determinações com que não concordávamos. Virou um
desafeto declarado do fazendeiro. Fez discursos sobre os direitos que
tínhamos. Que nossos antepassados migraram para as terras de Água
Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos
negros depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos
fazendeiros sem nunca termos recebido nada, sem direito a uma casa
decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita a cada
chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz,
em breve estaríamos sem ter onde morar. A cada movimento de Severo e
dos irmãos contra as exigências impostas pelo proprietário, as
tiranias surgiam com mais força.
No começo, o dono quis nos dividir
dizendo que aquele “bando de vagabundos” queria a fazenda dele,
comprada com o seu trabalho. Aquele sentimento de desamparo que o
povo havia sentido com a morte de meu pai foi sendo substituído pela
liderança de Severo, para uns. Outros não viam com bons olhos o
movimento e se opuseram abertamente a meu primo, divergindo, entrando
no jogo do novo fazendeiro para fazer minar nossas forças. Guiavam
seus animais na calada da noite para destruir nossas roças na
vazante. Derrubavam cercas e meses de trabalho viraram pasto na boca
do gado. Certo dia, fomos acordados no meio da madrugada com um
incêndio em nosso galinheiro. Os ovos explodiam como bombas das
festas de junho. Apagamos o fogo com as tinas de água e atirando a
terra seca. Outros galinheiros também foram incendiados, o que
deixou claro que era uma ação organizada do fazendeiro com alguns
trabalhadores. Com receio de deixar minha mãe e minhas irmãs,
fechei a casa do rio Santo Antônio de vez e voltei a morar na beira
do Utinga.
Severo colheu assinatura para fundar uma
associação de trabalhadores. Disse que precisávamos nos organizar
ou, de contrário, acabaríamos sendo expulsos. Para muitos era
impossível se imaginarem longe de Água Negra. Escutei dona Tonha,
em uma conversa com minha mãe, perguntar sobre o que faria na
cidade: “Vou alisar calçada? Pra viver na cidade precisa de
dinheiro pra tudo. Uma cebola, dinheiro. Um tempero, dinheiro.”
Bibiana esteve mais ativa ao lado do marido. Em meio à mobilização,
eu ficava de bom grado com as crianças para que ela pudesse
escrever, trabalhar, andar com Severo procurando ajuda na garupa da
motocicleta que ele havia adquirido. Iam a sindicato, a reuniões.
Voltavam, faziam mais reuniões, escondidos ora na casa de um, ora na
casa de outro. Na nossa casa ocorreram muitas. Temi que minha mãe
tivesse a mesma postura de nosso pai, que achasse ingratidão aquela
movimentação. Mas não, ela parecia entusiasmada, desandou a contar
muitas histórias, era um livro vivo. Contava as histórias dos
bisavós, dos avós, da fazenda Caxangá, onde também morou, das
terras do Bom Jesus, de onde veio. Intervinha ativa, ciente da
importância das coisas que sabia. A essa altura, já haviam
percebido que se não fizéssemos barulho para garantir nossa
permanência na fazenda, não teríamos para onde ir.
Com frequência, também passou a
aparecer um carro de polícia, de onde desciam para fazer perguntas,
entrando nas casas, constrangendo os moradores. O medo era grande,
uma casa avisava a outra quando surgiam, ou se alguém demorasse a
retornar para casa ou se fosse para lugar distante. Compartilhávamos
cada passo, porque entendíamos que só assim conseguiríamos nos
proteger.
Bibiana e Severo se arrumaram para mais
uma jornada em busca de um registro da associação de trabalhadores
e pescadores de Água Negra. De posse das assinaturas, iriam ao
cartório. Numa manhã nublada, de calor abafado, o céu quase
branco, Salu lembrou que guardava o pedaço do bilhete que Sutério
havia dado a meu pai há mais de setenta anos. Seria bom juntar uma
cópia aos documentos, haviam decidido na última reunião. Era um
bilhete num papel manchado que Zeca guardou junto com outros
documentos, num envelope pardo, quase desfeito pelo tempo. Me lembro
do dia em que Bibiana o abriu com cuidado, quando nosso pai pediu que
lesse, para que todos tomássemos conhecimento sobre qual era nossa
situação na fazenda. Quando Bibiana terminou de ler eu mesma fiz
questão de conferir: “Esteve aqui o Sr. José Alcino pedindo uma
morada eu dei a ele lá na beira do rio Utinga e disse a ele que tem
que trabalhar nas roças da fazenda e pode levantar casa de barro
proibido casa de tijolo.”
Bibiana já havia subido na garupa da
motocicleta quando recordou do que havia esquecido. Devolveu o
capacete a Severo e foi buscar o bilhete. Maria e Flora ajudavam com
os pratos no quintal enquanto eu tentava acender o fogo, com a roupa
molhada de suor do esforço de abanar a brasa.
Ouvi vários estampidos, como na
madrugada do incêndio do galinheiro. Os ovos estouraram naquela
noite, as aves ficaram esturricadas. Meu peito doía de ver os bichos
da casa mortos por pura maldade. Não refizemos o galinheiro, não
havia ovos para estourar e produzir aquele som que, de novo,
enfraquecia meu corpo. Corri em direção ao terreiro. Eu e Bibiana
chegamos à porta ao mesmo tempo.
Severo estava caído. A terra seca aos
seus pés havia se tornado uma fenda aberta e nela corria um rio de
sangue.
Itamar Vieira Junior, in Torto Arado
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