Ano em que prestei o primeiro vestibular,
1977. Eu deveria escolher a carreira no formulário da Fuvest,
consciente de que o pequeno xis seria determinante para o resto da
vida. Que importância dão a um mísero rabisco...
Como sempre fui bom em matemática,
frequentei as aulas de Exatas. Mas minhas opções eram conflitantes:
engenharia agrícola, seguindo uma tradição e pressão familiar,
jornalismo e filosofia. Já tinha desistido de ser bombeiro,
caminhoneiro e jogador de futebol anos antes.
Alguém vive de filosofia, sustenta a
família, leva os filhos à Disney? Para a decepção da professora
de filosofia, Malu Montoro, que lia para a classe meus trabalhos de
lógica aristotélica e fazia a minha cabeça para me tornar um
exótico colega, escolhi engenharia.
Mesmo ciente de que matemática e
filosofia nasceram juntas, os primeiros filósofos, Tales de Mileto e
Pitágoras, eram matemáticos, sendo que o segundo chegou a definir o
mundo como uma sequência numérica; para ele, os números explicavam
tudo.
Me descreveu a amiga filósofa: “Os
filósofos estão na sua maioria sempre se arrastando
existencialmente, eles sofrem de depressão ontológica e sofrem
também de estresse metafísico.”
Me identifiquei completamente. Ou
confundia minhas aspirações com as crises existenciais da
adolescência? Fora que eu não tinha barba nem túnicas para
ingressar nessa carreira delirante.
Fui para a Unicamp estudar engenharia.
Estudar fora é a melhor maneira de sair de casa e ainda ser
financiado para romper o cordão.
Minha primeira morada foi numa pensão
perto da ferroviária. Eu dividia o quarto com dois colegas do
colégio, Cassiano, da antropologia, e Zequinha, físico-filósofo.
Passávamos as noites discutindo a origem
das coisas, debruçados sobre Heráclito, o grego que inverteu a
filosofia e afirmou que “tudo é um”, e os opostos são iguais.
Zequinha tretou com a dona da pensão.
Filósofos enlouquecem até donas de pensão. Num surto, ela ameaçou
botar fogo no sobrado, jogou querosene na escada, acendeu um fósforo
e nos avisou aos gritos que, se não saíssemos em minutos,
viraríamos cinzas. Voamos com nossas trouxas, livros e enigmas e nos
mudamos para a pensão ao lado.
Nos primeiros meses, dormimos num quarto
com seis beliches. A pensão era completa — café da manhã e
jantar inclusos. Quem servia era a filha do dono, uma moça de roupas
e unhas negras, olhar agudo e sedutor de uma existencialista
francesa, que ilustrou minhas fantasias.
A pensão só tinha um banheiro. E uma
fila matinal nele. Quantas vezes não tomei banho no tanque do
quintal, sob o frio campinense? Enfiava as pernas, depois os braços,
depois a cabeça, vigiado pela garota de unhas negras, que me
aguardava cantando, para lavar as roupas de cama.
No beliche ao lado, dormia um pedreiro
que reformava o prédio da Química do campus.
Nunca trocamos mais do que duas palavras:
“bom dia.” Descíamos juntos as ladeiras do centro. No entanto,
eu ficava no ponto de carona. Ele pegava o busão. Interessante como
a divisão de classes cria rituais próprios, que aumentam a
distância entre elas.
Calma. Não tinha virado um filósofo
marxista. Procurava ainda desvendar os textos de 2.500 anos antes e
entender os pré-socráticos, escrevendo cadernos e cadernos com
pensamentos filosóficos, me exibindo para a misteriosa garota de
unhas negras, ignorando os livros de Cálculo Diferencial e
Resistência dos Materiais.
Em algumas tardes, eu encontrava o
pedreiro trabalhando com seus colegas, já que a lanchonete da
Química era a única cujo PF vinha com ovo. Nos cumprimentávamos
educadamente. Ele já não usava a roupa de antes, mas um macacão
sujo de tinta; que provavelmente a existencialista não lavava.
À noite, ele já dormia pesado, quando
eu entrava confuso pelos paradoxos de Zenão — e enciumado, pois as
mãos com unhas negras tiravam os pratos e desprezavam as minhas.
Engenharia, como as existencialistas, era
um fardo. Comecei, como Parmênides, a desenvolver minha veia
poética. Escrevi letras de música. Tocava violão até amanhecer,
no quarto do subsolo, onde moravam dois peruanos bolsistas da
Unicamp, Miguel e Manuel, que contrabandeavam prata, cocaína e
vendiam badulaques que confeccionavam em feiras hippies do interior
do estado.
Cheguei a ir com eles a algumas feiras. E
tocava minhas músicas, de poncho peruano e com a boina no chão,
para ganhar os primeiros trocados com meus pensamentos
inconcludentes.
Acabei me mudando para o quarto dos
peruanos com Cassiano, que também aprendia violão e virou parceiro.
Havia alguns pontos de carona na saída
da cidade. Às vezes, esperávamos horas. Com sorte, em poucos
minutos, parava alguém. Um caronista, eu sabia, precisava
desenvolver conversas, pois quem dá carona quer papear até o
destino. Como um sofista, aprendem-se os mais diversos assuntos.
Atormentei muitos motoristas com paradoxos e discussões sobre a
origem do Universo.
Certa vez, parou um carro importado,
chique, com ar-condicionado. Me dei bem, pensei. Era um senhor de
idade. Provavelmente, um dos professores estrelas da universidade.
Perguntei o que ele fazia, assim que engatou a primeira. “Sou
filósofo”, respondeu. Fiquei mudo, perplexo e encantado pela
ousadia. Invejei-o.
Desisti da engenharia agrícola no final
do terceiro ano. Depois de conhecer a “vaca rolha” da ESALQ,
tradicional escola de agronomia de Piracicaba; uma vaca com um buraco
no estômago, tapado por uma rolha do tamanho de um prato de sopa,
para termos acesso direto ao aparelho digestivo da pobrezinha e
medirmos, com o uso de microscópios, a ração que era digerida e a
sobra.
Assim, em nossas fazendas, com nossas
pickups, esposas loiras e saradas, cheias de joias, jeans apertados,
botas até o joelho e chapéu country, nos perguntando se compramos
ingressos para o imperdível show de Bruno & Marrone,
distinguimos com exatidão aquilo que é digerido daquilo que é
prejuízo.
E ouvi a voz: “Vai, Marcelo, ser gauche
na vida.”
Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola
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