Meu avô se chamava Evaristo, capitão
Evaristo. Suas origens são obscuras. A pesquisa genealógica
esbarrou num tal de João de Deus que vivia lá pelas bandas de
Tiradentes. Esse João de Deus era homem religioso e bom, prova disso
sendo o fato de que ele criou um menino, filho bastardo, não se sabe
de quem. Outros afirmam o contrário, que João de Deus era na
verdade o pai do dito menino, possivelmente por uma relação
pecaminosa com alguma escrava negra. Todos sabiam que as negras eram
mais quentes. Não é descabido imaginar que uma negra de entranhas
quentes tenha sido a inspiração original para o nome de
maria-fumaça.
Sexo com a excelentíssima esposa era
coisa rara, precedido de pedidos de licença e desculpas, só para
cumprir o mandamento eclesial de gerar filhos para completar as
populações dos céus e dos infernos. Não sei se se usavam os
lençóis com um buraco bordado no meio. É possível. Esposas
excelentíssimas não gozavam. Cada coito era uma humilhação. Será
daí que surgiu a palavra “coitado”? Coito com escrava não era
pecado. Está justificado nas Sagradas Escrituras. Sara, a mulher de
Abraão, ordenou-lhe que dormisse com sua escrava Hagar. O que ele
fez obedientemente. Segundo santo Agostinho, esse coito com a escrava
foi totalmente santificado porque Abraão o fez por dever, sem
prazer. Se esse foi o caso, então, o sangue azul da família estava
misturado com sangue negro. Não bastasse que a mãe fosse da
“prateleira de baixo”. Tinha de ser uma negra.
Da descendência dessa criança bastarda
de sangue negro nasceria o menino Evaristo Alves de Azevedo, filho do
capitão Silvestre Alves de Azevedo.
Que era uma família católica não há
dúvidas. O nome Silvestre dado ao meu bisavó era o nome do santo do
dia do seu nascimento, 31 de dezembro. E é sabido que o capitão
Silvestre enviou o seu filho Evaristo para o seminário Caraça, onde
viveu interno por anos. Nas minhas fuçanças nos baús do Quarto do
Mistério encontrei uma carta assinada pelo seminarista Evaristo
Alves de Azevedo em que pedia dez tostões ao pai para comprar uma
batina nova. Felizmente ele desistiu da sua vocação sacerdotal. Se
não o tivesse feito, se tivesse vivido como um casto sacerdote, é
possível que muitas almas tivessem sido salvas do fogo do inferno
pelos sacramentos que ele teria administrado. Mas eu não teria
nascido e não estaria, neste momento, a escrever estas memórias.
A família Alves de Azevedo desenvolveu
uma inteligência comercial que a fez prosperar nos negócios — a
loja do capitão Evaristo era a mais bem sortida das redondezas —,
dando-lhe a ousadia que o levou a empreendimentos progressistas como
foi o caso da navegação do rio Grande a que já nos referimos.
Pelos indícios que possuo, concluo que a
inteligência da família do doutor Jorge, pai de minha avó, tomou
outros caminhos. O doutor Jorge não era católico. Ele considerava a
Igreja uma fonte de superstições e de atraso. Era kardecista e
respirava os ideais evolucionistas darwinianos e republicanos do
positivismo. Há testemunhos duvidosos que afirmam que ele, nos anos
em que viveu em Portugal a estudar, teria passado algum tempo na
prisão em virtude de ter-se metido em demonstrações políticas
antimonarquistas.
Tinha relações privilegiadas com a
política. Seu irmão, doutor Quintiliano, era motivo de orgulho da
família, por ter sido governador da província de Minas Gerais. Uma
das obras mais importantes da sua administração foi a construção
de um magnífico chafariz em Ouro Preto, que foi inaugurado com a
presença do imperador dom Pedro II. Se não me engano, o chafariz
ainda está lá, vertendo água.
O doutor Jorge, meu bisavô, amava as
árvores. Herdei isso dele. Colocou a sua casa no meio de um imenso
parque cheio de árvores que ele mesmo plantou. Acho que ele queria
viver isolado — suas ideias eram muito diferentes, não havia com
quem conversar.
Por vezes penso que, numa escala
evolutiva, as árvores são superiores a nós. Não sei o que o
kardecismo do doutor Jorge teria a dizer a esse respeito. Elas
permanecem tranquilas de dia e de noite, sob o sol ou sob a chuva, no
frio e no calor. São tranquilas até para morrer. Alberto Caeiro viu
nelas símbolos da felicidade e nos aconselhou a ser como elas:
“Sejamos simples e calmos como os regatos e as árvores, e Deus
amar-nos-á fazendo de nós belos como as árvores e os regatos, e
dar-nos-á verdor na sua primavera e um rio aonde ir ter quando
acabemos...”. Contemplar uma árvore é uma oração
tranquilizante.
São felizes no que são. Uma paineira
não quer se transformar em laranjeira! Se quisesse, seria uma árvore
neurótica. São felizes onde estão. Não pensam em viajar de
férias. Só viaja de férias quem está infeliz onde está.
O doutor Jorge plantou muitas árvores:
palmeiras, tipuanas, jatobás, ipês, eritrinas... Mas, dentre todas
as árvores que plantou, as mais amadas foram as magnólias, cor de
carne, pudicas, que, à semelhança de Eva no Paraíso, escondem sua
cor de carne atrás de folhas. Inutilmente, porque da sua carne sai
um perfume embriagante.
Plantou também uma mata de
jabuticabeiras, nem sei quantas... Primeiro vêm as flores brancas
perfumadas, do rés do chão até a ponta dos galhos. Depois vêm as
abelhas. Finalmente estufam-se do tronco, dos galhos, as frutas
negras, túrgidas de um leite doce que explode com um estalo dentro
da boca quando mordidas. Depois da chuva as jabuticabeiras de
bolinhas pretas faíscam ao sol. Jabuticaba é Minas Gerais...
Afirmam os kardecistas que o seu filho
doutor Augusto Silva, médico, continua a realizar até hoje o seu
ministério de curar. Foi o que me disse um motorista de táxi, em
São Paulo. Gosto de conversar com motoristas de táxi. O começo é
sempre o mesmo. “Você nasceu aqui?” “Não, nasci em Macuco,
lugarejo de Minas, perto da represa de Itutinga, tão pequeno que
ninguém conhece.” “Mas eu conheço”, respondi. “Meu irmão
foi engenheiro na construção da barragem. E minha família é de
Lavras, bem perto de Macuco.” “Lavras?”, ele perguntou
surpreso. Aí ele explicou com solenidade: “Lavras é a cidade de
um espírito de luz muito poderoso. Era médico enquanto vivo, o
doutor Augusto Silva...” . Aí eu arrematei para aumentar o seu
espanto: “O doutor Augusto Silva era meu tio...” .
A filha do doutor Jorge se chamava
Delminda. O normal era que as moças fossem educadas para o casamento
e para isso aprendessem as prendas domésticas. Se fossem de famílias
abastadas, às prendas domésticas se acrescentavam as artes, o
piano, a cítara, o bandolim, a pintura. Quando se recebiam visitas e
nos saraus musicais, os pais se orgulhavam de que as filhas tocassem
piano. Pois a Delminda, ao lado das prendas domésticas e artes que
lhe devem ter sido ensinadas, tinha interesses curiosos para uma
jovem de uma cidade do interior. Gostava das estrelas... Relata-se
que era costume seu levantar-se durante as noites para contemplar o
céu. Gostava também das tempestades. Em dias de chuva forte, raios
e trovões, quando os mais valentes ficavam com medo e rezavam a
santa Bárbara, a Delminda ia para a janela da sala admirar a chuva
que caía e os relâmpagos e seus trovões.
Rubem Alves, in O velho que acordou menino
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