terça-feira, 19 de outubro de 2021

II - Desilusões – Vãs promessas de felicidade – Dores sem tréguas e sem descanso, metamorfose do sofrimento: a miséria e o tédio – A vida é um espetáculo tragicômico, sob o reino do acaso e do erro – O Inferno de Dante e o inferno do mundo – Último alvo e último naufrágio

Enquanto a primeira metade da vida é apenas uma infatigável aspiração de felicidade, a segunda metade, pelo contrário, é dominada por um sentimento doloroso de receio, porque se acaba então por perceber, mais ou menos claramente, que toda felicidade não passa de quimera, que só o sofrimento é real. Por isso os espíritos sensatos visam menos aos prazeres do que a uma ausência de desgostos, a um estado de algum modo invulnerável. – Nos meus anos de mocidade, uma campainhada à porta causava-me alegria, porque pensava: “Bom! É qualquer coisa que sucede”. Mais tarde, experimentado pela vida, esse mesmo ruído despertava-me um sentimento vizinho do medo; dizia de mim para mim: “Que sucederá?”.
Na velhice, as paixões e os desejos extinguem-se uns após outros, à medida que os objetos dessas paixões tornam-se indiferentes; a sensibilidade diminui, a força na imaginação torna-se sempre mais fraca, as imagens empalidecem, as impressões já não aderem, passam sem deixar vestígios, os dias decorrem cada vez mais rápidos, os acontecimentos perdem a sua importância, tudo se descolora. O homem acabrunhado pela idade passeia cambaleando ou repousa a um canto, não sendo mais do que a sombra, o fantasma do seu ser passado. Vem a morte, que lhe resta para destruir? Um dia a sonolência muda-se em último sono e os seus sonhos… já inquietavam Hamlet no célebre monólogo. Creio que desde esse momento sonhamos.
Todo homem que despertou dos primeiros sonhos da mocidade, que tem em consideração a sua própria experiência e a dos outros, que estudou a história do passado e a da sua época, se quaisquer preconceitos demasiado arraigados não lhe perturbam o espírito, acabará por chegar à conclusão de que este mundo dos homens é o reino do acaso e do erro, que o dominam e o governam a seu modo sem piedade alguma, auxiliados pela loucura e pela maldade, que não cessam de brandir o chicote. Por isso, o que há de melhor entre os homens só aparece após grandes esforços; qualquer inspiração nobre e sensata dificilmente encontra ocasião de se mostrar, de proceder, de se fazer ouvir, ao passo que o absurdo e a falsidade no domínio das ideias, a banalidade e a vulgaridade nas regiões da arte, a malícia e a velhacaria na vida prática reinam sem partilha, e quase sem interrupção; não há pensamento, obra excelente que não seja exceção, um caso imprevisto, singular, incrível, perfeitamente isolado, como um aerolito produzido por uma ordem de coisas diferente daquela que nos governa. – Com respeito a cada um em particular, a história de uma existência é sempre a história de um sofrimento, porque toda carreira percorrida é uma série ininterrupta de reveses e de desgraças, que cada um procura ocultar, porque sabe que, longe de inspirar aos outros simpatia ou piedade, dá-lhes enorme satisfação, de tal modo que se comprazem em pensar nos desgostos alheios a que escapam naquele momento; – é raro que um homem no fim da vida, sendo ao mesmo tempo sincero e ponderado, deseje recomeçar o caminho, e não prefira infinitamente o nada absoluto.
Não há nada fixo na vida fugitiva: nem dor infinita, nem alegria eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resolução elevada que possa durar toda a vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos. Os minutos, os inumeráveis átomos de pequenas coisas, fragmentos de cada uma das nossas ações, são os vermes roedores que devastam tudo o que é grande e ousado… Nada se toma a sério na vida humana; o pó não vale esse trabalho.
Devemos considerar a vida como uma mentira contínua, tanto nas coisas pequenas como nas grandes. Prometeu? Não cumpre a promessa, a não ser para mostrar quanto o desejo era pouco desejável: tão depressa é a esperança que nos ilude, como a coisa com que contávamos. – Se nos deu, foi só para tornar a nos tirar. A magia da distância apresenta-nos paraísos que desaparecem como visões logo que nos deixamos seduzir.
A felicidade, portanto, está sempre no futuro ou no passado, e o presente é como uma pequena nuvem sombria que o vento impele sobre a planície cheia de sol; diante dela, atrás dela, tudo é luminoso, só ela projeta sempre uma sombra.
O homem só vive no presente, que foge irresistivelmente para o passado, e afunda-se na morte: salvo as consequências, que se podem refletir no presente, e que são a obra dos seus atos e da sua vontade, a sua vida de ontem acha-se completamente morta, extinta: deveria portanto ser-lhe indiferente à razão que esse passado fosse feito de gozos ou de tristezas. O presente foge-lhe, e transforma-se incessantemente no passado; o futuro é absolutamente incerto e sem duração… E, assim, como do ponto de vista físico, o andar não é mais do que uma queda sempre evitada, da mesma maneira a vida do corpo é a morte sempre suspensa, uma morte adiada, e a atividade do nosso espírito, um tédio sempre combatido… É preciso, enfim, que a morte triunfe, pois lhe pertencemos pelo próprio fato do nosso nascimento, e ela não faz senão brincar com a presa antes de devorá-la. É desse modo que seguimos o curso da nossa existência, com um interesse extraordinário, com mil cuidados, mil precauções, durante todo o tempo possível, como se sopra uma bola de sabão, aplicando-nos a enchê-la o mais que podemos e durante muito tempo, não obstante a certeza que temos de que ela acabará por rebentar.
A vida não se apresenta de modo algum como um mimo que nos é dado gozar, mas antes como um dever, uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; daí resulta, tanto nas grandes como nas pequenas coisas, uma miséria geral, um trabalho sem descanso, uma concorrência sem tréguas, um combate sem fim, uma atividade imposta com uma tensão extrema de todas as forças do corpo e do espírito. Milhões de homens, reunidos em nações, concorrem para o bem público, procedendo, assim, cada indivíduo em seu próprio interesse; caem, porém, milhares de vítimas para a salvação comum. Umas vezes são preconceitos insensatos, outras, uma política sutil que excita os povos à guerra; urge que o suor e o sangue da grande massa corram em abundância para levar a bom fim as fantasias de alguns, ou para expiar as suas faltas. Em tempo de paz, a indústria e o comércio prosperam, as invenções operam maravilhas, os navios sulcam os mares e transportam coisas deliciosas de todas as partes do mundo, as ondas tragam milhares de homens. Tudo está em movimento, uns meditam, outros procedem, o tumulto é indescritível.
Mas qual é o alvo de tantos esforços? Manter durante um curto espaço de tempo entes efêmeros e atormentados, mantê-los, no caso mais favorável, em uma miséria suportável e numa ausência de dor relativa que o tédio logo aproveita; depois a reprodução dessa raça e a renovação do seu curso habitual.
Os esforços sem tréguas para banir o sofrimento só têm o resultado de o fazer mudar em figura. Na origem aparece sob a forma da necessidade, do cuidado pelas coisas materiais da vida. Conseguindo-se, à custa de penas, expulsar a dor sob esse aspecto, logo se transforma e toma mil formas diferentes, segundo as idades e as circunstâncias; é o instinto sexual, o amor apaixonado, o ciúme, a inveja, o ódio, a ambição, o medo, a avareza, a doença etc. etc. Se não encontra outro acesso livre, toma o manto triste e pardo do tédio e da saciedade, e então, para combatê-la, é preciso forjar armas. Logrando-se expulsá-la, não sem combate, volta às suas antigas metamorfoses, e a dança recomeça…
O que ocupa todos os vivos e os conserva em contínua atividade é a necessidade de assegurar a existência. Mas feito isso, não sabem que mais hão de fazer. Assim, o segundo esforço dos homens é aliviar o peso da vida, tornar-se insensível, matar o tempo, isto é, fugir ao aborrecimento. Vemo-los, logo que se livram de toda a miséria material e moral, logo que sacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos o peso da existência, e considerarem como um ganho toda hora que têm conseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência, a qual se esforçam por prolongar com tanto zelo. O aborrecimento não é um mal para desdenhar: que desespero faz transparecer no rosto! Faz que os homens, que se amam tão pouco uns aos outros, se procurem com todo entusiasmo; é a origem do instinto social. O Estado considera-o como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para combatê-lo.
Esse flagelo, que não é menor que o seu extremo oposto, a fome, pode impelir os homens a todos os desvarios; o povo precisa de panem et cirsenses [pão e circo]. O rude sistema penitenciário da Filadélfia, fundado sobre o isolamento e a inatividade, faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível que mais de um condenado tem recorrido ao suicídio para fugir dele. Se a miséria é o aguilhão perpétuo para o povo, o tédio o é igualmente para os ricos. Na vida civil, o domingo representa o aborrecimento e os seis dias da semana, a miséria.
A vida do homem oscila, como um pêndulo, entre a dor e o tédio, tais são na realidade os seus dois últimos elementos. Os homens tiveram de exprimir essa ideia de um modo singular; depois de terem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e de todos os sofrimentos, que ficou para o céu? Justamente o aborrecimento.
O homem é o mais necessitado de todos os seres: não tem mais do que vontade, desejos encarnados, um composto de mil necessidades. E assim vive na Terra, abandonado a si próprio, incerto de tudo o que não seja a miséria e a necessidade que o oprime. Por meio das exigências imperiosas, todos os dias renovadas, o cuidado da existência preenche a vida humana. Ao mesmo tempo atormenta-o um segundo instinto, o de perpetuar a sua raça. Ameaçado por todos os lados pelos perigos mais diversos, tem de usar de uma prudência sempre vigilante para lhes escapar. Com passo inquieto, lançando em volta olhares cheios de angústia, segue o seu caminho lutando com os acasos e com os inimigos sem número. Assim como caminharia por entre os desertos selvagens, assim segue em plena vida civilizada; para ele, não existe a segurança:

Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis
degitur hoc aevi quod cumquest!
(Lucr. II, 15)

A vida é um mar cheio de perigos e de turbilhões que o homem só evita à força de prudência e de cuidados, embora saiba que, mesmo que consiga lhes escapar com perícia e esforços, não pode, contudo, à medida que avança, sem retardar o grande, o total, o inevitável naufrágio, a morte que parece lhe correr ao encontro: é esse o fim supremo de tão laboriosa navegação, para ele infinitamente pior que todos os perigos dos quais escapou.

Arthur Schopenhauer, in As dores do mundo

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