Do lado de fora do gabinete de Albert,
sua secretária e governanta residente, Frau Helen Dukas,
estava esperando o relógio terminar de bater a hora. Não gosta do
que acabou de ouvir Albert dizer ao telefone: “Você vai me ligar
de novo?”
Você = outra admiradora que é pura
perda de tempo.
Ela entra no gabinete, trazendo consigo o
aroma de cânfora. Faz tempo que Albert pensa em lhe dizer: “A
substância química orgânica C10H16O é desagradável.” Mas nunca
reuniu coragem para fazer isso.
Frau Dukas abre as venezianas
verdes da janela principal do gabinete com um floreio, fazendo um
barulho que pretendia ser uma reprimenda. A janela dá para os
salgueiros-chorões, bordos e olmos da rua arborizada do subúrbio
residencial.
A luz do Sol faz os olhos de Albert
lacrimejarem mais. Ele os esfrega com o dorso da mão e pisca.
Frau Dukas, austera, alta e magra,
é originária do sudoeste da Alemanha, filha de um comerciante judeu
alemão. Sua mãe era de Hechingen, a mesma cidade da segunda esposa
de Albert. Como secretária e vigia dos portões do cientista há
cerca de 25 anos, ela se dedica a proporcionar a ele uma vida
tranquila.
Seu quarto na casa da rua Mercer fica ao
lado do de Albert, do qual é separado por um banheiro. Há também
um pequeno gabinete e um quarto reservados para quando a enteada
dele, Margot, o visita. E um outro foi da irmã de Albert, Maja. Faz
quatro anos que Maja morreu.
— Com quem o senhor estava falando? —
pergunta Frau Dukas.
— Uma moça chamada Mimi Beaufort.
Gostei da voz dela. Da velha e querida Boston. Terra do feijão e do
bacalhau, onde os Lowell só falam com os Cabot e, pelo que supomos,
com os Beaufort. Famílias que só falam com Deus. Você acha que
consegue descobrir quem ela é?
— Ela lhe telefona por engano e o
senhor quer que eu descubra quem é?
— Quero. Quem nunca cometeu um erro
nunca experimentou nada de novo.
— Se me permite dizer, o senhor não
deveria perder seu tempo.
— Helen, Kreativität ist das
Resultat Verschwendeter Zeit. Criatividade é resultado do tempo
perdido. Descubra quem é essa Mimi Beaufort. Procure o nome na lista
telefônica de Greenwich, em Connecticut. E me traga uma xícara de
chocolate quente, por favor.
Albert usa chinelos surrados de couro,
sem meias. Sua camisa puída, aberta no pescoço, revela uma velha
camiseta azul.
Frau Dukas ajeita um cobertor em
volta dos pés dele.
— Nunca vi tantos cartões de
aniversário — admira-se.
— O que há para comemorar?
Aniversários são coisas automáticas. Enfim, aniversários são
para crianças. — Mais uma vez, ele secou os olhos lacrimejantes,
cujo brilho contrastava com as linhas e rugas da testa. — Estou com
75 anos. Nenhum de nós está ficando mais jovem.
Ele enche o cachimbo com fumo da lata do
Revelation e o acende. Uma nuvem de fumaça se eleva em ondas.
— Por favor, Helen, traga meu chocolate
quente.
— Tudo a seu tempo.
— O que está segurando, Helen?
Frau Dukas lhe entrega uma
fotografia de jornal mostrando a nuvem em forma de cogumelo da bomba
atômica que destruiu Hiroshima em 6 de agosto de 1945.
— Umas crianças de uma escola de
Lincoln, no Nebraska, lhe pediram que assine isto. Está disposto a
assinar para elas?
Envolto na nuvem de fumaça do cachimbo,
Albert observa a imagem, consternado.
— Se for preciso.
— Vou buscar sua xícara de chocolate —
diz Frau Dukas, como se prometesse uma recompensa.
Deixou-o sozinho para assinar a foto. A.
Einstein, 14 de março de 1954.
Em seguida, ele pega uma folha de papel e
escreve:
Cento e quarenta mil almas pereceram em
Hiroshima. Cem mil pessoas foram terrivelmente feridas. Setenta e
quatro mil pereceram em Nagasaki. Outras 75 mil sofreram lesões
fatais, por queimaduras, ferimentos e radiação gama. Em Pearl
Harbor... quantos morreram? Disseram-me que foram 2.500. O poeta
britânico Donne nos diz: “A morte de qualquer homem me diminui,
porque faço parte da humanidade; por isso, nunca procures saber por
quem os sinos dobram; eles dobram por ti.” O mundo ocidental está
satisfeito, satisfeito. Eu, não. As coisas maravilhosas que vocês
aprendem na escola são obra de muitas gerações, produzidas pelo
esforço entusiástico e pelo trabalho infinito de todos os países
do mundo. Tudo isso é posto nas mãos de vocês como sua herança,
para que possam recebê-la, honrá-la, ampliá-la e, um dia,
entregá-la fielmente a seus filhos. É assim que nós, mortais,
alcançamos a imortalidade, nas coisas permanentes que criamos em
comum.
Frau Dukas volta com o chocolate
quente. Albert coloca mais fumo no cachimbo, enquanto faz um sinal
com a mão para que ela se sente.
— Uma carta, por favor, Helen... para
Bertrand Russell. — Dita: — Concordo com seu esboço de
proposição de que a perspectiva da raça humana é sombria, em um
grau sem precedentes. A humanidade se encontra diante de uma
alternativa clara: ou pereceremos todos ou teremos de adquirir nem
que seja um pequeno grau de bom senso.
O relógio de pêndulo badala um quarto
de hora.
— Eis, portanto, o problema que lhe
apresentamos — continua Albert —, claro, pavoroso e inescapável:
daremos fim à raça humana ou deverá a humanidade renunciar à
guerra? As pessoas vão se recusar a enfrentar essa alternativa
porque é muito difícil abolir a guerra. Com minhas cordiais
saudações, Albert Einstein.
Ele tira um dos chinelos velhos, remove
uma pedrinha de granito do espaço entre dois dedos do pé e a
deposita sobre a carta de Born.
— Gostei da voz da moça. Pense na
relatividade. Quando um homem se senta com uma moça bonita por uma
hora, parece que foi um minuto. Mas ele que vá se sentar em um fogão
quente por um minuto; isso lhe parecerá mais longo do que qualquer
hora. Isso é relatividade. Mimi Beaufort. Beaufort é um sobrenome
notável.
— Por quê? — indaga Frau
Dukas, em um tom que sugere não haver nada de notável nele.
Virando-se para as janelas a fim de
ponderar sobre a luz do Sol que brincava de espalhar pontos luminosos
sobre as árvores, Albert diz:
— Significa a bela fortaleza.
A visão de um grupo de crianças negras
brincando ao sol o faz sorrir.
O líder do grupo canta:
— Mamãe está morando...
E o grupo canta:
— Está morando onde?
Fazendo uma dança para balançar os
quadris, eles cantam em uníssono:
— Ora, ela mora num lugar chamado
Tennessee.
Dê um pulo, Tenna, Tennessee.
Bem, nunca fui à faculdade,
Nunca fui à escola.
Mas, em matéria de boogie,
Sei dançar feito um doido.
É só ir pra frente, pra trás, prum
lado e pro outro.
Pra frente, pra trás, prum lado e pro
outro.
Albert se levanta com esforço e faz seu
próprio boogie-woogie. Ainda de costas para Frau Dukas, diz:
— Anote isto, por favor: “Restam
preconceitos dos quais eu, como judeu, tenho clara consciência; mas
eles não importam, se comparados à atitude dos brancos para com
seus concidadãos de tez mais escura. Quanto mais me sinto
norte-americano, mais essa situação me entristece. Só consigo
fugir da sensação de cumplicidade com ela ao falar disso
livremente.”
— Para quem devo mandar? — pergunta
Frau Dukas.
— Para mim. Para mim, Helen. Um
lembrete para mim mesmo. Agora... quero que trate o seguinte como
estritamente confidencial. — Ele suspira fundo e continua: —
Todos os meus relacionamentos pessoais foram um fracasso. Que homem
não visitaria a própria enteada morrendo de câncer? Minha primeira
esposa morreu sozinha em Zurique. Minha filha desapareceu. Não faço
ideia de onde está. Nem sei se continua viva.
— Por favor... não deixe que seu
passado o destrua.
— Meu filho... meu filho, você sabe,
Helen... meu filho Eduard está em clínicas para esquizofrênicos há
quase 25 anos. A terapia, o tratamento eletroconvulsivo, destruiu a
memória e as aptidões cognitivas dele.
— Mas não sua relação afetiva com
ele.
— Minha única relação afetiva é com
o povo judeu. Este é o meu vínculo humano mais forte. Eu disse à
rainha Isabel da Bélgica: “A estima exagerada que dedicam ao
trabalho da minha vida deixa-me muito constrangido. Sinto-me obrigado
a pensar em mim como um trapaceiro involuntário. Ich bin ein
Betrüger [Eu sou uma fraude].” Preciso de ar puro, meu fígado
está doendo.
Frau Dukas abre as janelas.
Lá fora, do rádio de um caquético
sedan Buick de quatro portas, vem o som de Doris Day cantando “Secret
Love”.
Albert faz um gesto de impaciência.
— Vá verificar a lista telefônica,
Helen.
Frau Dukas assim faz, e descobre
que a residência da família Beaufort é o Beaufort Park, em
Greenwich, no condado de Fairfield, Connecticut. Albert imagina como
Mimi Beaufort é. Sua voz certamente guarda o eterno encanto da
juventude. Ela vai se tornar uma nova amiga? Uma confidente, talvez.
Um amor secreto para lhe acalmar a alma perturbada pela idade, pelas
dores e mal-estares e por seus maus pressentimentos. Os raios de sol
caem sobre sua escrivaninha. Ele se deleita com os desenhos. Folheia
as páginas gastas da “Sonata para violino e piano em mi menor, K.
304”, de Mozart.
É uma honra ver se desdobrar tamanha
ternura, tanta pureza de beleza e verdade. Tais qualidades são
indestrutíveis. Como Mozart, ele acredita ter desvendado as
complexidades do universo, cuja essência do eterno está além da
mão do destino e da humanidade iludida. A idade nos permite sentir
essas coisas.
Ele observa as sombras bruxuleantes no
chão. Imagina ver nos desenhos o rosto de seus familiares, amigos e
pessoas queridas. Suas amizades íntimas e mais apreciadas lhe
parecem ter sido cíclicas. Um número excessivo delas evaporou.
Desde seu nascimento. Faz muito tempo. Em Ulm, às onze e meia da
manhã, na Bahnhofstrasse, 135, a casa destruída por um dos mais
violentos ataques aéreos dos Aliados, em dezembro de 1944. Ele se
lembra de ter escrito a um correspondente de cujo nome se esqueceu:
“O tempo afetou [a cidade] ainda mais do que a mim.”
Será que resta algo da antiga Ulm?,
pensa. E de meus amigos e entes queridos, aqueles que compuseram
minha vida e me formaram? A mim: O Rosto Mais Famoso do Mundo.
Como foram gentis comigo os residentes de
Ulm que pretenderam dar meu nome a uma rua! Em vez disso, os nazistas
a chamaram de Fichtestrasse, em homenagem a Fichte, cuja obra Hitler
lera e que era lido por outros nazistas, como Dietrich Eckart e
Arnold Fanck.
Depois da guerra, ela foi rebatizada de
Einsteinstrasse. A reação dele a essa notícia, enviada pelo
prefeito da cidade, sempre o faz sorrir. “Existe uma rua lá que
leva o meu nome. Pelo menos, não sou responsável pelo que vier a
acontecer nela. Acertei ao recusar os direitos de cidadão honorário
de Ulm, considerando o destino dos judeus na Alemanha nazista.”
Pega a caneta e escreve:
Tal como vocês, não há nada que eu
possa fazer para ajudar minha cidade natal. Mas posso fazer algo pela
história da minha intimidade juvenil. O paraíso religioso da
juventude foi minha primeira tentativa de me libertar dos grilhões
do “meramente pessoal”, de uma vida dominada por desejos,
esperanças e sentimentos primitivos. Lá adiante fica o mundo, em
toda a sua vastidão, existindo independentemente de nós, seres
humanos, erguendo-se à nossa frente como um imenso e eterno enigma,
ao menos parcialmente acessível à nossa inspeção e ao nosso
pensamento. A contemplação desse mundo acena como uma libertação.
Na infância, notei que muitos dos homens que eu aprendera a estimar
e admirar haviam encontrado a liberdade e a segurança íntimas ao
buscá-la. A apreensão mental desse mundo extrapessoal, no arcabouço
de nossas capacidades, apresentou-se a meu pensamento, de modo meio
consciente, meio inconsciente, como uma meta suprema. Homens de
motivação similar, do presente e do passado, bem como as percepções
que eles haviam alcançado, eram os amigos que não podiam ser
perdidos. O caminho para esse paraíso não era tão confortável e
atraente quanto o caminho para o paraíso religioso, porém
mostrou-se confiável, e nunca me arrependi de havê-lo escolhido. A
não ser, talvez, pelo fato de eu duvidar que exista um único ser
senciente, em qualquer parte do mundo, que não conheça meu rosto.
R. J. Gadney, in Aqui quem fala é Albert Einstein
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