sexta-feira, 15 de outubro de 2021

É da casa do Andrade?


(Voz de homem:)
Alô, é da casa do Andrade?
(Voz de mulher, docemente rouca, com sonoro sotaque do sul de Minas, terminando as palavras na penúltima sílaba:)
Não é, não, senhor. O senhor deve ter discado o número errado.
Desculpe. Para que número eu liguei?
(Percebe-se então que a moça tem um problema de dicção toda vez que há consoante antes do R.)
644341343.
(Sente-se a pausa de dúvida.)
Desculpe. A senhora pode repetir?
644341343.
(Silêncio do outro lado da linha. Ela estranha e diz:)
Alô?
– …Lorena?
(Silêncio. Ele não se surpreende que ela tenha se assustado, já que ele mesmo ainda está assustado com a possibilidade de estar certo.)
Quem tá falando?
Eduardo Mendes.
Meu Deus.
(Pausa longa.)
É você mesmo, Lorena?
(Suspiro.)
– …Sou. Meu Deus… Como você conseguiu meu telefone?
Não consegui. Eu tentei ligar pro Andrade, 644341373. E errei.
Meu Deus. Eduardo… Como pode? Que loucura. Faz quanto tempo? Doze, quinze anos?
(Sem titubear:)
Treze.
Como você está?
Bem. Bem. Você?
Bem também.
Esse número é de São Paulo. Você tá morando aqui?
Tô. Vim há sete anos. Casei com um paulista. Tive o Zé, que tá com três anos. Separei. Tô aqui.
Não acredito. Eu também tenho um Zé. Vai fazer quatro no mês que vem.
(Riem, desnorteados com todo o contexto.)
Que coincidência. Dois Zés. (Hesita.) Você é casado, imagino.
Assino o divórcio hoje à tarde. O Andrade é um amigo que está advogando pra mim nessa confusão toda.
Que pena, Edu. Não é fácil.
(“Edu.”)
É, mas tá tudo bem, a gente achou melhor.
Menos mau.
Menos mau.
(Silêncio.)
Minha Nossa Senhora. Que coisa. Ainda estou sem acreditar nisso tudo. Qual a probabilidade?
Eu diria que nenhuma, Lorena, se não tivesse acontecido.
Eu nunca mais soube de você.
Eu só soube que você entrou no mestrado em Belo Horizonte. E não tinha nem vinte e cinco anos, né? Sempre a garota exemplar.
(Ela riu.)
E virei doutora antes dos trinta!
Não esperaria nada diferente.
Você continua desenhando prédios, senhor engenheiro?
Quase. Hoje eu digo para desenharem prédios.
(Riram.)
Onde você tá morando?
Em Perdizes.
Tá brincando. Eu também! Me mudei com o Zé no começo da semana!
Gente! Não é possível.
Meu Deus.
Cacete. Imagina se é na mesma rua…
Impossível.
Olha, vamos fazer assim, vou contar até três, e a gente diz o nome da rua ao mesmo tempo, tá?
(Ela ria sem parar, mais de nervoso do que de graça.)
Só me falta.
1… 2… 3!
(Juntos:)
Van-der-lei!
(Silêncio.)
Não. Não dá. Vai me dizer que mora no 163 também?
Puta merda.
(Silêncio de muitos segundos.)
Sério. Tô com medo.
Você por acaso não é a moça loira da TR4 prata, é?
(Suspiro incrédulo.)
Sou.
Puta merda. Vi seu vulto na garagem há, tipo, uma hora. Ia ligar pro porteiro pra avisar que seu vidro ficou aberto.
Edu. Que que tá acontecendo?
Não sei… Não sei.
Isso não é algum tipo de brincadeira, né?
Só se for brincadeira do destino. Desce pra garagem. Eu te encontro lá.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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