(Voz de homem:)
– Alô, é da casa do Andrade?
(Voz de mulher, docemente rouca, com
sonoro sotaque do sul de Minas, terminando as palavras na penúltima
sílaba:)
– Não é, não, senhor. O senhor deve
ter discado o número errado.
– Desculpe. Para que número eu liguei?
(Percebe-se então que a moça tem um
problema de dicção toda vez que há consoante antes do R.)
– 644341343.
(Sente-se a pausa de dúvida.)
– Desculpe. A senhora pode repetir?
– 644341343.
(Silêncio do outro lado da linha. Ela
estranha e diz:)
– Alô?
– …Lorena?
(Silêncio. Ele não se surpreende que
ela tenha se assustado, já que ele mesmo ainda está assustado com a
possibilidade de estar certo.)
– Quem tá falando?
– Eduardo Mendes.
– Meu Deus.
(Pausa longa.)
– É você mesmo, Lorena?
(Suspiro.)
– …Sou. Meu Deus… Como você
conseguiu meu telefone?
– Não consegui. Eu tentei ligar pro
Andrade, 644341373. E errei.
– Meu Deus. Eduardo… Como pode? Que
loucura. Faz quanto tempo? Doze, quinze anos?
(Sem titubear:)
– Treze.
– Como você está?
– Bem. Bem. Você?
– Bem também.
– Esse número é de São Paulo. Você
tá morando aqui?
– Tô. Vim há sete anos. Casei com um
paulista. Tive o Zé, que tá com três anos. Separei. Tô aqui.
– Não acredito. Eu também tenho um
Zé. Vai fazer quatro no mês que vem.
(Riem, desnorteados com todo o contexto.)
– Que coincidência. Dois Zés.
(Hesita.) Você é casado, imagino.
– Assino o divórcio hoje à tarde. O
Andrade é um amigo que está advogando pra mim nessa confusão toda.
– Que pena, Edu. Não é fácil.
(“Edu.”)
– É, mas tá tudo bem, a gente achou
melhor.
– Menos mau.
– Menos mau.
(Silêncio.)
– Minha Nossa Senhora. Que coisa. Ainda
estou sem acreditar nisso tudo. Qual a probabilidade?
– Eu diria que nenhuma, Lorena, se não
tivesse acontecido.
– Eu nunca mais soube de você.
– Eu só soube que você entrou no
mestrado em Belo Horizonte. E não tinha nem vinte e cinco anos, né?
Sempre a garota exemplar.
(Ela riu.)
– E virei doutora antes dos trinta!
– Não esperaria nada diferente.
– Você continua desenhando prédios,
senhor engenheiro?
– Quase. Hoje eu digo para desenharem
prédios.
(Riram.)
– Onde você tá morando?
– Em Perdizes.
– Tá brincando. Eu também! Me mudei
com o Zé no começo da semana!
– Gente! Não é possível.
– Meu Deus.
– Cacete. Imagina se é na mesma rua…
– Impossível.
– Olha, vamos fazer assim, vou contar
até três, e a gente diz o nome da rua ao mesmo tempo, tá?
(Ela ria sem parar, mais de nervoso do
que de graça.)
– Só me falta.
– 1… 2… 3!
(Juntos:)
– Van-der-lei!
(Silêncio.)
– Não. Não dá. Vai me dizer que mora
no 163 também?
– Puta merda.
(Silêncio de muitos segundos.)
– Sério. Tô com medo.
– Você por acaso não é a moça loira
da TR4 prata, é?
(Suspiro incrédulo.)
– Sou.
– Puta merda. Vi seu vulto na garagem
há, tipo, uma hora. Ia ligar pro porteiro pra avisar que seu vidro
ficou aberto.
– Edu. Que que tá acontecendo?
– Não sei… Não sei.
– Isso não é algum tipo de
brincadeira, né?
– Só se for brincadeira do destino.
Desce pra garagem. Eu te encontro lá.
Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor
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