terça-feira, 5 de outubro de 2021

As mulheres pregam muitas peças

Madame Hortência, embriagada, os cabelos em desordem, fechara seus olhos, tantas vezes beijados. O sono a havia levantado e levado para as grandes cidades do oriente — para os jardins fechados, os haréns obscuros, ao lado dos paxás amorosos. Ela fazia atravessar os mares e ela se via pescando. Havia lançado a linha e pescara quatro grandes couraçados.
Banhada, refrescada pelo mar, a velha sereia sorria em seu sono, feliz.
Zorba entrou, balançando seu bastão.
Ela está dormindo? — disse ele ao vê-la. — está dormindo, a miserável?
Sim — respondi. — foi raptada pelo Voronoff que rejuvenesce os velhos, Zorba paxá, o sono. Agora ela está com vinte anos, e passeia por Alexandria, Beirute...
Que vá ao Diabo esta velha porca! — rosnou Zorba, e cuspiu no chão. — veja como ela sorri! Vamos embora, patrão!
Enfiou seu barrete e abriu a porta.
Comer como porcos e depois partir deixando-a sozinha! — disse eu. — isso não se faz!
Ela não está sozinha coisa nenhuma — berrou Zorba. — ela está com Suleiman Paxá, você não vê? Ela está no sétimo céu, essa mulher danada! Vamos, vamos embora!
Saímos para o ar frio. A lua vogava no céu sereno.
Ah! As mulheres! — disse Zorba com desprezo. — Bah! Mas, não é culpa delas, é nossa: dos desmiolados, dos malucos, dos Suleimans, dos Zorbas!
E depois de alguns instantes:
E nem mesmo é culpa nossa — acrescentou, furioso. — é culpa de um outro só, do grande Desmiolado, o Maluco, o grande Suleiman Paxá... você sabe quem ele é!
Se ele existe — respondi. — e se não existir?
Então, estamos fritos! Por muito tempo caminhamos em grandes passadas, sem falar.
Zorba certamente ruminava ideias negras, pois a cada momento batia no calçamento com seu bastão e cuspia.
Subitamente, virou-se em minha direção:
Meu avô... que ele repouse em paz — disse ele, — conhecia bem as mulheres. Ele gostava muito delas, o infeliz, e elas lhe pregaram muitas peças. Ele me dizia: “Meu pequeno Alexis, com minha benção, vou-lhe dar um conselho: desconfia das mulheres. Quando o Bom Deus quis criar as mulheres com uma costela de adão, o Diabo se transformou em serpente e no momento preciso pulou em cima e surrupiou a costela. O bom Deus se precipita, mas o Diabo escorrega entre seus dedos deixando apenas os chifres. “Na falta da roca, disse o bom Deus consigo mesmo, a boa dona de casa fia com a colher. Pois bem, vou fazer a mulher com os chifres do Diabo!” E ele fez, para nossa infelicidade, meu pequeno Alexis! E agora, quando nos encostamos em uma mulher, estamos afagando os chifres do demônio! Desconfie dela, meu garoto! E foi ainda a mulher que roubou a maçã do paraíso e que a enfiou no seu decote. Diabo! Se você comer essas maçãs, infeliz, você está perdido. Que conselho você quer que eu lhe dê, minha criança? Faça o que quiser!” foi isso que me disse meu falecido avô, mas isso não me deu mais juízo.
Tomei o mesmo caminho que ele, e cá estou.
Atravessamos apressadamente a aldeia. O luar era inquietante.
Imagine se você, tendo-se embriagado e saindo para tomar um pouco de ar, encontrasse o mundo bruscamente mudado. As estradas se haviam transformado em rios de leite, as depressões e os barrancos transbordavam de cal, as montanhas se cobriam de neve. Suas mãos, seu rosto, seu pescoço fosforescentes como um ventre de vaga-lume.
Como um medalhão redondo, exótico, a lua estava pendurada em seu peito.
Andávamos com passos vivos, em silêncio. Embriagados pelo luar, embriagados pelo vinho, mal sentíamos os pés tocarem a terra.
Atrás de nós, na aldeia adormecida, os cães haviam subido aos telhados e uivavam queixosamente, com os olhos fixos na lua. Dava-nos vontade, sem razão, de espichar o pescoço e uivar também...
Passávamos agora diante do jardim da viúva. Zorba parou. O vinho, a comida farta, a lua haviam perturbado sua cabeça. Estendeu o pescoço e, com sua voz grossa de jumento, se pôs a zurrar um dístico impudico que, na sua exaltação, improvisou no momento:
Como eu amo seu belo corpo, da cintura até embaixo
Ele recebe a sua enguia viva e a deixa inerte de só golpe
Mais um chifre do demônio, está aí! — disse ele. — Vamos embora, patrão!
O dia ia nascer quando chegamos ao barracão. Joguei-me em minha cama, exausto. Zorba se lavou, acendeu o fogareiro e fez café.
Sentou-se de pernas cruzadas no chão, diante da porta e pôs-se a fumar pacatamente, o corpo ereto, imóvel, olhando o mar. Seu rosto estava grave e concentrado. Parecia uma pintura japonesa de que eu gostava: o asceta sentado de pernas cruzadas, envolvido numa roupagem cor-de-laranja; seu rosto reluzia como madeira dura finamente esculpida, enegrecida pelas chuvas; o pescoço bem ereto, sorridente, sem medo, ele olha diante de si a noite obscura...
Olhava Zorba à luz da lua e admirava a arrogância e simplicidade com que ele se ajustava ao mundo, como seu corpo e sua alma formavam um todo harmonioso, e todas as coisas, mulheres, pão, água, carne, osso, se uniam alegremente com sua carne e viravam Zorba. Jamais eu vira um entendimento tão amigável entre um homem e o universo.
A lua caía em direção ao poente, toda redonda, de um verde pálido. Uma inexprimível doçura se espalhava sobre o mar.
Zorba jogou seu cigarro, estendeu o braço, remexeu num cesto, tirou de lá cordões, carretéis e pequenos pedaços de madeira, acendeu a lamparina de azeite e se pos, ainda uma vez, a fazer experiências para o teleférico. Debruçado sobre seu brinquedo primitivo, ele estava mergulhado em cálculos certamente muito difíceis, pois de instante a instante coçava furiosamente a cabeça e praguejava.
De repente fartou-se. Deu um pontapé e o teleférico desabou.

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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