sábado, 23 de outubro de 2021

Arara bêbada

Seria um donzel até ganhar a confiança de sua bela.
Você é loira natural?
O doutor não vê?
A fama da loira é de fria. Só que não acredito.
A loira não é feito a morena.
A morena é mais carinhosa. Você não é católica, é?
Sou calvinista.
Calvinista, ai, de rostinho abrasado na mesma hora.
A religião moderna não faz, assim, da virgindade um cavalo de batalha. A moça, sendo direita, pode ter experiência. Autorizada pelo pastor e conhecer os prazeres da vida.
Sabia que os turistas acham uma graça em nosso conceito de virgindade?
Nunca soube.
Você é temperamento calmo ou nervoso?
Sou calma.
Tem os atributos da nervosa; ainda não sabe que é. Suas medidas são perfeitas. Não é você que joga vôlei?
É, sim.
Gostaria de a ter visto de calção. Joga bem?
Sorriso acanhado no canto do lábio. Brinco de fantasia na orelha. Dente miúdo, o da frente escurinho. Mãe do céu, a barra da saia rendada aparecendo.
O vôlei não deixa a perna musculosa?
Não, o esforço é com o braço. Bicicleta deixa. Uma colega tem perna assim, de tanto pedalar.
Moça conhecida?
Não do senhor.
Suas formas, pelo que vejo, são ideais. Qual é o manequim?
Quarenta e quatro em cima. Depois alarga para quarenta e seis.
De busto?
Noventa e três.
O herói fechou o olho: Ai, que beleza! Ai, que bom, noventa e três!
De quadris?
Pouco mais.
Noventa e cinco?
É.
Ó, Deus do céu, noventa e cinco!
Sentadinha, bem composta. Sem cruzar o joelho nem uma vez. Ai, se ela erguesse a saia... só um pouquinho.
Não é perseguida na rua? Tão apeti... bonitinha. Como é que se defende dos piratas? Ora essa, pirata – é gíria de meu pai.
O que não sei é a medida da coxa.
A palavra coxa uma laranja inteira na boca.
De tornozelo é vinte e um.
Uma perfeição da mulher é a perna. Mais branca do joelho para cima?
Baixou os olhos, vermelhinha:
É.
Muito mais?
Quem me dera ser mulher – não faria mais que adorar no espelho as minhas prendas.
Você tem alguma experiência?
Deus me livre!
Nervosa, afastou o cabelo do olho piscante. Agitado, o peitinho estalava os botões da blusa – não há peso mais doce que um seio maduro na concha da mão.
Você é fria?
Nem uma é fria se você lhe der três mordidas na nuca.
É tarde. Preciso ir. Até amanhã, doutor.
Assustei a bichinha, fugiu pela porta aberta. Ai de mim, quem ouve, quem atende o soluço da arara bêbada?

Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba

Nenhum comentário:

Postar um comentário