domingo, 10 de outubro de 2021

Amor entre livros

No Canecão? Hoje não dá, meu chuchuzinho. Tou afundado no Stokoe, uma curtição tremenda. O quê? Semiotics and Human Sign Languages. É isso aí. Te telefono amanhã, tá?
Sábado passado você já não pôde sair, por causa de um tal Catichico…
Catichico, não. Katicic, com k. Eu tinha de atacar de Katicic lá no Centro. O Lopes veio pra cima de mim com o Kramsky, então eu derrubei ele com o Katicic.
Derrubou como? Você bateu no Lopes?
Não é nada disso, anjo. O Lopes apareceu muito pimpão mostrando The Word as a Linguistic Unit, do Kramsky, gabando que era a última palavra em novidade. Então eu corri à d. Vana e…
Esse cara está hospedado com d. Vana?
Que hospedado coisa nenhuma, bem. É livro, entende? Um livro do Katicic chamado A Contribution to the General Theory of Comparative Linguistic. Comprei ele na livraria de d. Vana, por sinal que ela me disse: “É tão caro, não vale a pena comprar”, d. Vana é assim, fica com pena da gente gastar o dinheiro com os livros de sua livraria. Mas isso não vem ao caso. Trouxe o Katicic e pá! Atirei na cara do Lopes a teoria do Katicic.
Deu coluna do meio?
Um a zero. O Lopes não conhecia o Katicic, a turma também não, e daí, o Kramsky já tá meio superado. Eu soube que ano passado o Magalhães já tinha citado ele em Atibaia. E o Magalhães não é lá muito atualizado. Imagine você que ele ainda cita Stratificational Grammar, do Sampson! Sampson não é mais autor que se possa citar. Sampson anda muito por baixo.
Que que ele fez para andar por baixo?
Nada. Exatamente isso. O Sampson não fez nadinha. Ficou na Stratificational Grammar. Impressionou, abafou, depois calou. É o que me garantiu o Azevedo, que foi vidrado no Sampson, depois enjoou. O Azevedo diz que no livro dele o que vale é o título.
Querido, você promete que semana que vem combina um programa comigo?
Ah, isso prometo sim. Tá prometido. Quer dizer, fica dependendo de um papo meu com o Rogério.
Que é que o Rogério tem com os nossos programas?
Ele ficou de me arranjar o Pike, de que eu preciso muito para a tese que estou preparando. A tese para aquele simpósio que vai haver em Campina Grande, já contei a você, em agosto.
E daí?
Daí, que o Rogério ainda não acabou de fichar o Pike, e se ele acabar até domingo, segunda-feira me passa o livro. Tenho de passar a semana inteira estudando o Pike.
Sábado também?
Acho que o Pike vai me absorver até sexta-feira. Você não faz ideia, é um troço da maior importância, presta atenção no título: Language in Relation to the Structure of Human Behavior. Como é que eu posso perder uma coisa dessas, coração?
Você não gosta de mim.
Gosto milhões, gosto trilhões, amor. Mas ou eu pego logo o Pike enquanto os outros não avançam nele (o Rogério é camarada, o Rogério é um cara que não existe) ou eu sacrifico minha atuação em Campina Grande. Você quer me ver desmoralizado em Campina Grande, diz, você quer?
Quero sair com você.
Eu também quero sair com você, mas será que você não percebe que os interesses da cultura sobrelevam nossos prazeres pessoais, e que o amor é sobretudo uma forma de compreensão?
Você não me gosta, você gosta é desses bichos esquisitos, sei lá.
Não diz uma coisa dessas, amorzinho. Você está em tudo que eu faço, tudo que eu penso. Ainda ontem estava lendo o Ollen, Coding Information in Natural Languages, e sua imagem aflorava em cada página, quase em cada palavra. Baralhei tudo, acabei grilado.
Mentira.
Mentira não, te juro.
Nunca hei de me esquecer de suas férias de 72…
Que eu dediquei a Lévi-Strauss? Que é que eu podia fazer, my love, se a patota gamou nele e eu tinha que entrar na jogada? Olha que eu desisti de uma semana Barthes por tua causa; que deixei de me inscrever num curso sobre Derrida e Greimas para te acompanhar no festival de cinema durante uma semana. Por você eu faço tudo. Mas deixa eu curtir o meu Stokoe, deixa!
Adeusinho, viu? Quando acabar de ler esses chatos, telefone para as Bahamas e pergunte se eu cheguei lá!

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

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