Recentemente, a psicóloga americana
Tania Lombrozo, pesquisadora da Universidade da Califórnia, em
Berkeley, publicou um estudo com sua aluna de doutorado Sara
Gottlieb, em que perguntaram a um grupo de pessoas “se seria
possível que a ciência, um dia, explicasse vários aspectos da
mente humana, da percepção visual à perda de memória e o amor”.
Em média, o estudo mostrou que as pessoas julgam que certos tipos de
fenômenos mentais, como a percepção visual ou o tato, “são bem
mais tratáveis por uma metodologia científica do que outros, como
sentir orgulho ou amor à primeira vista”, escreveu Lombrozo.
De acordo com os participantes, a linha
divisória entre o que a ciência pode ou não explicar é definida
pela noção de que certos fenômenos mentais, como a devoção
religiosa ou a tomada de decisões complexas, requerem um nível
maior de introspecção e subjetividade. Incidentalmente, as mesmas
que nos separam de outros animais capazes de uma percepção
sensorial do mundo e até de algum nível de emotividade. Ou seja, as
características mentais que nos definem como humanos são as que
dificultam a missão da ciência. “Esses achados não nos dizem o
que a ciência pode ou não explicar”, escreveu Lombrozo, “mas o
que as pessoas acreditam que a ciência possa ou não explicar.”
O estudo, portanto, aponta para a
seguinte questão: “Se não a ciência, o que as pessoas acham que
explica a mente humana?” Esse é um ponto essencial, que merece
maior escrutínio. Talvez o problema comece com o uso da palavra
“explicar”. Será que a mente humana é explicável? Este é um
problema antigo. Já em 1848, o grande físico inglês John Tyndall
discursou sobre essa questão numa apresentação para a Seção de
Física da Associação Britânica para o Avanço da Ciência.
Traduzo o texto com comentários maiores
em meu livro A ilha do conhecimento: A passagem da física do cérebro
aos fatos da consciência é impensável. Certamente, um pensamento e
uma correspondente ação molecular ocorrem simultaneamente. Mas não
temos um órgão intelectual, ou mesmo qualquer traço deste órgão,
que nos permite passar de um processo ao outro. As duas ações
aparecem juntas e não sabemos por quê.
Mesmo se nossas mentes e sentidos fossem
expandidos e fortalecidos de modo a permitir que víssemos e
sentíssemos os detalhes das moléculas em ação no cérebro; mesmo
se pudéssemos seguir seus movimentos e agrupamentos, suas descargas
elétricas, e se, ao mesmo tempo, tivéssemos um conhecimento íntimo
dos estados de pensamento e emoção correspondentes a essas ações,
ainda assim não teríamos avançado na solução do problema. Como
esses processos físicos são conectados com o funcionamento da mente
consciente? O abismo entre as duas classes de fenômenos continuaria
sendo intelectualmente intransponível.
Em outras palavras, podemos identificar a
atividade fisiológica que corresponde a uma emoção qualquer,
localizando-a em uma ou mais áreas do cérebro. Podemos identificar
os neurônios em ação, e até mesmo as moléculas que fluem de um
ponto a outro quando sentimos a emoção. Mas esse tipo de descrição
científica dos fenômenos em torno de uma emoção não ilumina a
emoção propriamente dita. Algo fica faltando, um lapso na
argumentação que é incapaz de conectar os fenômenos
físico-químicos e a experiência inefável da emoção em si. E não
precisa ser algo tão complexo quanto o amor ou uma experiência
religiosa.
Chutar uma pedra também funciona, já
que é possível localizar as regiões do cérebro associadas com a
dor, mas não como a ação desses neurônios específicos faz com
que possamos sentir dor ou, em certos casos, ter lágrimas nos olhos.
(O mesmo vale para membros fantasmas.) Isso é o que filósofos como
David Chalmers e Colin McGinn chamam do Problema Difícil da
Consciência.
Um dos obstáculos que encontramos ao
aplicar a metodologia científica convencional ao problema da mente é
que emoções são difíceis de “objetificar”, ou seja, de isolar
“do resto”. Quando chutamos uma pedra, não é apenas o cérebro
que está envolvido: a dor é uma experiência que une corpo e mente
de forma inseparável, iniciada no ponto de contato, capaz de fazer
nossos olhos lacrimejarem, mas que é orquestrada no cérebro. O amor
é semelhante.
Podemos sentir a emoção dele no corpo,
os hormônios acelerando o coração e o corpo exalando feromônios.
Mas amar alguém é algo que transcende uma descrição hormonal.
Existe tanto uma dimensão fisiológica ligada à experiência do
amor quanto algo único, pessoal e subjetivo, algo que não
conseguimos objetificar. E o que a ciência não consegue
objetificar, tem problema em descrever. O estudo de Lombrozo e o
eloquente discurso de Tyndall expressam a intuição de que uma
abordagem estritamente reducionista deixa de capturar algo essencial.
Não é que a ciência jamais poderá explicar a mente humana, ou que
o problema vem de não podermos sair de nossas mentes para
contemplá-las objetivamente.
O problema é que uma abordagem de causa
e efeito localizada, de neurônios específicos conectados por
ligações sinápticas com seus vizinhos, não captura a complexidade
multidimensional do que acontece. E, mesmo com ela, a passagem do
fenômeno à emoção continua misteriosa. Temos enorme dificuldade
em qualificar como a físico-química que ocorre ao nível neuronal
se transforma numa emoção específica. Talvez seja possível algum
progresso se, um dia, formos capazes de criar máquinas com um nível
rudimentar de autoconsciência, cujo comportamento não se reduz a
seguir instruções num programa, como fazem os computadores atuais.
Se pudéssemos observar a emergência
dessas mentes no ato, talvez aprendêssemos alguma coisa sobre as
nossas. Mas estamos ainda longe de inventar esse tipo de máquina.
Continuamos, tal como Tyndall e seus colegas vitorianos,
profundamente ignorantes sobre como ocorre a passagem da
físico-química do cérebro aos fatos e emoções subjetivas da
consciência.
Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul
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