O homem que quer ser Deus: Frankenstein aos 200 anos

Em meados do século XIX, o naturalista americano Ralph Waldo Emerson escreveu em seu ensaio Natureza: “O homem é um deus em ruínas.” Quando nossos antepassados contemplaram pela primeira vez a dimensão do divino – e isso pode ter ocorrido ainda antes do Homo sapiens, com os neandertais –, causaram uma ruptura entre a condição humana e o eterno. Desde então, temos consciência de nossa mortalidade, e o sofrimento que vem da perda de entes queridos tem sido nossa bênção e nossa maldição.
Em 1818, Mary Shelley publicou a primeira edição de seu romance gótico Frankenstein, ou o Prometeu Moderno. Com apenas 21 anos, jamais poderia imaginar que sua obra se tornaria uma das mais famosas na história da literatura. Desde a sua publicação, já são mais de trezentas edições do romance e ao menos noventa filmes inspirados por ele, fora inúmeros livros e ensaios acadêmicos. A origem do livro é quase legendária.
Numa noite tempestuosa de verão, em junho de 1816, Mary Shelley, seu marido Percy Bysshe Shelley, um brilhante escritor com ideias avançadas para o seu tempo, e o seu amigo e grande poeta Lord Byron estavam numa mansão às margens do Lago Genebra, na Suíça, impressionados com a força da Natureza. Para passar o tempo enquanto os raios caíam, pensaram numa competição: venceria quem escrevesse a história mais macabra.
A morte parecia perseguir a jovem Mary Shelley. Em março de 1815, perdeu a filha apenas algumas semanas após o parto. A perda do bebê traumatizou Mary profundamente, que sofria com visões do bebê morto. Num sonho, viu a filha ressuscitar após ser massageada vigorosamente em frente ao fogo da lareira. No romance Frankenstein, a massagem é substituída por correntes elétricas passando pelo corpo. Shelley havia lido sobre os experimentos de Luigi Galvani e Alessandro Volta, explorando a conexão entre a eletricidade e a contração muscular. Usando a ciência de ponta de sua época, escreveu um conto caucionário, que explora os perigos da relação entre a ciência e o poder. (O leitor interessado pode consultar meu livro Criação imperfeita, onde, nos capítulos 37 e 38, conto essa história em detalhe.)
A ciência pode ir longe demais na busca pelo conhecimento? Eis o que Shelley escreveu no prefácio da terceira edição de sua obra, publicada em outubro de 1831: Vi o pálido estudante das artes insólitas ajoelhado perante a coisa que havia criado.
Vi o fantasma hediondo deitado e, após a ação de algum engenho poderoso, mostrar sinais de vida, movendo-se com dificuldade, semivivo. Minha história tem que aterrorizar o leitor, pois é supremamente terrível o efeito de qualquer atividade humana que tente zombar do grandioso mecanismo do Criador.
O sucesso apavoraria o artista, que abandonaria sua criação medonha, esperando que, sozinha, a pequena centelha de vida que lhe dera se apagaria. O cientista foi longe demais em sua invenção, “zombando” do poder divino ao tentar recriar a vida: o homem tentando ser deus. Ao escrever a obra, Shelley parece buscar uma espécie de pró-cura, a cura emocional através da busca, meditando sobre a morte da filha, abandonando a esperança de trazê-la de volta à vida através de alguma intervenção científica. A mensagem é clara: a morte tem que ser aceita como sendo final; a criatura ressuscitada artificialmente não é humana, habitando uma estranha realidade entre o viver e o não viver, ao mesmo tempo poderosa como um deus e profundamente solitária, abandonada pelo seu criador. (E não é esta a condição humana?)
Avançando duzentos anos, a ciência de ponta da nossa época combina a eletricidade, a tecnologia digital e a genética. Muito mudou desde Galvani e Volta. Mas não a esperança de muitos de que a ciência poderá, um dia, driblar a morte, criando uma espécie de imortalidade, transcendendo a fragilidade do corpo. Os transumanistas – pessoas que buscam criar um ciborgue, um híbrido entre o humano e as tecnologias – acreditam que isso ocorrerá em breve.
Possivelmente, por meio da clonagem genética, ou numa transferência da informação que existe em seu cérebro – capturada no arranjo de seus neurônios e de suas conexões sinápticas – para uma máquina capaz de “reacendê-lo”, por assim dizer, tornando você, sua essência, numa espécie de criatura digital que poderá passar de máquina em máquina como um programa de computador: a versão digital da Ressurreição! O inventor e autor Ray Kurzweil prevê a chegada da “Singularidade – o dia em que máquinas inteligentes sobrepujarão os humanos – em torno de 2040. Para tal, Kurzweil extrapola a taxa de crescimento atual da capacidade de processamento de dados em computadores, concluindo que, em breve, computadores poderão simular o cérebro humano.
Com isso, prevê a emergência de uma consciência digital, a chegada da Singularidade. A extrapolação de Kurzweil é bem superficial, dado que não podemos prever o avanço da tecnologia como se fosse uma lei da Natureza. Não temos, também, a menor ideia do que significa transferir a informação armazenada no cérebro de uma pessoa para uma máquina, ou se esse tipo de operação faz sentido. Pouco sabemos sobre o consciente humano, ou se pode ser decodificado como informação. Ainda bem. Mary Shelley escreveu sobre os perigos de estender a ciência a domínios em que temos pouco, ou nenhum, controle de seus produtos.
Victor Frankenstein arrependeu-se do que criou, e o livro termina tragicamente. A pesquisa científica é irreversível. Ideias não podem ser apagadas por completo, mesmo quando têm consequências éticas terríveis. Alguém, ou algum grupo, irá explorá-las para seu próprio benefício, mesmo se em detrimento de outros. Assim é a natureza humana. Talvez o melhor modo de celebrar o bicentenário de Frankenstein seja criando uma organização internacional com a missão de garantir salvaguardas que controlem esse tipo de pesquisa, incluindo a modificação intencional do genoma humano. Por exemplo, a nova tecnologia conhecida como CRISPR, capaz de editar a ação de genes específicos. Como muitas inovações científicas, essa tecnologia tem enorme potencial, tanto para o bem (na cura de doenças genéticas) como para o mal (na criação de animais e mesmo de semi-humanos com características diversas ou de bebês por design).
Em nível mais extremo, em princípio ao menos, CRISPR é capaz de modificar a espécie humana como um todo, já que a modificação no genoma passaria para a prole. Seria a vingança final de Frankenstein, a espécie humana criando seu próprio fim. Considerando, também, a possibilidade e a ameaça da inteligência artificial à nossa existência, como vimos no ensaio “O futuro das mentes e das máquinas que pensam”, não é à toa que a obra de Mary Shelley continua sendo tão influente. Todos deveriam ler e assimilar suas lições. Lembre-se do que aconteceu com Prometeu.

Marcelo Gleiser, in O caldeirão azul

A trilha dos ninhos de aranha | 2

No quarto da irmã, se olhar daquele jeito, sempre parece haver neblina; uma tira vertical cheia de coisas com a ofuscação da sombra em volta, e tudo parece mudar de tamanho conforme o olho se aproxima ou se afasta da fresta. É como olhar através de uma meia de mulher, e também o cheiro é o mesmo: o cheiro da sua irmã, que começa para lá da porta de madeira e que talvez emane daquelas roupas amarrotadas e daquela cama só ajeitada — uma esticada nos lençóis, sem sequer arejá-los.
A irmã de Pin sempre foi desleixada com os afazeres da casa, desde menina: Pin chorava bastante no colo dela, quando criança, com a cabeça cheia de crostas, e então ela o deixava na mureta do lavadouro e ia pular com os moleques nos retângulos traçados com giz pelas calçadas. De vez em quando voltava o navio do pai deles, e dele Pin só lembra os braços, grandes, nus, que o erguiam no ar, fortes braços marcados por veias escuras. Mas desde que a mãe deles morreu, suas vindas foram se tornando cada vez mais raras, até que ninguém mais o viu; dizia-se que ele tinha outra família numa cidade além do mar.
Agora, para morar, mais que um quarto Pin tem um quartinho de despejo, uma casinha de cachorro do outro lado de uma divisória de madeira, com uma janela que mais parece uma fenda, de tão estreita e alta que é, e profunda na inclinação do muro da velha casa. Do outro lado há o quarto da sua irmã, filtrado pela fresta da divisória, fresta de deixar os olhos vesgos de tanto girá-los para olhar tudo em volta. A explicação de todas as coisas do mundo está lá, atrás daquela divisória. Pin passou horas e horas ali, desde menino, e ali deixou seus olhos afiados feito pontas de alfinete; tudo o que acontece lá dentro ele sabe, embora a explicação ainda lhe escape e Pin acaba se enrolando toda noite na sua caminha, abraçando seu próprio peito. Então as sombras do quartinho de despejo se transformam em sonhos estranhos, de corpos se perseguindo, se batendo e se abraçando nus, até alguma coisa grande e quente e desconhecida chegar, e dominá-lo, a ele, Pin, e acariciá-lo e retê-lo no próprio calor, e isso é a explicação de tudo, um chamado longínquo de felicidade esquecida.
Agora o alemão anda pelo quarto de camiseta, com os braços rosados e gorduchos feito coxas, e de vez em quando fica em foco na fresta; a certa altura também dá para ver os joelhos da irmã rodando no ar e se metendo debaixo dos lençóis. Pin agora tem de se contorcer para saber onde vai ser deixado o cinturão com a pistola; está lá pendurado no espaldar de uma cadeira como uma fruta estranha e Pin gostaria de ter um braço tão fino quanto seu olhar para fazê-lo passar pela fresta, apanhar a arma e puxá-la para si. Agora o alemão está nu, de camiseta, e ri: sempre ri quando está nu, porque no fundo sua alma é pudica, de moça. Pula na cama e apaga a luz; Pin sabe que vai passar um pouco de tempo assim na escuridão e em silêncio, antes que a cama comece a gemer.
A hora é esta: Pin deveria entrar no quarto, descalço e de quatro e puxar o cinturão da cadeira sem fazer barulho: tudo isso não para fazer uma brincadeira e depois rir e zombar, mas para alguma coisa séria e misteriosa, dita pelos homens da taberna, com um reflexo opaco no branco dos olhos. No entanto, Pin gostaria de ser sempre amigo dos adultos, e que os adultos sempre brincassem com ele e o fizessem sentir íntimo. Pin adora os adultos, adora provocá-los, os adultos fortes e tolos, dos quais conhece todos os segredos, também adora o alemão, e agora este será um fato irreparável; talvez não poderá mais brincar com o alemão, depois disso; e também com os companheiros da taberna vai ser diferente, vai haver alguma coisa que o ligará a eles, da qual não se poderá rir e sobre a qual não se poderão dizer coisas obscenas, e eles olharão para ele sempre com aquela linha reta entre as sobrancelhas e lhe pedirão, em voz baixa, coisas cada vez mais estranhas. Pin gostaria de se deitar na sua caminha e ficar de olhos abertos e fantasiar, enquanto do outro lado o alemão bufa, e a irmã faz uns barulhos como se sentisse cócegas debaixo das axilas; fantasiar bandos de garotos que o aceitam como líder, porque ele sabe tantas coisas mais que eles, e todos juntos se revoltarem contra os adultos e bater neles e fazer coisas maravilhosas, coisas pelas quais até os adultos ficassem obrigados a admirá-lo e a querê-lo como líder, e ao mesmo tempo a gostar dele e a acariciar sua cabeça. Mas, não, ele tem de se mexer sozinho na noite, através do ódio dos adultos, e roubar a pistola do alemão, coisa que os outros garotos que brincam com pistolas de lata e espadas de madeira não fazem. Sabe-se lá o que diriam se amanhã Pin fosse ter com eles, e revelando-a aos poucos lhes mostrasse uma pistola de verdade, brilhante e ameaçadora e que parece estar a ponto de disparar sozinha. Talvez eles tivessem medo e Pin também talvez tivesse medo de segurá-la escondida debaixo da jaqueta: a ele bastaria uma daquelas pistolas para crianças, que disparam um raio de relâmpagos vermelhos, e com ela assustar tanto os adultos a ponto de fazê-los cair desmaiados e pedir-lhe piedade.
Mas que nada, Pin está de quatro na soleira do quarto, descalço, com a cabeça já para lá da cortina naquele cheiro de macho e fêmea que logo dá no nariz. Vê as sombras dos móveis no quarto, a cama, a cadeira, o bidê alongado sobre seu tripé. Pronto: da cama agora começa a se ouvir aquele diálogo de gemidos, agora se pode avançar de gatinhas tomando cuidado para não fazer barulho. Mas talvez Pin ficasse contente se o chão rangesse, o alemão de repente ouvisse e acendesse a luz, e ele fosse obrigado a fugir descalço com sua irmã correndo atrás dele e gritando: Porco! E que a vizinhança toda ouvisse e se falasse disso na taberna também, e ele pudesse contar a história para o Motorista e para o Francês, com tantos detalhes a ponto de acreditarem em sua boa-fé e assim levá-los a dizer: “Chega. Não deu certo. Não se fala mais nisso”.
O chão de fato range, mas muitas coisas rangem naquele momento e o alemão não ouve: Pin já chegou a tocar o cinturão, e o cinturão é uma coisa concreta ao tato, não mágica, e desliza pelo espaldar da cadeira de modo espantosamente fácil, sem nem sequer bater no chão. Agora “a coisa” aconteceu: o medo fingido de antes se torna medo de verdade. É preciso enrolar depressa o cinturão ao redor do coldre, e esconder tudo debaixo do pulôver sem meter os pés pelas mãos: depois voltar, de quatro, sobre os próprios passos, devagarinho, sem nunca tirar a língua de entre os dentes: talvez, se tirasse a língua de entre os dentes, alguma coisa espantosa acontecesse.
Uma vez fora, não há que pensar em voltar para sua caminha, esconder a pistola debaixo do colchão como as maçãs roubadas na feira. Daqui a pouco o alemão vai se levantar e vai procurar a pistola, e vai deixar tudo de pernas para o ar.
Pin sai para o beco: não é que a pistola esteja pegando fogo em suas mãos; assim escondida na sua roupa é um objeto como outro qualquer, e dá até para esquecer que o temos; aliás, não é boa essa indiferença e ao lembrar disso Pin gostaria de sentir um arrepio. Uma pistola de verdade. Pin tenta se empolgar com esse pensamento. Alguém que tem uma pistola de verdade pode tudo, é como um homem adulto. Pode fazer tudo o que quiser com as mulheres e com os homens, ameaçando matá-los.
Pin agora vai empunhar a pistola e vai andar o tempo todo com ela apontada: ninguém poderá tirá-la dele e todos terão medo. No entanto, está com ela ainda enroscada no novelo do cinturão, debaixo do pulôver, e não se resolve a tocá-la, quase esperando que quando for procurá-la ela não esteja mais lá, que tenha sumido no calor do seu corpo.
O lugar para olhar a pistola é um vão de escada bem escondido onde a gente se mete para brincar de esconde-esconde, alcançado pelo reflexo da luz de um lampião zarolho. Pin desenrola o cinturão, abre o coldre e, com um gesto parecido com o de puxar um gato pelo pescoço, puxa a pistola: é realmente grande e ameaçadora, se Pin tivesse coragem de brincar com ela, fingiria que é um canhão. Mas Pin a manuseia como se fosse uma bomba; a trava de segurança, onde estará a trava de segurança?
No fim decide empunhá-la, mas cuida de não colocar os dedos debaixo do gatilho, segurando bem firme a coronha; ainda assim é possível empunhar direito e apontá-la para o que quisermos. Pin antes aponta para o tubo da goteira, à queima-roupa na chapa, depois para um dedo, um dedo seu, e faz cara feroz puxando a cabeça para trás e dizendo entre os dentes: “A bolsa ou a vida”, depois acha um sapato velho e aponta para o sapato velho, para o calcanhar, depois dentro, depois passa a boca da arma sobre as costuras da gáspea. É uma coisa muito divertida: um sapato, um objeto tão conhecido, especialmente para ele, aprendiz de sapateiro, e uma pistola, um objeto tão misterioso, quase irreal; fazendo um objeto encontrar o outro, podemos fazer coisas que nunca imaginamos, podemos fazê-los representar histórias maravilhosas.
Mas a certa altura Pin não resiste mais à tentação e aponta a pistola para a própria testa: é uma coisa de dar tonturas. Para a frente, até tocar a pele e sentir o frio do metal. Até poderia passar o dedo pelo gatilho, agora: não, melhor apertar a boca do cano contra a face até machucar o osso, e sentir o aro de metal vazio por dentro, de onde nascem os disparos. Afastando a arma da testa, de chofre, talvez o repuxo de ar faça explodir um tiro: não, não explode. Agora se pode colocar o cano na boca e sentir o sabor debaixo da língua. Depois, o mais amedrontador de tudo, levá-lo aos olhos e olhar para dentro, no cano escuro que parece fundo como um poço. Certa vez Pin viu um garoto que tinha atirado no próprio olho com uma espingarda de caça, quando estava sendo levado para o hospital: tinha um enorme coágulo de sangue que lhe cobria metade do rosto, e a outra metade estava toda cheia de pontinhos pretos da pólvora.
Agora Pin brincou com a pistola de verdade, brincou o bastante: pode dá-la para aqueles homens que a haviam pedido, não vê a hora de entregá-la. Quando não a tiver mais será como se não a tivesse roubado e de nada vai adiantar o alemão ficar enfurecido com ele, Pin poderá zombar dele de novo.
O primeiro impulso seria entrar correndo na taberna, anunciando aos homens: “Estou com ela bem firme aqui!”, em meio ao entusiasmo de todos, que exclamam: “Não pode ser!”. Depois lhe parece que seria mais engraçado perguntar a eles: “Adivinham o que eu trouxe?”, e irritá-los um pouco antes de contar. Mas, claro, eles pensarão na pistola na hora, dá na mesma então entrar logo no assunto, e começar contando para eles a história de dez modos diferentes, dando a entender que não deu certo, e quando eles não estiverem agüentando mais e não estiverem entendendo mais nada, deixar a pistola em cima da mesa e dizer: “Olhem só o que eu achei no meu bolso”, para ver com que cara eles ficam.
Pin entra na taberna na ponta dos pés, calado; os homens ainda estão confabulando em volta de uma mesa, com os cotovelos que parecem ter criado raízes ali. Só aquele homem desconhecido não está mais lá, e sua cadeira está vazia. Pin está atrás deles e eles não perceberam: espera que de repente o vejam e tenham um sobressalto, soltando para cima dele uma saraivada de olhares interrogativos. Mas ninguém se vira.
Pin mexe numa cadeira. O Girafa vira o pescoço, dá uma espiada nele; depois torna a falar, em voz baixa.
Tudo bem aí? — diz Pin.
Dão uma olhada nele.
Cara feia — diz o Girafa, amigável.
Ninguém diz mais nada.
Então — diz Pin.
Então — diz Gian, o Motorista —, o que conta de novo?
Pin está meio derrubado.
Bem — diz o Francês —, está desanimado? Cante uma para nós, Pin.
Pois é”, pensa Pin, “eles também estão se fazendo de idiotas, mas não estão agüentando de curiosidade.”
Vamos lá — diz. Mas não começa: está com a garganta grudada, seca, como quando temos medo de chorar.
Vamos lá — repete. — Qual eu canto?
Qual? — diz Miscèl.
E o Girafa:
Que tédio esta noite, gostaria de já estar dormindo.
Pin não aguenta mais a brincadeira.
E aquele homem? — pergunta.
Quem?
Aquele homem sentado ali, antes?
Ah — dizem os outros, e balançam a cabeça. Depois recomeçam a confabular entre si.
Eu — diz o Francês aos outros — com esses sujeitos do comitê não me comprometeria muito. Não estou a fim de entrar bem pela bela cara deles.
Bem — diz Gian, o Motorista. — Nós fizemos o quê? Dissemos: vamos ver. Para começar é bom ter uma ligação com eles sem nos comprometermos, e ganhar tempo. E depois com os alemães eu tenho uma conta para acertar desde que estávamos juntos no front, e se tiver de lutar, luto com prazer.
Bem — diz Miscèl. — Olha que com os alemães não se brinca e nunca se sabe como vai acabar. O comitê quer que sejamos do gap; muito bem, nós faremos um gap por nossa conta.
Para começar — diz o Girafa —, mostramos que estamos do lado deles, e nos armamos. Uma vez armados…
Pin está armado: sente a pistola debaixo da jaqueta e coloca a mão em cima, como se quisessem tirá-la dele.
Vocês têm armas? — pergunta.
Não pense nisso — diz o Girafa. — Trate de pensar é naquela pistola do alemão, como combinamos.
Pin ouve atentamente; agora dirá: adivinhem, dirá.
Trate de não perdê-la de vista, se ficar ao seu alcance…
Não está sendo como Pin queria, por que estão ligando tão pouco para ele, agora? Gostaria de ainda não ter pegado a pistola, gostaria de voltar até o alemão e colocá-la de volta em seu lugar.
Por uma pistola — diz Miscèl —, não vale a pena arriscar. Depois, é um modelo antiquado: pesado, trava.
Enquanto isso — diz o Girafa —, precisamos mostrar ao comitê que estamos fazendo alguma coisa, isso é importante. — E continuam confabulando em voz baixa.
Pin não escuta mais nada: agora tem certeza de que não dará a pistola para eles; está com os olhos marejados de lágrimas e uma raiva lhe aperta as gengivas. Os adultos são uma raça ambígua e traidora, não têm aquela seriedade terrível nas brincadeiras, própria dos garotos, e, no entanto, também têm lá suas brincadeiras, cada vez mais sérias, uma brincadeira dentro da outra, e nunca se consegue entender qual é a verdadeira. Antes parecia que estavam brincando com o homem desconhecido contra o alemão, agora sozinhos contra o homem desconhecido, nunca dá para confiar no que dizem.
Bem, cante alguma coisa para nós, Pin — dizem agora, como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse havido um pacto muito sério entre ele e os outros, um pacto consagrado por uma palavra misteriosa: gap.
Vamos lá — diz Pin, com os lábios tremendo, pálido. Sabe que não pode cantar. Gostaria de chorar, mas explode num grito em i que estoura os tímpanos e acaba numa enxurrada de impropérios. — Bastardos, filhos daquela cadela sarnenta da sua mãe, vaca suja imunda puta!
Os outros ficam olhando o que deu nele, mas Pin já fugiu da taberna.
Lá fora, o primeiro impulso seria procurar aquele homem, o que chamam de “comitê”, e lhe dar a pistola: agora é a única pessoa por quem Pin sente respeito, embora antes, tão calado e sério, lhe inspirasse desconfiança. Mas agora é o único que poderia compreendê-lo, admirá-lo por seu gesto, e talvez o levasse consigo para fazer a guerra contra os alemães, só eles dois, armados de pistola, a postos nas esquinas das ruas. Mas sabe-se lá onde estará Comitê agora, não dá para perguntar por aí, ninguém o tinha visto antes.
A pistola fica com Pin e Pin não vai entregá-la a ninguém e não dirá a ninguém que a tem. Só dará a entender que tem uma força terrível e todos lhe obedecerão. Quem tem uma pistola de verdade deveria fazer umas brincadeiras maravilhosas, brincadeiras que nenhum garoto nunca fez, mas Pin é um garoto que não sabe brincar, que não sabe participar das brincadeiras, nem dos adultos, nem dos garotos. E além disso Pin agora irá para longe de todos e vai brincar sozinho com sua pistola, fará brincadeiras que ninguém mais conhece e ninguém mais poderá saber.
É tarde da noite: Pin foi deixando o aglomerado das velhas casas, pelos caminhos que passam por entre as hortas e os barrancos atulhados de lixo. Na escuridão os alambrados que cercam as sementeiras lançam uma rede de sombras sobre a terra cinza-lunar; as galinhas agora dormem empoleiradas nos galinheiros e os sapos estão todos fora da água e fazem coro ao longo de toda a torrente, da nascente à foz. Vai saber o que aconteceria se atirasse num sapo: talvez só restasse uma baba verde esguichada em algumas pedras.
Pin anda pelas trilhas que contornam a torrente, lugares íngremes, onde ninguém planta nada. Há caminhos que só ele conhece e que os outros garotos dariam tudo para conhecer: há um lugar onde as aranhas fazem ninho, e só Pin sabe, e é o único de todo o vale, talvez da região toda, a saber: nunca nenhum garoto soube de aranhas que fazem ninho, a não ser Pin.
Talvez um dia Pin encontre um amigo, um verdadeiro amigo, que o compreenda e que ele possa compreender, e então para ele, só para ele, Pin mostrará o lugar das tocas das aranhas. É um atalho pedregoso que desce para a torrente entre duas paredes de terra e grama. Ali, em meio à grama, as aranhas fazem suas tocas, uns túneis forrados de cimento de grama seca; mas o mais maravilhoso é que as tocas têm uma portinha, também feita daquela massa seca de grama, uma portinha redonda que pode ser aberta e fechada.
Quando aprontou alguma feia e de tanto rir seu peito se encheu de uma tristeza opaca, Pin vagueia sozinho pelas trilhas do fosso e procura o lugar onde as aranhas fazem sua toca. Com um graveto comprido pode-se alcançar o fundo de uma toca, e espetar a aranha, uma pequena aranha preta, com uns desenhinhos cinzentos como nos vestidos de verão das velhas carolas.
Pin diverte-se em desmanchar as portas das tocas e espetar as aranhas nos gravetos, e também em apanhar grilos e olhar de perto para aquelas caras absurdas de cavalos verdes, e depois em cortá-los em pedaços e fazer estranhos mosaicos com suas patas em cima de uma pedra lisa.
Pin é maldoso com os bichos: são seres monstruosos e incompreensíveis como os homens; deve ser um horror ser um bichinho, ou seja, ser verde e cagar em gotas, e ter sempre medo de que chegue um ser humano como ele, com uma cara enorme cheia de sardas vermelhas e pretas e com dedos capazes de fazer os grilos em pedacinhos.
Agora Pin está só entre as tocas das aranhas e a noite a seu redor é infinita, como o coro dos sapos. Está só, mas tem a pistola consigo, e agora coloca o cinturão com o coldre sobre a bunda, como o alemão; só que o alemão é gordo e para Pin o cinturão pode ficar a tiracolo, como as bandoleiras daqueles guerreiros que se vêem no cinema. Agora dá para sacar a pistola com um grande gesto, como se desembainhasse uma espada, e também para dizer: “Atacar, meus bravos!”, como fazem os garotos quando brincam de pirata. Mas sabe-se lá que prazer sentem aqueles fedelhos ao dizer e fazer aquelas coisas: Pin, depois de ter dado uns saltos pelo prado, com a pistola apontada para as sombras das toras de oliveira, já está cheio e não sabe mais o que fazer com a arma.
As aranhas subterrâneas naquele momento roem vermes ou se acasalam, os machos com as fêmeas soltando fios de baba: são seres nojentos como os homens, e Pin enfia o cano da pistola na entrada da toca com vontade de matá-las. Sabe-se lá o que aconteceria se desse um tiro, as casas estão distantes e ninguém entenderia de onde veio. Depois, os alemães e os da milícia não raro atiram à noite em quem anda por aí durante o toque de recolher.
Pin está com o dedo no gatilho, com a pistola apontada para a toca de uma aranha: resistir à vontade de apertar o gatilho é difícil, mas decerto a pistola está com a trava de segurança e Pin não sabe como se tira.
De repente o tiro sai assim tão de chofre que Pin nem sequer se deu conta de que apertou o gatilho: a pistola dá um salto para trás em sua mão, fumegante e toda suja de terra. O túnel da toca desabou, sobre ele há um pequeno desmoronamento de terra e a grama em volta está requeimada.
Pin é tomado antes de susto, e depois de alegria: tudo foi tão bonito e o cheiro da pólvora é tão bom. Mas o que o assusta de verdade é que os sapos se calam de repente, e não se ouve mais nada, como se aquele disparo tivesse matado a Terra toda. Depois um sapo, muito longe, recomeça a cantar, e depois outro mais próximo, e outros mais próximos ainda, até que o coro recomeça e Pin tem a impressão de que eles estão gritando alto, muito mais alto do que antes. E nas casas um cão late e uma mulher começa a chamar pela janela. Pin não vai atirar mais porque aqueles silêncios e aqueles ruídos lhe metem medo. Mas numa outra noite vai voltar e não haverá nada capaz de assustá-lo e então vai disparar todas as balas da pistola até contra os morcegos e os gatos que rondam os galinheiros àquela hora.
Agora é preciso encontrar um lugar onde esconder a pistola: a cavidade de uma oliveira; ou melhor: enterrá-la, ou, melhor ainda, cavar um nicho na parede de grama onde ficam os ninhos das aranhas e cobrir tudo com húmus e grama. Pin cava com as unhas num ponto onde o húmus já está todo desgastado pelos tantos túneis das aranhas, coloca ali dentro a pistola no coldre, que tirou do cinturão, e recobre tudo com húmus e grama, e pedaços de paredes de tocas, mastigados pelas bocas das aranhas. Depois coloca umas pedras de modo que só ele possa reconhecer o lugar, e vai embora chicoteando as moitas com a tira do cinturão. O caminho de volta é pelos beudi, os pequenos canais acima do fosso, com uma fileira estreita de pedras para se andar.
Ao caminhar Pin arrasta a ponta do cinturão na água da valeta e assobia para não ouvir o coaxar dos sapos, que parece se amplificar cada vez mais.
Depois lá estão as hortas e o lixo e as casas: e chegando ali Pin ouve vozes não italianas falando. Há o toque de recolher, mas mesmo assim ele anda bastante por aí à noite, porque é uma criança e as patrulhas não falam nada. Mas desta vez Pin tem medo, porque talvez aqueles alemães estejam ali procurando quem atirou. Estão vindo em sua direção e Pin gostaria de fugir, mas eles já estão gritando alguma coisa e o alcançam. Pin encolheu-se num gesto de defesa, com a tira do cinturão feito um chicote. Mas eis que os alemães olham justamente para a tira do cinturão, é o que eles querem; e de repente o pegam pela nuca e o levam embora. Pin diz uma porção de coisas: orações, lamentos, insultos, mas os alemães não entendem nada; são piores, muito piores que os guardas municipais.
No beco há até umas patrulhas alemãs e fascistas armadas, e pessoas detidas, Miscèl, o Francês, também. Fazem Pin passar no meio deles, ao subir pelo beco. Está escuro: somente no alto dos degraus tem um ponto iluminado por um lampião zarolho por causa do obscurecimento bélico.
À luz do lampião zarolho, no alto do beco, Pin vê o marinheiro com a cara gorda, enfurecida, apontando um dedo para ele.

Italo Calvino, in A trilha dos ninhos de aranha

Como nascem os cabelos brancos das mães

No sobrado, eu e minha mãe dormíamos no mesmo quarto. De manhã conversávamos. Foi quando notei que entre seus cabelos castanhos havia várias mechas de cabelos brancos. Fiquei ansioso. Percebi que ela não era mais jovem. Perguntei: “Mãe, por que os cabelos ficam brancos?”. Ela me deu uma resposta rápida, como se já estivesse pronta, como se ela já tivesse feito a mesma pergunta à sua mãe e ela lhe tivesse dado a resposta: “Os cabelos das mães ficam brancos por causa da desobediência dos filhos. Cada desobediência é um novo fio de cabelo branco que nasce...” . Continuei a desobedecer. Não é possível não desobedecer às mães. As mães têm medo do voo dos filhos.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Da cosmovisão miranha

Para Theo, que nomeou esta história, e para Nina, que traz no rosto a nossa herança. Meus iauaretês.
Para Raoni, a Onça.

Quando Niimúe criou o mundo, o fez a partir de seu próprio corpo. O mundo é esse ser gigante que mal distinguimos se estamos distraídos, mas que se apurarmos a vista encontraremos em seus detalhes. Há uma elegância no mundo por vezes despercebida na pressa com que as pessoas vão se acostumando a viver. Em seus cabelos se emaranham de igual modo os fios de fogo, de água, de vento e de ar. Em seu rosto se incrustam jaguares e macacos, ratos e antílopes, formigas e quatis, beija-flores e serpentes, todo sortimento de animais que conhecemos, além daqueles que desconhecemos, os animais sem nome, ainda não descobertos, não catalogados, sem taxonomia, os animais desaparecidos.
Uma gigantesca jiboia circunda a cintura do mundo e se fecha, engolindo a si própria. Inhames, batatas e macaxeiras calçam seus pés, trepadeiras, troncos, cipós, orquídeas e flores de diversas cores e formatos conformam-se em peitoral, braços, pernas, sexo. Em suas unhas escarpadas de rochas e cristais irrompem folhagens ora miúdas, ora de formidável tamanho, abrindo fendas em seus corações minerais. O sexo do mundo é instável, ora macho, ora fêmea, ora macho e fêmea, ora algo que não podemos definir com palavras, esse meio insustentável para a mensagem. A aparência do mundo é também instável. Muitas vezes seu rosto se afigura como que feito de legumes e frutas, árvores milenares irrompem de protuberâncias na testa, como chifres. Muitas vezes assume o aspecto de uma grande e dessemelhante ave. Seus olhos, no entanto, são sempre faíscas multicoloridas.
Niimúe ofereceu sua criação aos primeiros donos, os animais primordiais. É com eles que as pessoas precisam negociar para comer, para beber, para construir casas, edifícios, iglus, taperas, malocas, favelas. É a eles que se deve prestar contas do minério extraído até que a terra vire ferida em crosta, das caldeiras explodidas, dos carburadores entupidos, dos rios envenenados e das minúsculas partículas de plástico que incham no ventre dos oceanos. É a eles que deveremos prestar contas. E eles cobrarão.

Micheliny Verunschk, in O som do rugido da onça

O baú

Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos... Bem no fundo,

uma boneca toda estraçalhada!
(isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino

te traz de súbito uma ideia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.

E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!

Mário Quintana

Torto Arado | 24

Indomável, Severo caminhou por estradas, levantou sua voz em discursos, enfrentou os novos donos e o chefe dos trabalhadores. Mudando a si em meio ao movimento que parecia crescer em nossas vidas, foi moldando Água Negra, fazendo-a se transformar num lugar diferente. Enquanto Zeca Chapéu Grande viveu, respeitou o seu desejo de não confrontar os que lhe haviam dado abrigo. Questionar o domínio das terras da fazenda seria um gesto de ingratidão. Por isso mesmo, Severo percebeu que não poderia discutir com meu pai, seu tio e sogro, seria um desrespeito por tudo o que ele significava para o nosso povo. Zeca Chapéu Grande havia mantido os moradores da fazenda unidos, foi liderança do povo por anos, e, sem permitir que se fizessem maus-tratos a nenhum trabalhador da fazenda, muitas vezes interveio, sem afrontar Sutério, para impedir injustiças maiores que as que já existiam. Graças às suas crenças, havia vigorado uma ordem própria, o que nos ajudou a atravessar o tempo até ao presente.
Sua morte deixou um vazio entre os moradores da fazenda e, por fim, a venda das terras transformou tudo de maneira repentina. As notícias que nos chegavam eram de que a fazenda havia sido vendida a um preço minguado, porque nossa presença a havia desvalorizado. O novo dono fazia uma movimentação contrária à nossa morada, talvez porque soubesse que, pelo tempo que tínhamos ali, a justiça nos reservava algum direito. Aos poucos, foi chegando, primeiro como um benfeitor, dizendo que nada iria mudar. Se mostrava solidário, levando um ou outro para a cidade em seu carro se precisava de médico, propagando aos quatro ventos como era bom com seus trabalhadores. Depois montou um barracão de mantimentos, resolveu criar porcos e quem estivesse disposto a trabalhar teria direito a salário, que as pessoas nunca receberam de fato. Os dias de trabalho eram pagos com a retirada de mercadorias e, ao sair de lá, os moradores terminavam deixando uma dívida maior do que o pagamento que tinham a receber.
Nesse campo desigual, Severo levantou sua voz contra as determinações com que não concordávamos. Virou um desafeto declarado do fazendeiro. Fez discursos sobre os direitos que tínhamos. Que nossos antepassados migraram para as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos fazendeiros sem nunca termos recebido nada, sem direito a uma casa decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita a cada chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz, em breve estaríamos sem ter onde morar. A cada movimento de Severo e dos irmãos contra as exigências impostas pelo proprietário, as tiranias surgiam com mais força.
No começo, o dono quis nos dividir dizendo que aquele bando de vagabundos queria a fazenda dele, comprada com o seu trabalho. Aquele sentimento de desamparo que o povo havia sentido com a morte de meu pai foi sendo substituído pela liderança de Severo, para uns. Outros não viam com bons olhos o movimento e se opuseram abertamente a meu primo, divergindo, entrando no jogo do novo fazendeiro para fazer minar nossas forças. Guiavam seus animais na calada da noite para destruir nossas roças na vazante. Derrubavam cercas e meses de trabalho viraram pasto na boca do gado. Certo dia, fomos acordados no meio da madrugada com um incêndio em nosso galinheiro. Os ovos explodiam como bombas das festas de junho. Apagamos o fogo com as tinas de água e atirando a terra seca. Outros galinheiros também foram incendiados, o que deixou claro que era uma ação organizada do fazendeiro com alguns trabalhadores. Com receio de deixar minha mãe e minhas irmãs, fechei a casa do rio Santo Antônio de vez e voltei a morar na beira do Utinga.
Severo colheu assinatura para fundar uma associação de trabalhadores. Disse que precisávamos nos organizar ou, de contrário, acabaríamos sendo expulsos. Para muitos era impossível se imaginarem longe de Água Negra. Escutei dona Tonha, em uma conversa com minha mãe, perguntar sobre o que faria na cidade: “Vou alisar calçada? Pra viver na cidade precisa de dinheiro pra tudo. Uma cebola, dinheiro. Um tempero, dinheiro.” Bibiana esteve mais ativa ao lado do marido. Em meio à mobilização, eu ficava de bom grado com as crianças para que ela pudesse escrever, trabalhar, andar com Severo procurando ajuda na garupa da motocicleta que ele havia adquirido. Iam a sindicato, a reuniões. Voltavam, faziam mais reuniões, escondidos ora na casa de um, ora na casa de outro. Na nossa casa ocorreram muitas. Temi que minha mãe tivesse a mesma postura de nosso pai, que achasse ingratidão aquela movimentação. Mas não, ela parecia entusiasmada, desandou a contar muitas histórias, era um livro vivo. Contava as histórias dos bisavós, dos avós, da fazenda Caxangá, onde também morou, das terras do Bom Jesus, de onde veio. Intervinha ativa, ciente da importância das coisas que sabia. A essa altura, já haviam percebido que se não fizéssemos barulho para garantir nossa permanência na fazenda, não teríamos para onde ir.
Com frequência, também passou a aparecer um carro de polícia, de onde desciam para fazer perguntas, entrando nas casas, constrangendo os moradores. O medo era grande, uma casa avisava a outra quando surgiam, ou se alguém demorasse a retornar para casa ou se fosse para lugar distante. Compartilhávamos cada passo, porque entendíamos que só assim conseguiríamos nos proteger.
Bibiana e Severo se arrumaram para mais uma jornada em busca de um registro da associação de trabalhadores e pescadores de Água Negra. De posse das assinaturas, iriam ao cartório. Numa manhã nublada, de calor abafado, o céu quase branco, Salu lembrou que guardava o pedaço do bilhete que Sutério havia dado a meu pai há mais de setenta anos. Seria bom juntar uma cópia aos documentos, haviam decidido na última reunião. Era um bilhete num papel manchado que Zeca guardou junto com outros documentos, num envelope pardo, quase desfeito pelo tempo. Me lembro do dia em que Bibiana o abriu com cuidado, quando nosso pai pediu que lesse, para que todos tomássemos conhecimento sobre qual era nossa situação na fazenda. Quando Bibiana terminou de ler eu mesma fiz questão de conferir: “Esteve aqui o Sr. José Alcino pedindo uma morada eu dei a ele lá na beira do rio Utinga e disse a ele que tem que trabalhar nas roças da fazenda e pode levantar casa de barro proibido casa de tijolo.”
Bibiana já havia subido na garupa da motocicleta quando recordou do que havia esquecido. Devolveu o capacete a Severo e foi buscar o bilhete. Maria e Flora ajudavam com os pratos no quintal enquanto eu tentava acender o fogo, com a roupa molhada de suor do esforço de abanar a brasa.
Ouvi vários estampidos, como na madrugada do incêndio do galinheiro. Os ovos estouraram naquela noite, as aves ficaram esturricadas. Meu peito doía de ver os bichos da casa mortos por pura maldade. Não refizemos o galinheiro, não havia ovos para estourar e produzir aquele som que, de novo, enfraquecia meu corpo. Corri em direção ao terreiro. Eu e Bibiana chegamos à porta ao mesmo tempo.
Severo estava caído. A terra seca aos seus pés havia se tornado uma fenda aberta e nela corria um rio de sangue.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Um ponto indivisível

Jogue fora todas as coisas e se apegue unicamente àquelas que são poucas. Outrossim, lembre-se que todo homem vive apenas o tempo presente — um ponto indivisível. O restante de sua vida é passado ou é incerto. Breve é o tempo durante o qual cada homem vive, e pequeno é o recanto da terra onde mora. Efêmera é a mais duradoura fama póstuma, conservada somente por uma sucessão de pobres seres que logo falecerão e que não se conhecem — tampouco têm conhecimento daqueles que morreram há muito tempo.

Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução

O banho de música das 18 horas | Capítulo 2

A ligação veio do setor Aloaa.
O professor Kohak se aproximou e apertou o botão no receptor. A tela tremeluziu, e na superfície, parecida com um espelho, surgiu o rosto do presidente Miruki envolto por uma grossa barba.
Presidente Miruki, vida longa ao império! — o professor cumprimentou.
Olá, professor, tenho um assunto para discutir com você, em particular — o homem barbudo falou.
O professor entendeu o recado e se virou, ordenando que Penn e Bara fossem para a oficina adjacente.
Os dois estudantes pegaram vários papéis da mesa, empurraram a porta e entraram na sala ao lado.
Estou sozinho agora. Sobre o que se trata?
Bem, eu gostaria de expressar o meu respeito por você, professor. Graças ao poder impressionante do banho de música, esta nação está sob o meu total controle. Ao fim de cada banho, é como se cada um dos cidadãos houvesse renascido. Todos se incendeiam com os mesmos ideais desta nação e estão prontos para se aplicarem com ardor aos seus deveres. Eles seguem o meu comando, sem exceção, quase como androides. Até o criminoso mais perigoso e brutal é transformado em um cidadão modelo após 30 minutos de banho de música. Toda a minha nação está saudável. E tenho de agradecer a você, professor, por esses cidadãos maravilhosos. Você tem o meu mais profundo respeito…
Vossa Excelência, posso, com todo respeito, pedir que vá direto ao ponto?
Oh, sim. — O homem barbudo balançou a cabeça. — Bem, estou ciente de que atualmente você está pesquisando sobre a construção de androides, mas talvez seja melhor interromper esse projeto.
Então você está ordenando que eu pare a pesquisa sobre androides? Posso perguntar por quê?
Você não consegue ver que, graças ao banho de música das 18 horas, meus cidadãos obtiveram mentes e corpos de aço? Cada um deles se tornou um ser humano ideal. Dito isso, existe mesmo uma razão para criar androides? O custo da pesquisa sobre eles subiu até metade do orçamento nacional. Por que devemos gastar tanto dinheiro nesse projeto? Meu ponto é que, com nosso sistema do banho de música instaurado, não há motivo para a existência de androides. Professor, o que acha disso?
Eu entendo o que Vossa Excelência quer dizer. Por favor, permita-me pensar a respeito com mais calma.
Sim, faça isso. Oh, quase me esqueci. Parece que minha esposa deseja vê-lo. Você poderia passar lá esta noite?
Sim, Vossa Excelência. Eu a visitarei hoje, às 20 horas.
Na oficina da porta ao lado, Penn e Bara continuavam a calcular. Eles estavam tão envolvidos no trabalho que nem notavam a presença um do outro. Até mesmo ali, o efeito do banho de música era extraordinário. Nesta nação, a hora imediata conseguinte ao banho de música era a mais preciosa, as tarefas mais importantes eram realizadas nesse curto período de tempo com uma habilidade sobre-humana. O escudo de defesa nacional, as provisões nutricionais e as bactérias misturadas, cada uma dessas coisas eram melhoradas ou redesenhadas nessa hora. Após seu fim, todos iriam realizar um trabalho que não requeria criatividade, divertir-se ou dormir. Além de transformar todos em gênios durante uma hora, forçava-lhes a seguir os firmes ideais da nação pelas 23 horas seguintes. O banho de música foi baseado no som da vibração dos tremores da Terra, da Central de Música, que se conectava com os cérebros humanos através das cadeiras de formato espiral, massageando as células cerebrais e transformando os cidadãos em magníficos indivíduos padronizados. Há pouco tempo, o banho de música passou a utilizar a Melodia Nacional n. 39 — uma melodia habilmente refinada, através de muitos testes, pelo professor e requisitada pelo presidente Miruki, designada com o propósito de criar o chamado “Modelo 39 de Indivíduos Padrões”. Esse modelo referia-se àqueles que cumpriam as 39 condições indicadas pelo presidente como necessárias à sua nação.
Uma exaustiva lista de todas as 39 condições será omitida aqui, mas para destacar algumas: ser leal ao presidente, possuir um espírito inflexível, não desejar álcool, não fumar, manter-se saudável com apenas quatro horas de sono e reconhecer o presidente ao ver sua barba. O presidente Miruki propôs algumas condições bem restritivas.
Quando o professor Kohak finalizou a Melodia Nacional n. 39, o presidente ficou extasiado. No início, a música fora testada nos piores criminosos da nação que, de imediato, se tornaram os exatos cidadãos modelos desejados pelo presidente Miruki, e isso o chocou a ponto de quase desmaiar. Ele, portanto, ordenou que deixassem o bem-sucedido banho de música tocando através das ondas de rádio, para expor os cidadãos a ele, 24 horas por dia. No entanto, a ideia foi rejeitada por Kohak; ele objetou em razão de o banho de música, de maneira forçada, estimular em excesso as células cerebrais, e essa superexposição destruiriam-nas, levando à morte súbita. Por isso, as regulações limitam o banho de música para apenas 30 minutos por dia. Se fosse possível, o presidente estenderia a duração, de qualquer maneira, com o objetivo de capturar por completo as almas da população. Ele havia acabado de expressar ao professor sua alegria de ter cidadãos tão perfeitos, mas aquilo era apenas um elogio. Na realidade, as pessoas estavam em um contínuo estado de tensão durante o dia, longe de viver sem reclamações.

Juza Unno, in A última transmissão

Saco cheio!

Existe a tal semana do saco cheio, ou melhor, Semana do Saco Cheio, isso, com maiúsculas, como devem vir as datas, feriados, festas populares, eventos históricos (Carnaval, Natal, Sete de Setembro, Páscoa), já que se celebra a semana em que não se celebra nem comemora nada.
Não houve decreto. Nenhum vereador aprovou. É extraoficial. Apenas foi instituído por alguém, já há um bom tempo, que nesta semana de outubro, que contém o, este sim, feriado do dia 12 de Outubro, oficial e decretado, seria A Semana do Saco Cheio, efeméride cheia de particulares: trata-se apenas de umas férias curtas inventadas por alunos e professores do ensino público e privado.
Não, metalúrgicos, servidores públicos, contínuos, porteiros, entregadores de pizza, comissários de bordo, contadores, escriturários, patrulheiros rodoviários, barmen, gráficos, químicos e profissionais liberais que prestam serviço não celebram neste mês de outubro A Semana do Saco Cheio, a não ser que trabalhem para o mundo escolar.
E por que o saco já está cheio, se nem há pouco mais de dois meses estavam todos em férias? E haja pressa: daqui a pouco mais de dois meses, estarão todos novamente em férias. Não dá pra esperar?
Não. Exatamente no intervalo e momento equidistante entre duas férias, inventou-se a semana citada. Seu inventor foi matemático. Mas injusto. Estudar ou promover a educação enche tanto o saco assim?
Há em outros países A Semana do Saco Cheio, como The Pain in the Ass Week? Já que nós, brasileiros, instituímos A Semana do Saco Cheio, poderíamos sofisticar e criar outras.
A Semana do Saco Cheio do Síndico. Seria aquela semana em que você diz tudo o que gostaria de dizer ao seu síndico, mas, por educação e medo de retaliação, não diz.
A Semana de Mandar Seu Chefe pra Casa do Chapéu deveria ser instituída logo depois dos dissídios das categorias sindicalizadas ou não terem sido acertados pelas duas partes. Seria uma semana valiosa para todas as empresas, já que acertos nasceriam diante da verdade dita.
O problema seria a tensão da semana posterior: “Desculpe, eu não queria dizer aquilo, foi só pra comemorar a semana...”
Poderia ter A Semana do Saco Cheio de Ser Brasileiro Com Muito Orgulho. Todos passaríamos a detestar futebol, falar em francês e, na padoca, diríamos: “Bonjour, monsieur, une café, s’il vous plaît.”
Poderia haver A Semana do Saco Cheio da Vida Privada de Celebridades, uma semana em que revistas de famosos não falariam de ricos e famosos, mas de como distribuir a renda, diminuir a desigualdade social, integrar a cultura da periferia e difundir o rap.
Aliás, taí: poderia haver A Semana das Rimas, em que todos falariam como cantores de hip-hop ou poetas parnasianos. Ou A Semana do Saco Cheio de Vou Estar Passando, a semana em que telefonistas e operadores de telemarketing diriam, enfim: “Vou passar a sua ligação, transferir, escutar o seu pedido, falar corretamente.”
Poderia haver A Semana da Inversão, aquela em que quem tem dá pra quem não tem, e quem não tem vive como quem tem. O problema seria determinar aos que não têm quando a semana termina.
Na Semana da Inversão, judeus poderiam rezar ajoelhados a Meca, muçulmanos leriam em sinagogas a Torá, evangélicos poderiam adorar Xangô, e os padres, liberados para namorar à beça. Mas esta seria a Semana do Saco Cheio de Tabus.
Melhor seria A Semana de Gritar Pela Janela que Estou de Saco Cheio de Dois Pontos. Eu gritaria: “Dá pra proibirem esses sinos orientais que badalam ao vento em varandas?! Eu não relaxo coisa nenhuma com este barulho!”
Chato mesmo é aquele que celebra A Semana do Saco Cheio de Semana do Saco Cheio e fica na escola sozinho estudando como um doido e praguejando que brasileiro é tudo preguiçoso.

Marcelo Rubens Paiva, in Crônicas para ler na escola

O tempo passa rápido

Às vezes, quando me encontro com velhos amigos, lembro-me da rapidez com que o tempo passa. E isso faz-me pensar se temos utilizado o nosso tempo de forma adequada ou não. A utilização adequada do tempo é tão importante. Enquanto tivermos este corpo e especialmente este cérebro humano incrível, eu acho que cada minuto é algo precioso. O nosso dia-a-dia é muito vivido à base de esperança, embora não exista a garantia do nosso futuro. Não há garantia de que amanhã a esta hora estejamos aqui. Mas estamos sempre na expectativa de que isso aconteça, puramente na base da esperança. Por isso, precisamos de fazer o melhor uso possível do nosso tempo. Acredito que a utilização adequada do tempo é a seguinte: se você puder, esteja disponível para as outras pessoas, ou para outros seres sensíveis. Se não, pelo menos, abster-se de os prejudicar. Eu acho que esta é toda a base da minha filosofia.
Concluindo, precisamos de refletir no que é realmente de valor na vida, o que dá sentido às nossas vidas, e definir as nossas prioridades com base nisso. O propósito da nossa vida precisa de ser positivo. Nós não nascemos com o propósito de causar problemas, prejudicando outros. Para que a nossa vida seja de valor, acho que devemos desenvolver boas qualidades humanas básicas – o calor, a bondade, a compaixão. Então, a nossa vida torna-se significativa e mais pacífica, mais feliz.

Dalai Lama, in A Arte da Felicidade

Aninha e suas pedras

Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.

Cora Coralina

Você não consegue escrever uma história de amor

Margie ia sair com um sujeito, mas, no caminho, esse sujeito encontrou com outro que vestia um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro abriu o casaco de couro e mostrou as tetas e o outro sujeito foi até a casa de Margie e disse que não poderia mais ir ao encontro, porque esse sujeito, vestindo um casaco de couro, havia lhe mostrado as tetas e ele iria trepar com esse sujeito. Então Margie foi até a casa de Carl. Carl estava em casa e ela se sentou e disse para Carl:
Um sujeito ia me levar para um café com mesas na calçada e íamos beber vinho e conversar, só beber vinho e conversar, só isso, nada mais, mas no caminho para me encontrar, esse sujeito encontrou outro com um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro lhe mostrou as tetas e agora esse sujeito vai trepar com o sujeito com casaco de couro e eu fico sem minha mesa e meu vinho e minha conversa.
Não consigo escrever – disse Carl. – Acabou-se.
Então ele se levantou e foi até o banheiro, fechou a porta e deu uma cagada. Carl cagava quatro ou cinco vezes por dia. Não havia mais nada a fazer. Ele tomava cinco ou seis banhos por dia. Não havia mais nada a fazer. Ficava bêbado pela mesma razão.
Margie ouviu a descarga da privada. Então Carl saiu do banheiro.
Um homem simplesmente não consegue escrever oito horas por dia. Nem mesmo consegue escrever todo dia ou toda semana. É uma situação péssima. Não há nada a fazer além de esperar.
Carl foi até a geladeira e voltou com um pacote de seis garrafas de cerveja Michelob. Abriu uma garrafa.
Sou o maior escritor do mundo – ele disse. – Você sabe como isso é difícil?
Margie não respondeu.
Posso sentir a dor rastejando por todo o meu corpo. É como uma segunda pele. Queria poder me livrar dessa pele como uma cobra.
Bem, por que você não se deita no tapete e tenta?
Escute – ele perguntou –, onde foi que a conheci?
Na Bodega do Barney.
Bem, isso explica um pouco as coisas. Beba uma cerveja.
Carl abriu uma garrafa e lhe entregou.
É... – disse Margie – eu sei. Você precisa do seu isolamento. Você precisa ficar sozinho. Exceto quando quer trepar, ou exceto quando nos separamos, então você me liga. Diz que precisa de mim. Diz que está morrendo por causa de uma ressaca. Você enfraquece rápido.
Enfraqueço rápido.
E fica tão inerte quando estou por perto, nunca se excita. Vocês escritores são tão... preciosos... não suportam pessoas. A humanidade fede, certo?
Certo.
Mas toda vez que nos separamos você começa a fazer festas gigantes que duram quatro dias. E de repente você acorda, começa a FALAR! De repente fica cheio de vida, falando, dançando, cantando, dança em cima da mesa de café, joga garrafas pela janela, encena trechos de Shakespeare. De repente, você está vivo... quando estou longe. Ah, fiquei sabendo de tudo!
Não faço festas. Odeio ainda mais as pessoas nas festas.
Para um sujeito que não gosta de festas, certamente você organiza um bocado delas.
Escute, Margie, você não entende. Não consigo mais escrever. Estou acabado. Em algum lugar tomei uma trajetória errada. Em algum momento, morri durante a noite.
O único jeito de você morrer é numa dessas suas ressacas gigantescas.
Jeffers diz que até mesmo o mais forte dos homens fica encurralado.
Quem foi Jeffers?
Foi o sujeito que transformou Big Sur numa armadilha para turistas.
O que você ia fazer essa noite?
Ia ouvir as músicas de Rachmaninoff.
Quem é?
Um russo que já morreu.
Olha para você. Fica aí sentado.
Estou esperando. Alguns sujeitos esperam por dois anos. Às vezes a coisa nunca volta.
E se nunca voltar?
Apenas vestirei meus sapatos e descerei até a rua principal.
Por que não arranja um emprego decente?
Não existem empregos decentes. Se um escritor não consegue sucesso através da criação, está morto.
Ah, para com isso, Carl! Existem bilhões de pessoas no mundo que não atingem o sucesso pela criação. Quer me dizer que elas estão mortas?
Sim.
E você tem uma alma? Você é um dos poucos que tem uma alma?
Diria que sim.
Diria que sim! Você e a sua maquininha de escrever! Você e os seus cheques mirrados! Minha avó ganha mais dinheiro do que você!
Carl abriu outra garrafa de cerveja.
Cerveja! Cerveja! Você e a porra da sua cerveja! Isso está nas suas histórias também. “Marty ergueu sua cerveja. Quando levantou os olhos, uma tremenda loira entrou no bar e sentou ao seu lado...” Você está certo. Está acabado. Seu material é limitado, muito limitado. Você não consegue escrever uma história decente de amor.
Você está certa, Margie.
Se um homem não consegue escrever uma história de amor, ele é um inútil.
Quantas você já escreveu?
Não digo que sou uma escritora.
Mas – disse Carl – você parece posar como uma crítica literária infernal.
Margie, depois disso, foi logo embora. Carl ficou sentado e bebeu o resto das cervejas. Era verdade, a escrita o havia deixado. Isso deixaria algum de seus inimigos do subsolo felizes. Eles poderiam aumentar em um tento a marca dos inimigos abatidos. A morte os agradava, em cima ou embaixo da terra. Lembrou-se de Endicott, Endicott sentado, dizendo:
Bem, Hemingway se foi, Dos Passos se foi, Patchen se foi, Pound se foi, Berryman pulou daquela ponte... as coisas estão parecendo cada vez melhores.
O telefone tocou. Carl atendeu.
Sr. Gantling?
Sim – ele respondeu.
Gostaríamos de saber se você estaria interessado em uma leitura de algum dos seus trabalhos na Faculdade Fairmount.
Bem, sim, qual a data?
No dia 30 do próximo mês.
Acho que não tenho nada marcado para esse dia.
Nosso pagamento geralmente é de cem dólares.
Geralmente recebo 150. Ginsberg ganha mil.
Mas ele é Ginsberg. Podemos oferecer apenas cem.
Tudo bem.
Bom, sr. Gantling. Enviaremos os detalhes para você.
E o transporte? Dirigir até aí não é pouca coisa.
Ok, 25 dólares pela viagem.
Ok.
Gostaria de falar com os estudantes em suas classes?
Não.
Oferecemos um almoço grátis.
Vou aceitar o almoço.
Bom, sr. Gantling, estaremos esperando para vê-lo em nosso campus.
Nos falamos.
Carl foi até o quarto. Olhou para a máquina de escrever. Colocou uma folha de papel no rolo, então observou uma garota com uma minissaia surpreendentemente curta cruzar pela frente de sua janela. Depois começou a escrever:
Margie ia sair com um sujeito, mas, no caminho, esse sujeito encontrou com outro que vestia um casaco de couro e o sujeito com casaco de couro abriu o casaco de couro e mostrou as tetas e o outro sujeito foi até a casa de Margie e disse que não poderia mais ir ao encontro, porque esse sujeito, vestindo um casaco de couro, havia lhe mostrado as tetas...”
Carl ergueu sua cerveja. Era bom voltar a escrever.

Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum