domingo, 5 de setembro de 2021

O dia em que resolvi invadir a casa de García Márquez

Sempre me perguntei o que se passava na cabeça daquelas pessoas que perseguem celebridades. Aquelas que, num dado momento, recebem intimações dizendo que precisam manter uma distância mínima de 500m do famoso e também da casa dele. Imaginava pessoas solitárias, vivendo em uma casa cheia de fotos do indivíduo-alvo nas paredes, para as quais olhavam com olhos perturbados.
Mudando de assunto, passo a narrar minha paixão pela obra de García Márquez. Tinha 16 anos quando minha tia me emprestou seu exemplar de Do amor e outros demônios. Pouco tempo depois migrei para O amor nos tempos do cólera. Aos 19, presenteei um namorado com Crônica de uma morte anunciada, que roubei na sequência para ler. Devorei Doze contos peregrinos em um verão em Caxambu e A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada num fim de semana em Campinas, sequestrado da biblioteca do meu irmão. Relato de um náufrago veio depois. Parei em Memória de minhas putas tristes. Decidi que precisava distribuir seus livros com mais calma pelos anos que espero que a vida me conceda. Guardo Cem anos de solidão para algum período especialmente calmo que não sei se terei. Mas guardo mesmo assim.
Quando tinha 23 anos decidi gastar as férias e o pouco dinheiro que tinha guardado em uma viagem pela Colômbia, por razões óbvias. Fiz um roteiro especialmente cuidadoso. Precisava passar por Barranquilla para visitar o Museu do Caribe, onde havia uma sala dedicada unicamente a García Márquez, que viveu boa parte de sua vida na cidade. Precisava, obviamente, de dias em Cartagena com muita calma. Até tentei colocar Aracataca no roteiro, mas não dava tempo.
Muito bem. Ao pesquisar hotéis em Cartagena, deparei com um especialmente maravilhoso, para o qual só sorri e nem olhei os preços. Era óbvio que não cabia no meu orçamento. Olhei outros. Mas algo me arrastava de novo para aquela maravilha inacessível. Voltei para ele. E fui embora. E voltei de novo. Até que descobri que aquele era o antigo convento de Santa Clara, no qual García Márquez baseou imensa parte de Do amor e outros demônios.
Nem quis saber o preço, nem como iria pagar. Era lá que eu ia ficar. Não havia a menor possibilidade de eu abrir mão daquilo. Isso porque eu ainda nem sabia que a casa ao lado do hotel era dele. Quando soube, meu coração disparou, meu olho encheu de lágrimas e eu já comecei a sentir algumas semelhanças – ainda que remotas – com os malucos que perseguem celebridades, mesmo que soubesse que ele provavelmente não estaria ali. Sabia que, àquela altura, ele já não morava mais na Colômbia.
Quando cheguei ao hotel, pisquei minhas melhores pestanas para o moço que carregava as malas e usei o melhor do meu enferrujado espanhol para perguntar se ele sabia qual era a casa do García Márquez. Ele me mostrou na hora. E eu subitamente virei a doida do hotel.
Na piscina, pegava a cadeira com a melhor vista para a casa, logo cedo. Ao entardecer ficava esperando para ver se luzes se acendiam lá dentro. Andava pelas alas do hotel tentando situar os trechos do livro. Tocava as paredes, cheirava a madeira, observava as aves com uma calma inédita. Imaginava-me na rua, encontrando o autor. O que eu diria, se poderia abraçá-lo, que cheiro ele teria e como explicaria o fato de estar rondando sua casa havia três dias. Tudo bem que ele deveria estar no México, mas sempre haveria uma possibilidade de estar na casa de Cartagena a passeio. Vai saber.
No último dia, antes de dormir, resolvi fazer minha última vigília. Fui até a parte do hotel que mais se aproximava da casa do escritor e fiquei ali, suspirando, com a cabeça apoiada no queixo. Imaginava o que ele faria em casa. Se estaria de pantufas, se comeria banana frita ou pandebonos, se leria numa poltrona à meia-luz ou se assistiria a algo bem inusitado na televisão. Até que tive a impressão de ver uma luz piscar.
Fiquei maluca. Precisava estar num lugar mais alto para enxergar. Olhei para trás. Havia uma escada da manutenção. Letras vermelhas diziam que o acesso era restrito. Não titubeei e subi, indo parar em cima de um equipamento qualquer no qual deveria haver risco acentuado de eletrocussão. Vi que havia, de fato, uma luz acesa em um cômodo nos fundos. Obviamente não era ele. Mas... E se fosse?
Como o fato de estar em um lugar proibido, em cima de um provável gerador, ainda não era loucura suficiente, comecei a pensar que, se eu tomasse impulso, conseguiria pular para dentro da casa dele. Sim, a distância permitia. Eu conseguiria chegar lá para conferir quem estava na casa. Mas eu poderia quebrar os joelhos. E poderia haver um cachorro imenso. Ou os irmãos Vicario à minha espera. Pensei melhor e achei que talvez não fosse uma boa ideia.
Fechei os olhos, recobrei alguma sanidade e decidi simplesmente agradecer. Agradeci mentalmente. Por tantas palavras, tantas histórias, tantas páginas. Agradeci por ele ter vivido e escrito cada linha. Chorei como choraria o melhor perseguidor de famosos. Desci as escadas, voltei para o quarto e sonhei com Florentino Ariza me esperando em um barco de madeira, segurando os remos.
García Márquez morreu pouco mais de um ano depois. Um ex-namorado até me ligou para saber se eu estava bem. Decidi que no dia em que eu voltar a Cartagena, farei tudo de novo. Mas, dessa vez, à espera de um encontro ainda mais especial. Nessa ocasião procurarei sua alma vagando na madrugada pelo antigo convento a esperar um encontro com a menina dos cabelos vermelhos de 22m de comprimento, mas talvez aceitando passar alguns minutos na companhia desta menina dos cabelos loiros de 22cm que segue esperando ansiosamente por conhecê-lo.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

Nenhum comentário:

Postar um comentário